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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O que o “Gambito da Rainha” nos ensina sobre a vida (e a política)

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 17/11/2020)

Para bastante gente, “O Gambito da Rainha” tem sido uma acolhedora companhia no semi-confinamento em que vivemos. A série tem tido sucesso, seja porque junta uma personagem fascinante, mesmo que puramente ficcional, Elizabeth Harmon, a algum romance, pouco, ao retrato sofrido das esquinas da vida, ou ainda a uma pitada de Guerra Fria em tom de época, seja, e sobretudo, porque se constrói sobre um mistério. Esse mistério é o xadrez, dois exércitos de oito peões e oito aristocratas frente a frente num pequeno tabuleiro.

Representando uma batalha, o jogo de xadrez foi-se transformando numa lenda, entendido como a encarnação do artifício estratégico, da inteligência da antecipação e da vontade de vencer. Outros jogos de outras latitudes cumprem essa função, mesmo que de forma distinta, valorizando mais a posição do que o movimento (o go chinês, por exemplo). No entanto, o xadrez cria uma representação de poderes diferenciados (o bispo, a torre, o cavalo, o rei e a rainha, ou os peões, que eram tão importantes para Beth Harmon), que gera assim uma tal complexidade de movimentos e estratégias que o torna sempre surpreendente. É dessa complexidade que lhe quero falar, porque ela nos pode ensinar alguma coisa.

Entre os economistas, o xadrez tem uma história. Foi a imagem usada por Herbert Simon, Prémio Nobel em 1978, para explicar a alguns colegas porque é que a sua fábula dos mercados perfeitos e da racionalidade maximizadora estava errada. Imaginem um jogo de xadrez, que é um tabuleiro fechado e com poucas peças, sugeriu ele. O número de jogadas possíveis é tão elevado que nenhum jogador as pode adivinhar a todas e, portanto, nunca pode ter a certeza de que a sua jogada é a melhor. Mesmo nestas 64 casas, em que não entra mais ninguém e as regras nunca mudam, não há informação completa e a trajetória ótima é incalculável. Como é que me podem então dizer, perguntou Simon, que um mercado com milhões de empresas e de pessoas vai gerar um caminho ótimo que contentará toda a gente, ou que agentes omniscientes vão saber qual é essa solução?

Simon tinha razão. Antes dele, já um matemático brilhante, Claude Shannon, tinha divulgado em 1950 o seu cálculo de quantas jogadas são possíveis num jogo de xadrez. Queria programar um computador teórico, quando as máquinas ainda mal começavam a ser inventadas, e publicou a sua conclusão numa revista de filosofia. Admitindo quarenta movimentos de cada parte (Hamon venceu várias partidas com trinta, mas seria genial) e trinta possibilidades em média para cada movimento, o número de jogadas possíveis seria de 10120 (outros fizeram cálculos superiores). Em comparação, o número de átomos do universo será de cerca de 1080 e o número de segundos desde o Big Bank, ou desde a formação do universo, de cerca de 4,4*1017, ou 13,7 mil milhões de anos. Há muito mais jogadas possíveis num jogo de xadrez do que segundos na história do universo ou do que todos os seus átomos. Ninguém pode conhecer ou antecipar todas.

Nem por isso os grandes jogadores de xadrez não deixam de prever várias das alternativas de que dispõem ou que os seus adversários terão para lhes responder, mesmo que não as possam conhecer a todas. Se viu a série, lembrar-se-á de que esse era a força de Beth Hamon, ela imaginava, simulava e comparava um grande número de soluções possíveis. Portanto, o facto de o jogo ser imprevisível na sua totalidade não impede que se tomem decisões bem fundamentadas e que podem levar à vitória. Se a metáfora deste jogo serve para a vida, que é ainda muito mais complexa – em que entram novas peças e jogadores, as regras são alteradas e a história muda –, então indica que se podem fazer escolhas, pelo menos sobre os riscos do futuro que vamos reconhecendo. E é aqui que entra, entre muitas outras questões da dia a dia, a política.

Ora, ao contrário da pretensão daqueles economistas que, para defenderem o liberalismo radical, inventaram a ficção de um agente económico que sabe tudo sobre o presente e o destino do universo, na política tende a predominar quem só se preocupa com a jogada imediata. O tempo parece mesmo ser dos jogadores tonitruantes. Num mundo de hiper-comunicação e num contexto em que a direita explora as técnicas do trumpismo, ou seja, o ressentimento como combustível político, parece só contar a próxima jogada: o máximo de barulho, o máximo de ódio, o máximo de atenção. O problema é que existe sempre um amanhã. A estratégia trumpista resulta enquanto estivermos presos a sucessivos hojes, enquanto o medo se instalar no imediato, enquanto se olhar para o lado e não para a frente. Mas o facto é que esta estratégia tão bem sucedida levou à derrota de Trump, mesmo quando tinha o aparelho institucional mais poderoso do mundo ao seu dispor.

Não vale a pena a ilusão de que este processo só ocorre na direita. Ele contamina quase toda a política: a busca do efeito do anúncio pelos governos é mais cuidada do que a concretização de promessas. Governos que apresentam planos de apoio aos trabalhadores em lay-off, aos da cultura, aos dos restaurantes, aos informais, e que depois a poucos chegam, não é só o caso deste cantinho à beira-mar plantado. A corrida à televisão para apresentar programas, anúncios, linhas de financiamento, tornou-se uma segunda pele da política. E depois descobre-se que casas de Pedrógão não foram reconstruídas, que nenhum trabalhador informal recebeu em novembro, que houve linhas de crédito que não foram regulamentadas, que o investimento ficou por metade, que os prazos passaram.

Na resposta à pandemia é onde esse mecanismo de ilusão se torna mais ameaçador, estamos a assistir à rápida e autorizada decadência do serviço nacional de saúde. Então, entre o caso dos xadrezistas que ganham por calcular longos caminhos, e é a qualidade do jogo, e o dos governantes que procuram apoio imediato e ignoram o dia seguinte, e parece ser a circunstância da política, não haverá, apesar de tudo, a possibilidade do bom senso, pelo menos na saúde? Talvez disso dependa o futuro imediato de Portugal. Aprovar as condições para um SNS com capacidade suficiente significa fazer com que, neste caso, a democracia vença a desigualdade. Por isso, como podemos escolher, mesmo com a incerteza sobre o que vem pela frente, devemos fazê-lo.

Este catastrófico fim de 2020 e o ano de 2021 são o tempo em que ou remendaremos, para continuar a penar o atraso, ou reconstruímos esse serviço de proteção social. Pela minha parte, vou medir as respostas dos políticos, como agora se diz, pelo que fizerem para garantir a proteção da saúde da nossa gente. O Gambito da Rainha é o nome de uma abertura da partida. Uma boa ideia. Mas, para Portugal, talvez o mais importante seja o que os jogadores não podem e nós temos que fazer: alterar a regra do jogo.

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