De Sandor Zsiros • Últimas notícias: 02/10/2020
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A questão do Estado de direito tornou-se central na União Europeia na última década, com a Hungria e a Polónia no centro das atenções e muitos preocupados com os padrões democráticos destes países: Bruxelas diz que Budapeste e Varsóvia estão a violar os valores europeus. Mas a Comissão Europeia decidiu alargar o horizonte e avaliar a situação da democracia e da corrupção nos 27 estados membros, um por um.
Sándor Zsíros, Euronews:
A nosssa convidada é Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e transparência. Acaba de apresentar o primeiro relatório da Comissão Europeia sobre o Estado de Direito. Mas quão saudável é a democracia europeia?
Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e a transparência:
Este é um momento importante. Por que razão apresentámos o relatório? Não é um relatório qualquer, não é uma coisa trivial. Porque precisávamos de fazer uma boa avaliação da situação em todos os Estados membros. Estamos a analisar a situação na esfera judicial, especialmente sobre a independência do poder judicial e o equilíbrio dos poderes entre os diferentes ramos. Estamos também a analisar, com um olhar fresco, o que os Estados membros fazem contra a corrupção. E a analisar também a situação dos meios de comunicação social, porque os meios de comunicação social não são apenas atores económicos, têm também um papel muito crucial na proteção da liberdade de expressão e da democracia.
Os meios de comunicação social têm um papel fulcral na defesa da liberdade e da democracia.
Věra Jourová
Vice-Presidente da Comissão Europeia
Quais são as principais conclusões do relatório? Onde vê mais problemas relacionados com a liberdade dos meios de comunicação social, com o sistema judicial e com a corrupção?
Os principais problemas, fazendo uma avaliação geral, estão no mundo judicial. Há tendência para impor mais pressão política sobre o sistema, sobre os juízes, especialmente do lado do poder executivo, ou seja, dos governos. Precisamos de ter a certeza absoluta de que em cada país temos juízes independentes que decidem com base na lei e não com base em quem é que deve ser combatido e como. É um princípio muito claro que temos: Igualdade perante a lei, que tem de ser garantida pelos juízes. A politização do poder judicial, bem como as pressões políticas e económicas sobre os meios de comunicação social a que assistimos em muitos países são tendências que estão a piorar. Temos dados muito precisos, recolhidos nos últimos dois anos. Os meios de comunicação desempenham também um papel muito importante, como disse, na defesa da democracia e da verdade. Os jornalistas profissionais que sentem um elevado nível de responsabilidade são, evidentemente, aqueles que devem fornecer informações objetivas aos cidadãos.
Porque queremos que os cidadãos estejam bem informados ao fazer julgamentos e ao tomar decisões, nomeadamente quando votam. Quanto à luta anticorrupção, precisamos de fazer mais em alguns Estados membros. Existem mecanismos suficientes, que funcionam bem para combater a corrupção. Mas em alguns estados não vemos isso a funcionar. O que se reflete naquilo que ouvimos da parte de cidadãos e empresas - que em alguns países, as pessoas simplesmente não confiam nas instituições para lutar contra a corrupção. E penso que é nesse fator que temos de nos focar mais.
Věra JourováOlivier Matthys/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved.
Dois países estão sob o processo do Artigo 7: Hungria e Polónia. Acha que ainda são boas democracias em funcionamento?
Abordámos muito bem os problemas e expressámos as nossas preocupações nos diferentes documentos e análises relativos à Polónia e Hungria. Temos o processo do Artigo 7 já desencadeado para ambos os países. Nunca acreditei que este artigo fosse alguma vez utilizado e temo-lo aqui. Por isso, é importante que este processo esteja em curso. Quando vemos casos concretos de violação da legislação da UE, abordamo-los através de processos por infração. E o relatório de hoje é complementar às medidas e instrumentos que acabei de mencionar. Porque o que ouvimos da Polónia e da Hungria é que nos concentremos também em outros países. Por isso, estamos também a concentrar-nos nos outros. Penso que este é um momento muito importante, quando vemos a situação nos Estados-membros descrita com base em critérios objetivos. Tentámos, honestamente, ser objetivos na avaliação. O método que utilizámos foi muito transparente e inclusivo. Houve cooperação do lado dos Estados-membros.
Vê a vontade destes países de cooperar e de mudar relativamente a estes pontos sobre os quais escreve no relatório?
Vimos vontade de cooperação de todos os Estados membros. Foi um exercício muito exigente. Os nossos colegas estavam a avaliar os relatórios e as conclusões das discussões com, penso eu, 300 organismos diferentes, de todos os Estados membros. Portanto, a vontade estava lá. Penso que ao fazer este trabalho, ao introduzir esta ferramenta preventiva que é o relatório apresentado hoje, estamos a dar mais ênfase ou mais impulso à razão pela qual é importante proteger e defender ativamente o Estado de direito nos Estados-membros e que deve ser um interesse comum. Não pode ser apenas para a Comissão Europeia. Não podemos estar sozinhos nisto. Por isso, devo dizer que fiquei agradavelmente surpreendida com o nível e qualidade da cooperação. Esta é a primeira edição que apresentamos hoje. Serão relatórios anuais, pelo que no próximo ano veremos as tendências. O que vamos fazer com as novas conclusões? Em muitos casos, abrir-se-á a porta ao diálogo com os respetivos Estados-membros.
Não se trata apenas da Polónia e da Hungria: O relatório também destaca os desafios que existem nos sistemas de justiça da Bulgária, Roménia, Croácia e Eslováquia. Na Bulgária e Malta, os meios de comunicação social estão ligados às forças políticas, enquanto em Espanha, Eslovénia, Bulgária e Croácia os jornalistas são frequentemente ameaçados ou atacados.
Temos visto também alguns suspeitos não habituais. Quais são as principais preocupações para si, além da Hungria e Polónia?
Em alguns Estados, vemos uma tendência negativa no mundo dos media. É bom ler os relatórios em que somos muito abertos e precisos na avaliação. Há também uma falta de ação, sobretudo no que toca às investigações e acusações de delitos penais no mundo das finanças. Por isso, ao mesmo tempo, tentámos fazer avançar a proposta de ligar o princípio do Estado de direito à investigação eficaz da acusação de fraude financeira. Estamos agora a alargar o número de instrumentos que temos em mãos. Falando de dinheiro, vamos distribuir mais dinheiro. O dinheiro deve servir bons propósitos. Também tenho de mencionar as ajudas que vão ser dadas a todos os Estados membros para que possam sair da crise causada pelo Covid. Por isso, não podemos manter um sistema em que aumentamos a quantia de dinheiro distribuído e, ao mesmo tempo, lidamos com o facto de que existe este nível decrescente de confiança. Temos de introduzir mais algumas salvaguardas.
Estamos no meio das negociações orçamentais, como a senhora disse. Mas será o dinheiro realmente a única forma de convencer estes países a salvaguardar os valores?
Claro que não. Temos de utilizar todas as medidas e instrumentos que temos em mãos. Quanto ao dinheiro, penso que é um aviso muito sério para todos os Estados que continuam a violar o princípio do Estado de direito: ao condicionar o dinheiro, os contribuintes nos Estados membros, especialmente daqueles que são contribuintes líquidos, querem ver mais salvaguardas. E não devemos desistir do diálogo com os Estados membros, especialmente com aqueles em relação aos quais temos preocupações. Temos, simplesmente, de admitir perante nós próprios que fomos ingénuos no passado ao acreditar que o princípio do Estado de direito está lá para sempre, que vai funcionar sem problemas, que é automático, uma espécie de movimento perpétuo. Que os direitos fundamentais serão sempre respeitados em todo o lado. Que a proteção das minorias estará em vigor em toda a parte. É bastante claro que temos de aumentar a pressão sobre os Estados-membros para que estejam conscientes de que estes são os princípios sagrados do clube. Porque se trata, mais uma vez, da confiança entre os Estados-membros.
Por exemplo, que os tribunais independentes estão a trabalhar em todo o lado com a mesma qualidade e certeza. Trata-se também da confiança das pessoas nas instituições. Também aqui vemos uma lacuna. A confiança das pessoas nas instituições está a diminuir.
Temos de admitir que fomos ingénuos no passado, ao acreditar que o princípio do Estado de direito está lá para sempre, que vai funcionar sem problemas, que é automático, uma espécie de movimento perpétuo. Que os direitos fundamentais serão sempre respeitados em todo o lado.
Věra Jourová
Vice-Presidente da Comissão Europeia
Não acha ingénuo acreditar que esse condicionamento orçamental vai ser aprovado, quando há países que o podem vetar?
As negociações estão em curso. Eu não gostaria de desistir nesta fase, ou sequer dizer algo que possa por em causa a importância desta proposta.
Esta semana, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, exigiu a sua demissão porque, numa entrevista, disse que o seu regime era uma democracia doente. Arrepende-se dessa escolha de palavras?
Não, não me arrependo. O que eu disse, eu disse. Disse talvez centenas de vezes que temos sérias preocupações em relação ao estado de coisas na Hungria. Usei palavras diferentes, mas falei sobre a mesma coisa e sobre preocupações sérias. Houve algum mal-entendido também no que disse, porque me lembro muito bem que a principal mensagem na entrevista que dei foi que a primeira e última palavra deve pertencer aos cidadãos, ao povo húngaro. Eu respeito muito o povo húngaro e a sua livre escolha. Reconheço que o Primeiro-Ministro Orbán ganhou as eleições, e acabei de dizer que precisamos de ver em todos os estados-membros, incluindo a Hungria, condições para garantir ao povo uma escolha livre e justa.
Não me arrependo nada (das palavras que usei contra Viktor Orbán)
Věra Jourová
Vice-Presidente da Comissão Europeia
E pensa que ainda existe, na Hungria, uma escolha livre e justa, em eleições?
Há condições que têm de ser preenchidas. Em primeiro lugar, igualdade de condições nas campanhas políticas e transparência sobre, por exemplo, o financiamento das campanhas. Depois, tem de haver liberdade de expressão e um bom funcionamento dos meios de comunicação e do controlo judicial, porque pode haver situações em que os resultados eleitorais em qualquer país possam ser postos em causa. Aí têm de ser os tribunais a decidir. Só quando essas condições se verificam é que podemos falar de eleições livres e justas.
Como irá lidar no futuro com o governo húngaro? Porque eles também estão a cortar os laços consigo.
Estou pronta para um diálogo com todos os Estados-membros e todos os parceiros.
Como pode a Comissão Europeia promover o pluralismo dos meios de comunicação social na Europa?
É um tema difícil, devo dizer. Porque não dispomos de competências jurídicas muito fortes. Temos algumas. Por exemplo, agora, no dia 20 de setembro, entrou em vigor a diretiva sobre o audiovisual. Vamos analisar a forma como os estados membros a estão a implementar na sua legislação nacional e, sobretudo, na prática. Até agora, apenas alguns Estados-membros notificaram a sua implementação. Por conseguinte, vamos analisar isso e utilizar a nossa competência legal. Mas, quanto ao resto, não temos competências jurídicas suficientemente fortes. Recomendámos várias vezes aos Estados membros que protejam ou ajudem os meios de comunicação social agora, na altura da Covid, para sobreviverem economicamente. Há vários Estados-membros que estão agora a aplicar a ajuda estatal também aos meios de comunicação social, para os ajudar a manter os empregos e assim por diante. Portanto, existem diferentes formas, e creio que seremos bem compreendidos na tentativa de apoiar os meios de comunicação social independentes, porque eles são muito necessários.
Věra Jourová com o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg.Francisco Seco/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved
Com a pandemia, os países europeus apressaram-se a aplicar leis de emergência que limitavam as liberdades civis e a livre circulação dos cidadãos. Paralelamente, uma nova onda de notícias falsas e de desinformação inundou a Internet. Em muitos casos, a Rússia e a China estavam por detrás.
Pensa que depois da pandemia seremos capazes de voltar a uma espécie de velha normalidade em termos de democracia?
Em muitos aspetos, o "velho normal" não era um bom normal. Já tínhamos problemas antes da pandemia, como sabemos. O tempo da Covid ditou a imposição de estados de emergência na maioria dos países membros. Tentámos, com esforço, convencer os Estados-membros a respeitar o princípio da necessidade e proporcionalidade das medidas. Porque um regime de emergência não deve significar que se desligue o equilíbrio constitucional e o controlo judicial, ou que se silenciem os meios de comunicação social e os cidadãos ativos. Em relação a este tempo e aos regimes de emergência, fomos muito claros sobre como gostaríamos de ver isto acontecer. Também, a propósito, a proteção da privacidade estava em jogo e entregámos as diretrizes para os Estados-membros sobre como utilizar as aplicações de rastreio sem exagerar e sem privar as pessoas da sua privacidade. Penso que esta é a lição para o futuro. Perguntou sobre o novo e o antigo normal. É um processo sem fim. Como disse, costumávamos ser ingénuos. Pensávamos que se tratava de um automatismo. Não é. Portanto, continuaremos a defesa ativa do Estado de direito e da democracia na Europa. Gostaria de dizer que temos de ir além das palavras. Temos de fazer. Mais defesa, mais proteção.
A pandemia trouxe também consigo uma enorme onda de notícias falsas. Têm instrumentos para as combater?
É algo que vem de antes da Covid e que foi amplificado com a pandemia. Já antes tínhamos um grande problema com influência estrangeira e campanhas de desinformação. Tivemos vários setores sob ataque permanente de desinformação: Minorias, migração; mais recentemente as políticas verdes... Uma novidade é a grande e intensa onda de desinformação contra as vacinas. Portanto, nada disto é novo. Este fenómeno de desinformação tem de ser enfrentado. Mas de uma forma muito cuidadosa e sensata. E posso apenas dizer-vos que estamos a planear algumas novas regras para a Internet, mas no que toca à desinformação não estamos a introduzir qualquer tipo de censura ou algum tipo de limitação à liberdade de expressão.
Em muitos aspetos, o 'velho normal' não era um 'bom normal' (...) O fenómeno das notícias falsas vem de antes do tempo da Covid, mas foi amplificado com a pandemia.
Věra Jourová
Vice-Presidente da Comissão Europeia
Como lidam com as tentativas de desinformação estrangeiras, especialmente da China e da Rússia?
O nosso Serviço de Ação Externa está a trabalhar ativamente na deteção destes ataques coordenados e nas tentativas de influenciar a opinião pública na UE. Estamos a trabalhar com plataformas de Internet, porque queremos que informem o público sobre estes casos, para que as pessoas saibam que se trata de pressão vinda do exterior. E também queremos que as pessoas compreendam melhor qual é a finalidade desta pressão, qual é a finalidade de diferentes campanhas de desinformação. Provavelmente eu, como cidadão, estou sob a influência de alguém que quer distrair a nossa sociedade, semear o ódio e a desconfiança em relação às instituições. Penso que temos aí uma grande lacuna. É preciso tornar claro qual é o objetivo da desinformação e que esta pode ser muito perigosa.
Agora, as relações da Europa com a Rússia sofreram um novo golpe com o caso Navalny. Acha que a Europa deveria impor sanções à Rússia por causa desta questão?
Penso que o debate está em curso no Serviço de Ação Externa e também no Conselho de Negócios Estrangeiros. Este é, de facto, um grande golpe e não podemos deixá-lo sem reação. Tenho a certeza absoluta de que este é momento decisivo também nas nossas relações.
Pensa que poderia haver unidade sobre esta questão na Europa?
Precisamos de unidade para as sanções.
_Entrevista gravada na sede da Comissão Europeia, em Bruxelas, no dia 30 de setembro. _
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