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sábado, 7 de novembro de 2020

Os despojos da noite americana

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/11/2020)

Cartoon de António in Expresso, 07/11/2020

1 Mais de três dias para contar os votos e saber quem ganhou uma eleição é próprio de democracias principiantes de África ou da América do Sul, não do país mais desenvolvido do mundo. Que houvesse 160 milhões de votos para contar e muitos deles enviados pelo correio não é desculpa nem justifica que dois estados cujos votos poderiam ter indicado o vencedor 24 horas após o fecho das urnas — Arizona e Nevada — tenham ficado mais de 36 horas depois sem acrescentar nada à contagem em que já iam então, de 86% e 96%. No país da sofisticação tecnológica e científica, ficar a assistir durante três penosos dias ao espectáculo de um processo de contagem pré-histórica de votos, enquanto o candidato que se antevê derrotado clama vitória com 20% dos votos contados e bombardeia os tribunais com pedidos para parar a contagem onde está à frente e prosseguir onde está atrás, é simplesmente degradante. Mas, às 2 da manhã de sexta-feira, assumo que, embora não oficialmente ainda, Joe Biden ganhou a eleição e em termos que obrigarão algumas raras cabeças ainda sensatas do Partido Republicano a explicar a Donald Trump que chegou o momento de declarar “game over”.

2 Que todo o sistema de colégio eleitoral por estados é profundamente estúpido, consentindo regras diferentes de votação e de contagem de votos, já se sabia, assim como se sabia que a justificação de servir para combater o centralismo de Washington contra o poder dos Estados serve apenas para favorecer os republicanos contra os democratas e para poder desvirtuar a vontade popular maioritária expressa nas urnas. Em 2016, Hillary Clinton tinha perdido para Trump apesar de ter obtido mais 3 milhões de votos; agora, Biden ganhou dificilmente no colégio eleitoral, apesar de ter aumentado essa diferença para mais de 4 milhões.

3 Um dos grandes factos políticos destas eleições foram os 4 milhões de votos a mais que Trump recebeu em relação a 2016, fazendo dele o segundo candidato mais votado de sempre, a seguir ao próprio Biden. Grande espanto de muitos com este resultado e imensas teorias a tentar explicar o que não entendem: como é que um tipo tão ignorante, tão boçal, tão impreparado, tão incapaz, tão irresponsável, tão desavergonhado ao ponto de não pagar impostos, de usar o avião presidencial e a Casa Branca para fazer campanha, que não hesitou em lançar mão de todos os truques baixos para se manter no poder (e o mais que vamos ver), consegue, não apenas manter toda a sua base de apoio, com excepção de uma franja significativa de mulheres (honra e gratidão lhes seja concedida!), e ainda acrescentar a sua legião de devotos? Pois, a resposta é simples: por mais sinistro que seja, Trump é igual a metade dos americanos. Estranho não é que ele tenha sido eleito em 2016, estranho é que Obama tenha sido eleito em 2008 e reeleito em 2012.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

4 Por um misto de sorte e oportunidade, tive um baptismo americano determinante para conhecer esse imenso país. Muito jovem jornalista, ao serviço de um jornal já desaparecido, ganhei uma bolsa de uma Fundação americana que me permitiu visitar pela primeira vez os Estados Unidos. Foi tudo descoberta em estado puro, a começar logo pelo primeiro dia, passado em Nova Iorque, quando, estando a jantar em Times Square, assisti a um tiroteio na rua entre a polícia e uns assaltantes de um café, acabando estendido no chão do restaurante e lá retido durante uma hora. Do deslumbramento de Nova Iorque voei para o encantamento de San Diego, na Califórnia, e aproveitei os dias aí passados para atravessar “a fronteira mais cruzada do mundo”, para o México — onde hoje Donald Trump ergueu um muro. E aí, puseram à minha disposição um carro e uma roulotte com capacidade para quatro pessoas, mas onde, sozinho, atravessei os Estados Unidos, de San Diego a Nova Iorque, do Pacífico ao Atlântico, milhares de quilómetros, durante um mês inteiro. New México, Arizona, Texas, Oklahoma, Arkansas, Missouri, Mississípi, Kansas, Tennessee, Arkansas, Virgínia: o cowboy country, o bastião conservador e republicano dos Estados Unidos. Impressionou-me a sensação de imensidão e de incrível liberdade de que gozei nesse mês, a inacreditável mobilidade de uma população que encontrava nos cafés das zonas de serviço das auto-estradas ou à boleia, deslocando-se muitas vezes sem saberem ao certo para onde, apenas porque o país era imenso e havia, seguramente, uma oportunidade de trabalho e de vida algures. E impressionou-me o patrio­tismo exacerbado, doentio mesmo — no culto asfixiante à bandeira, por exemplo. Eu sei que esse patriotismo inquestionável, a par da invocação de Deus a torto e a direito, permitiram aos Estados Unidos convocar os seus cidadãos e vê-los responder à chamada em momentos decisivos da sua história. O problema é que ali, nessa América tão bem retratada por cineastas como Michael Cimino ou Clint Eastwood, o patriotismo tem, como contrapeso, uma ignorância arrogante e larvar, um profundo desprezo e desconhecimento dos outros e um absoluto convencimento de que tudo o que é americano é melhor, é indiscutível e insubstituível. O pequeno mundo intelectual e cultural desses americanos é tudo o que lhes interessa e quanto lhes basta. E não apenas desconfiam dos outros como os vêem como ameaças ao seu modo de vida e aos seus valores. Que Donald Trump pague ou não pague impostos, que faça com que os Estados Unidos tenham 20% dos mortos de covid no mundo quando apenas têm 4% da população mundial, é-lhes indiferente. O que lhes interessa é que, da cabeça aos pés, Trump é um deles. E melhor ainda se não pensa quase nada e se exprime por roncos no Twitter: mais igual a eles fica.

Esta América não tem nada que ver com a da Costa Leste ou a da Califórnia. É outro mundo, outro país, que só militarmente foi derrotado na Guerra Civil. Olhando para o mapa eleitoral destas eleições, percebo que nada mudou desde que por lá passei. O cowboy country continua no seu mundo à parte. Não desapareceram e não diminuíram. E são muitos.

Essa América de Trump foi agora derrotada nas urnas, mas cresceu em votos, cresceu em militância e destemor e cresceu em falta de pudor. Vão procurar a desforra

5 Essa América foi agora derrotada nas urnas, mas cresceu em votos, cresceu em militância e destemor e cresceu em falta de pudor. No Senado, cuja maioria mantêm, entrou uma adepta confessa do QAnon, devota das teorias da grande conspiração pedófila dos democratas, dos seus ritos satânicos e da mentira mundialmente orquestrada da covid-19.

Em quatro anos, Trump soltou todos os demónios impensáveis que habitavam, escondidos, no mais fundo da mais profunda estupidez dessa gente. Foi por isso que, mais uma vez, as sondagens se enganaram em parte: porque muitos deles têm até vergonha de confessar o que são. Confortados com o controlo do Senado e do Supremo Tribunal, eles vão tornar a vida impossível a Joe Biden.

Vão gritar que a eleição foi roubada, vão fazer de Trump um mártir, evitar que ele seja investigado e acusado por evasão fiscal, por conspirar com Putin, por usar o cargo para traficar influências, por ter perseguido e despedido funcionários que apenas cumpriram o seu dever. Por mais que Biden queira conciliar com eles, eles vão procurar o confronto e a desforra, vão promover os conflitos raciais e a violência nas ruas e vão preparar o regresso de Trump em 2024. Nada os parará, a não ser uma não esperada revolta do Partido Republicano contra o fanatismo ideológico que tomou conta do Partido.

6 Há aqui uma secção de intelectuais a que eu acho muita graça. E acho-lhes muita graça porque passam a vida a citar os livros, os filmes, as séries televisivas, os discos e os artigos de jornais americanos que leem, mas que, quando chega às eleições americanas, declaram, em tom superior, que essa coisa de os nossos media e os nossos colunistas (como eu) se preocuparem tanto com as eleições americanas é uma espécie de saloísmo, pois que isso é assunto da exclusiva competência dos americanos. Só para lembrar, então: estamos a falar do país que detém a maior capacidade militar e nuclear do mundo mas que nos exige 2% do PIB em despesas com a defesa comum na NATO, sem, em contrapartida, garantir as suas próprias obrigações face ao artigo 5º do Tratado; do país que responde por mais de um terço das emissões de CO2 do planeta e que acaba de oficializar a sua saída do Acordo de Paris; do país que amea­ça a UE com uma guerra tarifária se Bruxelas ousar taxar os lucros obtidos na Europa pelas gigantes americanas das telecomunicações; do país que declarou guerra à China (embora, por baixo da mesa, mantenha acordos com ela) e cujo embaixador em Lisboa nos ameaça de tratamento de inimigo se não alinharmos nessa guerra. Tudo isto é fruto da política de Donald Trump nos últimos quatro anos. E querem que tudo isto e a hipótese de mais quatro anos disto nos seja indiferente, enquanto eles lêem as suas revistas americanas de culto e vêem as suas séries preferidas da Netflix, comendo as suas bolachas encomendadas à Macy’s através da Amazon?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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