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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

É ou não “a economia, estúpido”?

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 19/11/2020)

Alexandre Abreu

Existe uma tese há muito dominante na política norte-americana segundo a qual as pessoas votam de acordo com as suas vantagens económicas imediatas, independentemente de outras considerações. Se a economia e os rendimentos estiverem a crescer, os eleitores tenderão a votar em quem já esteja no poder ou, se estiverem no final de um ciclo de dois mandatos, em quem mais confiem que mantenha essa trajetória. Se a economia estiver em crise, tenderão a punir quem está no cargo.

Este tese ficou associada à frase “É a economia, estúpido”, introduzida pelo diretor de campanha de Bill Clinton nas eleições de 1992 contra George Bush (pai). Nessas eleições, que ocorreram logo após a recessão do início dos anos 1990, a campanha de Clinton organizou a sua mensagem em torno dos temas económicos e foi bem-sucedida a afastar Bush da presidência após o primeiro mandato. O sucesso foi generalizadamente interpretado como resultado dessa opção tática, insistentemente martelada por esse diretor de campanha.

No fundo, esta tese diz-nos que as opções do eleitorado decorrem fundamentalmente dos interesses materiais mais do que de outras questões ideológicas, mas enfatiza os interesses materiais de curtíssimo prazo: a tendência de evolução imediata, digamos assim, em detrimento por exemplo dos interesses mais estruturais de classe ou de pertença a um grupo socioprofissional específico. É portanto uma espécie de materialismo elementar em versão de curto prazo. Obviamente simplista, mas ao mesmo tempo plausível e certamente consistente com pelo menos alguns desenlaces eleitorais.

Em contrapartida, na discussão em torno do resultado das eleições norte-americanas de 2016, aliás como no debate em torno das explicações do resultado do referendo do Brexit, as análises afastaram-se bastante desta ideia. As tentativas de explicação organizaram-se pelo contrário em dois grandes pólos, nenhum dos quais deu grande importância à trajetória económica de curto prazo: de um lado, as explicações em torno da dimensão cultural (o ressentimento das classes populares, dos meios rurais e das pequenas comunidades face às elites culturais urbanas e à mudança social acelerada); do outro, as explicações económicas, que sublinharam a dimensão material mas de longo prazo (o declínio económico das regiões que apoiaram esta viragem reacionária, no contexto do neoliberalismo e globalização). É um debate que nunca foi categoricamente resolvido, precisamente porque as duas dimensões se articularam entre si, independentemente de qual tenha sido o primum movens. Em todo o caso, e significativamente, a questão da trajetória económica de curto prazo não teve um papel relevante na discussão.

Tudo isto traz-nos até às eleições de 2020 e à interpretação dos seus resultados à luz deste debate. Logo no dia 4 de novembro, um inquérito realizado à boca da urna pareceu apontar para o regresso da “economia, estúpido”: quando questionados acerca de qual a questão que havia sido mais determinante para o seu voto, uma maioria relativa dos eleitores norte-americanos inquiridos (35%) referiu a economia, seguida a alguma distância pela desigualdade racial (20%) e pela pandemia de coronavírus (17%). E isso parecia favorecer Donald Trump: após um longuíssimo período de estagnação (praticamente desde os anos ’70), o rendimento mediano real (ajustado à inflação) dos agregados familiares norte-americanos cresceu significativamente durante a presidência Trump, melhorando a situação económica da maioria, pelo menos até à pandemia e recessão de 2020.

A discussão das causas, da sustentabilidade e da responsabilidade da administração Trump nesta evolução é complexa e não pode ser feita em poucas linhas. Entre outros aspetos, deve ter-se em conta que este aumento dos rendimentos, muito associado à redução do desemprego para mínimos históricos, antecede a chegada ao poder de Trump (remontando a 2014) e que foi propulsionada pelos défices orçamentais incorridos nos últimos anos apesar da economia estar em expansão (considerados insustentáveis pela maioria dos analistas e seguramente tendentes a aprofundar a desigualdade). Em todo o caso, podemos perguntar-nos: se a economia foi a questão mais determinante no momento do voto, se (pelo menos até à pandemia) a economia vinha evoluindo favoravelmente e se a maioria do eleitorado considerava Trump responsável por essa evolução, então porque é que Trump não ganhou?

Na realidade, Trump perdeu as eleições apesar da “economia, estúpido”: por causa da sua incompetência na gestão da crise pandémica, das suas responsabilidades na intensificação das tensões raciais e dos seus traços de caráter repulsivos. Na mesma sondagem realizada em Setembro em que uma ligeira maioria dos inquiridos norte-americanos afirmava confiar mais em Trump do que em Biden quanto à “economia e emprego”, a confiança em Biden excedia a confiança em Trump relativamente a todos os outros temas.

A resposta “economia” como tema decisivo na sondagem à boca da urna padece daquilo que em jargão económica é conhecido como endogeneidade. Isto é, em grande medida não antecedeu em termos causais o voto em Trump, mas resultou deste: era a escolha de tema que decorria logicamente de uma preferência eleitoral por Trump, dado que as outras opções, como a pandemia ou as tensões raciais, eram obviamente desfavoráveis a Trump. E isto independentemente de quais tenham sido os motivos mais profundos dessa escolha eleitoral, das ‘culture wars’ às questões económicas de curto e longo prazo.

A economia, e especificamente os interesses materiais individuais e imediatos, é certamente um determinante fundamental das escolhas políticas. Mas os analistas e estrategas políticos que adotem uma visão demasiado simplista destas determinações estarão eles próprios a ser “estúpidos”.

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