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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A queda

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 20/11/2020)

Daniel Oliveira

Em março, a ansiedade coletiva era compensada por uma sensação de partilha. Imagens virais de serenatas para animar os vizinhos em tempo do confinamento davam-nos, no meio do drama, algum autocontentamento com a redescoberta romantizada da ideia de comunidade. Mas, à medida que a crise vai empurrando mais gente para o desespero, essa paz pontuada pela divergência sobre a melhor forma de lidar com a pandemia vai dando lugar à luta pela sobrevivência. Nunca estivemos todos no mesmo barco, esta crise nunca foi simétrica. Essa ilusão acabou e a notícia de que mais de 80% das doses de vacinas estão reservadas para 14% da população mundial mostra que as coisas são como sempre foram. Em Portugal, como noutros países, a política cumprirá a função de traduzir a crise económica e so­cial. E quem siga a via negacionista estará em melhor posição para lucrar com tudo isto. Sei que é um paradoxo que ganhe quem nega a relevância do vírus quando há cada vez mais mortes que a confirmam. Mas as vítimas da crise serão sempre mais do que as vítimas do vírus. E estarão vivas. Quando a pandemia passar e a crise continuar, cada um olhará para a sua tragédia pessoal e procurará culpados. Como sabemos pelas alterações climáticas, os negacionistas não têm de dar respostas a um problema que não reconhecem. E estão dispensados de encontrar o equilíbrio entre saúde e economia, segurança e liberdade. No fim, a culpa será das medidas e de quem as impôs. Os protestos da restauração foram o primeiro petardo. Quando se confirmar que não salvámos o Natal, outros virão. E à medida que a crise e a fadiga forem apertando será cada vez mais fácil espicaçar a irracionalidade.

É uma pandemia num país pobre, com um Estado e uma economia frágeis. O descontentamento é inevitável. E nem preciso de dizer quem, no espectro partidário, mais ganhará com isto. No acordo dos Açores ou na entrevista que a TVI fez a Ventura está toda a displicência de uma elite política e mediática impreparada para lidar com um oportunismo perigoso que nos bateu à porta no pior momento.

Como na anedota do início de “La Haine”, de Mathieu Kassovitz, isto “é a história de um homem que cai do 50º andar e que repete incessantemente para se tranquilizar: ‘Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem.’ Mas o importante não é a queda, é a aterragem.” Tentemos minorar os efeitos das tragédias sanitária e económica. Mas não continuemos a ignorar de forma irresponsável as suas consequências políticas. A aterragem vai ser brutal.


A mesada

Há dois anos que as sanções europeias à Hungria estão a ganhar pó numa gaveta. Há mais do que isso que o PPE anda a fingir que se zanga com Orbán. Se a UE é um espaço para democracias, Hungria e Polónia já deviam ter sido suspensas ou expulsas. Mas o que não fez em anos, a Europa achou que era de fazer agora, no meio de uma pandemia, associando o fundo de resolução ao respeito pelo Estado de Direito. Quem desrespeita a democracia não recebe a mesada. É como punir o homicídio com coima.

Um Estado autoritário pode votar e pagar, mas não pode receber. Imagino que se não precisar do dinheiro até pode ser autoritário. Como Hungria e Polónia mantêm o seu direito de veto, aconteceu o que se imaginava: bloquearam todo o processo. E também se conhece o fim: ou a exigência pelo respeito pelo Estado de Direito se transforma numa proclamação vazia ou a cláusula cai. A Europa, que foi incapaz de castigar estes dois países até agora, não vai querer afundar-se por causa disto. E até posso adivinhar que, no fim, haverá castigo para quem não aplique as “reformas estruturais” holandesas, mas não para quem maltrate a democracia. Ou esta não fosse a “Europa dos valores”.

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