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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

No desespero, não estamos todos no mesmo barco

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/11/2020)

Daniel Oliveira

Independentemente dos abusos a que assistimos nas manifestações de empresários e trabalhadores da restauração, não nos devemos desviar do essencial. E o essencial não são os oportunistas que organizaram a descida da Avenida da Liberdade e se colaram àquelas pessoas no Rossio, liderados por um menino de gestão que tem um primo que tem um hotel, que por acaso é do Chega e que “sozinho” organizou uma manifestação “apartidária”. Esses são os abutres do costume.

O fundamental também não são algumas das exigências que podemos considerar excessivas, entre as quais está seguramente a ideia de que o Estado deve qualquer apoio a empresas que não pagaram os impostos que deviam - como se a solidariedade só tivesse um sentido. O importante também não é os protagonistas que mais aparecem, cuja situação será das que menos me preocupa. O fundamental é que há um sector (não é o único) que está a desabar e que isso terá repercussões devastadoras na economia e no emprego.

Não estou seguro de que o "meio confinamento" de fim de semana seja uma medida sensata. Já o disse: a ausência de números fiáveis, resultado da saúde pública ter sido sempre o parente pobre de um sistema hospitalocêntrico, torna arriscado este tipo de escolhas. E é considerável a probabilidade de o mal causado ser maior do que se pretende prevenir, por não sabermos ao certo que parte dos famosos 67% resultam de contactos familiares fora do agregado familiar.

Esta pandemia é, para quem queira mais do que procurar um culpado, uma boa lição de política. O hábito de resumir tudo a “vontade política” esbarra com aquilo que a política realmente faz: escolhas que têm quase sempre consequências negativas. A infantilização da nossa comunidade, viciada na “denúncia” e com pouco hábito de reflexão coletiva, imagina que basta a ação de políticos honestos e informados para que tudo corra pelo melhor. Isso não existe. Neste caso, a escolha é entre deixar os cuidados intensivos chegar ainda mais depressa ao seu limite ou destruir a economia. É algures entre as duas coisas que estará a escolha menos errada. Quanto pior for a informação com que os decisores trabalham maior a probabilidade de erro. Coisa que o político que “não gosta de gabinetes” mas de “obra feita” nunca percebeu. Nem os eleitores que o apreciam.

Vivemos, na primeira vaga, num quase consenso. A crise começou logo a sentir-se em vários sectores, mas havia a convicção generalizada de que isto ia passar mais ou menos depressa. Agora, quando começa a ficar claro que a pandemia não acabará a tempo de salvar os que vivem as situações mais dramáticas, as posições deixaram de depender de divergências de opinião, mesmo que influenciadas pelo contexto de quem as tem. Passaram a ser uma luta pela sobrevivência. É difícil pedir a quem perde o emprego ou tudo o que tinha que ignore o seu drama pessoal em nome de um bem comum, que é sempre mais abstrato e, neste caso, com uma enorme margem de dúvida. Não é egoísmo, é desespero. E num país pobre, vai ser ainda mais difícil responder a este desespero.

Na primeira vaga, parecia que estávamos todos no mesmo barco. Com a pandemia e a crise, o barco está a afundar-se, aqui e em quase todo o lado. E fica cada um no seu bote, dependente das suas circunstâncias. É o preço que pagamos por sermos um dos países mais desiguais da Europa e um Estado Social demasiado curto, ao contrário do que nos vendem há anos.

Não tenho como dizer a quem vive uma tragédia pessoal que se esqueça de si e dos seus e pense primeiro nos outros. Essas pessoas têm direito a estarem cansadas. Porque o seu cansaço resulta de um caminho para o abismo sem fim à vista.

À crise económica sucede uma crise social. E a elas sucederá uma crise política, que serão os mais irresponsáveis a aproveitarem primeiro. Por isso, é fundamental que não se instale um ambiente de censura social à crítica, que apenas favorecerá quem não olha a meios para ter ganhos políticos. Com sentido de responsabilidade e não promovendo uma desobediência que num momento como estes se paga com vidas e apenas daria argumentos para limitar liberdades, não se pode entregar a divergência aos “aldrabões pela verdade”. Os que realmente querem ajudar com a sua crítica não seguem o caminho fácil de negar a origem do problema. Já os negacionistas organizados apenas querem lucrar com a tragédia sem ter de discutir as soluções.

É difícil, em momentos como estes, ouvir a razão. Mas os que vivem as situações mais dramáticas não se devem entregar nos braços de quem usa a sua tragédia para instalar um caos que tornará tudo ainda mais demorado e penoso. Os restantes, sobretudo os que com toda a fadiga não vivem dramas destas dimensões, que baixem o dedo acusador. O desespero não desculpa tudo, mas exige a nossa capacidade de ouvir quem grita.

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