por estatuadesal
(José Gameiro, in Expresso, 07/11/2020)
Nunca me interessei muito pelo futebol. Claro que gosto de ver um bom jogo, ainda que tenha dificuldade em estar atento os 90 minutos. Não percebo nada de táticas, não sei o nome da maior parte dos jogadores, equipas com camisolas que não conheço, demoro algum tempo a perceber de que lado está cada uma. Nada me move contra o gostar. Tenho muitos amigos que sabem tudo. As jogadas do seu clube que aconteceram há 30 anos, os nomes e a história de cada jogador, o esquema de jogo utilizado por cada treinador. Reconheço a emoção de ir a um estádio ver um bom jogo, mas a última vez que fui talvez tenha sido há 20 anos, o Portugal-Azerbaijão, com os meus filhos. Apesar das diferenças clubísticas e das enormes discussões sobre cada jogada, o futebol une as pessoas como nenhuma outra atividade o faz. A complacência perante os negócios do futebol e os valores pagos aos bons jogadores contrasta, de uma forma chocante, com a intolerância perante qualquer ideia de aumentar o vencimento dos agentes políticos, tidos como aldrabões e corruptos... Diga-se em abono da verdade que muito poucos têm a coragem de discutir isto, com receio de perderem votos. Com a pandemia fomos invadidos pelo medo. Meses de abertura dos jornais televisivos com o número de mortos diários e acumulados. Entre o dever de informar e a procura de grandes audiências, a margem nem sempre foi clara. Estávamos todos à espera, diariamente, do boletim da DGS e rapidamente ficámos epidemiologistas... Ouvimos opiniões que tinham a coragem de dizer que a incerteza era muita grande, mas também assistimos a grandes presunções de conhecimento e muitos disparates. Ainda hoje estamos longe de saber como isto vai acabar, mas as profecias continuam. As vozes discordantes com as análises feitas e as medidas tomadas ouviram-se pouco ou foram caladas, numa falsa unanimidade, inimiga do direito ao contraditório. O medo, por nós ou pelos que nos são próximos, permitiu que fossem tomadas decisões coercivas, juridicamente discutíveis, a que alguém até chamou uma “trapalhada”. Mas tudo continuou.
Nos primeiros meses, a luta política ficou como que adormecida. Não seria muito popular pôr em causa a organização da resposta do SNS à pandemia. Com o evoluir e o recente aumento de casos, a saúde tornou-se um terreno privilegiado de disputa. Com muita demagogia e não poucas mentiras, os ataques foram subindo de tom, esquecendo que toda a Europa está na mesma situação, apesar das diferentes soluções adotadas.
A comunicação sobre a pandemia foi frequentemente amadora, com mensagens contraditórias, algumas a roçar a subalternização da inteligência dos portugueses. Foi fácil perceber, várias vezes, as diferenças de opinião entre quem quer decidir com base no conhecimento existente e quem pensa na vox populi. Passámos do espetáculo epidemiológico ao circo dos interesses. O SNS passou de herói e garantia da segurança dos portugueses a alvo de ataques de pessoas e entidades, motivadas por interesses económicos ou ideológicos. Estamos cansados disto? Eu estou e vejo à minha volta sentimentos de exaustão, agravados por disputas cada vez mais incompreensíveis pelo comum dos mortais... Descobri, por influência de amigos, o prazer de ver não só jogos mas sobretudo programas de debate futebolístico. Na minha, ainda pouca, literacia sobre o tema, começo a emitir opiniões e a contrariar adeptos de muitos anos. Os comentadores televisivos, felizmente os piores migraram para a política, parecem-me pessoas sérias, sabedoras, nada facciosas, intelectualmente honestos e, ao contrário de alguns da pandemia, não fazem prognósticos antes do fim do jogo. Ouvi-los relaxa-me, põe-me bem-disposto, pronto a mais uns meses de sofá.
Desculpem terminar com um conselho: se estiverem fartos de ouvir falar do vírus, não percam uma conferência de imprensa do Jorge Jesus. Garanto-vos que é muito melhor do que falar com um psiquiatra ou um psicólogo.
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