Posted: 21 Oct 2020 03:45 AM PDT
«No dia 23 de Outubro o Parlamento vai decidir pela não realização do referendo sobre a despenalização da morte antecipada em Portugal. Já todos adivinhamos que vai ser esse o sentido de voto da maioria, a mesma maioria que aprovou o que agora se pretende referendar. Porquê, então, esta questão agora?
Entendo que a resposta deve estar relacionada com a evocação de um último argumento contra a despenalização da morte medicamente antecipada. Propõe-se o referendo, este não é aprovado, e poderá sempre argumentar-se que a maioria dos portugueses seria contra este processo retirando legitimidade à aprovação de uma Lei neste sentido.
Discordo em absoluto desta ideia. Entendo que um referendo sobre um tema tão complexo não legitima, antes dicotomiza ainda mais a sociedade sobre o tema. Na generalidade, as pessoas tomam decisões a partir das suas crenças, desejos e preconceitos, o que normalmente não resulta bem em decisões difíceis com enormes repercussões sociais. Um referendo colocaria as pessoas ainda mais barricadas atrás das suas certezas, num dos lados e, por defensivas, sem capacidade de dialogar com o outro lado. O que creio precisarmos aprender num tema como este é a lidar com as dúvidas que um processo de antecipação da morte de alguém nos tem que colocar, nomeadamente como encontrar soluções que nos ajudem a diminuir as margens de erro das decisões a tomar.
A lógica da democracia representativa, que como sabemos é um sistema com defeitos e limitações, é eleger pessoas com sensibilidades diversas, para pensarem, ouvindo contributos técnicos, e fazerem escolhas responsáveis sobre assuntos complexos a partir dessa diversidade. E a antecipação da morte a pedido do próprio deve ser dos assuntos mais complexos e difíceis de considerar. Há vários anos que me debruço sobre este tema, procurando contribuir com conhecimento científico e fugindo da dimensão opinativa. Tenho medo daqueles que afirmam posições definitivas e “certas”. Essas opiniões apenas servem para polarizar a discussão e reduzir a mesma a uma dicotomização falaciosa de favor ou contra, altamente condicionadora da capacidade de compreender as diversas perspectivas de um problema como este.
Não, não estamos perante uma escolha simples entre respeitar a vontade da pessoa ou colocar em causa o respeito pela vida humana. Sim, estamos perante uma escolha que implicará compreender o papel do Estado e quais os custos para as pessoas e para a sociedade de, por um lado, prolongar a vida das pessoas e, muitas vezes, o seu sofrimento, ou, por outro, terminar a vida de alguém prematuramente, a seu pedido. Sim, estamos perante uma discussão que pretende ajudar a compreender até que ponto as decisões das pessoas podem estar assentes em medos irrealistas, em convicções mal construídas, ou até em pressões de terceiros. Sim, estamos perante a dificuldade de sabermos até que ponto o desejo de morrer, numa pessoa com doença terminal ou lesão definitiva, se altera ao longo do tempo, e em caso afirmativo, saber como, quando, porquê e qual deve ser o impacto daí resultante. Sim, estamos essencialmente perante um problema complexo de tomada de decisão que queremos que seja o mais representativa possível do melhor interesse do doente. Porque todos já tomamos decisões das quais nos arrependemos depois.
Por isso mesmo me é absolutamente incompreensível como tão pouco se tem estudado sobre o processo de tomada de decisão na eutanásia ou no suicídio assistido. Como também não consigo compreender como podem os psicólogos serem tão pouco parte de um processo como este, quando a maior complexidade não está relacionada com a definição do diagnóstico ou a técnica de antecipação da morte, mas sim com a decisão e as condições de decisão do doente, com o facto de estarmos seguros de que ao acedermos ao pedido do doente estaremos de facto a fazer aquilo que é melhor para ele.
Apelo a que não se tente diluir a responsabilidade de uma decisão destas num referendo. Não se procure politizar ou promover ideologias num tema tão difícil. Vamos procurar, sim, encontrar soluções que limitem e previnam ao máximo potenciais erros de avaliação e que valorizem a relação e a confiança entre profissionais de saúde e doentes. Vamos procurar compreender melhor porque é a evolução do desejo de morrer distinta num doente terminal face a uma pessoa com uma lesão definitiva. Vamos criar condições para que as pessoas possam reflectir, livremente e sem juízos de valor, sobre as suas decisões e receios com alguém capaz de a ouvir e de a compreender, sem com isso (a) julgar. Vamos, portanto, procurar soluções que humanizem os cuidados de saúde e promovam, de facto e deste modo, a dignidade da pessoa.»
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