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quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Menos dramatização e mais soluções

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 27/11/2020)

José Soeiro

Foi António Costa quem afirmou no parlamento, em maio, que não entraria mais dinheiro no Novo Banco sem uma auditoria que permitisse conhecermos as contas e os prováveis abusos da Lone Star, o fundo abutre que detém a maioria do banco. Essa declaração foi, contudo, atropelada pelo ex-ministro Mário Centeno que, tendo a transferência orçamentada, passou o cheque sem esperar pela auditoria e sem dar cavaco ao Primeiro-Ministro. Na altura, o Presidente da República criticou o gesto.

É, pois, uma questão de bom senso e responsabilidade impedir que mais 478 milhões caiam no Novo Banco sem se apurar os eventuais abusos da Lone Star. O Novo Banco ainda não fechou contas, ainda não apurou prejuízos, nem sequer fez o pedido de capital e até é previsível que venha a pedir mais que os 478 milhões. Quem defendeu que não podia haver novas transferências sem auditoria, pretendia agora dispensar a análise do Tribunal de Contas antes de garantir uma nova injeção? Em nome de quê?

O Governo sempre soube que quer o Bloco quer o PCP estavam contra o contrato de venda à Lone Star, mas sempre recusou negociar com a Esquerda sobre o sistema financeiro. Mas o ponto já é outro: a Lone Star não tem obrigações para cumprir? Pode desfalcar o banco, vender património a preço de saldo (provavelmente a entidades ligadas a si própria) e tapar os seus buracos com as injeções do Fundo de Resolução? Em que planeta é que isto é defender o interesse público e a posição do Estado?

A dramatização ensaiada por dirigentes do Partido Socialista e do Governo – uma decisão “pela calada da noite”, disse um deputado de uma reunião do Parlamento em que ele próprio participou, “uma bomba atómica”, – é artificial, mas não deixa de colocar os socialistas no papel de porta-vozes dos interesses do fundo abutre. Até responsáveis da banca privada manifestam a sua “simpatia pela decisão do Parlamento de pedir maior exigência e transparência nas decisões do Novo Banco com impacto no Fundo de Resolução”, sublinhando que ela “pode ser vista como uma oportunidade para as autoridades subirem a fasquia em termos de exigências futuras ao Novo Banco.”

O que está em causa com a decisão tomada ontem não é o contrato com a Lone Star (por demais ruinoso!), nem sequer o mau acordo com a Comissão Europeia. A garantia do Estado está dada e mantém-se. Só que é no momento de fechar as contas que se decide a injeção e, até lá, o Novo Banco tem que provar que não está a abusar do contrato. Se o Estado comprometesse desde já recursos públicos, sem conhecer a auditoria e sem ter a certeza de que não há abuso, então as auditorias e os inquéritos seriam mera cortina de fumo inconsequente, manobra de diversão destinada a entreter o pagode enquanto os cheques continuariam a ser passados sem contrapartidas.

Quando, em 2019, o PS recusou fazer um acordo com a Esquerda, tomou a decisão de navegar à vista, como se tivesse uma maioria absoluta. A estratégia anunciada era negociar ora com a Direita (como ocorreu com a descentralização, os grandes investimentos, o fim dos debates quinzenais ou a dificultação do direito de petição e de iniciativa legislativa popular), ora com a Esquerda (discutindo essencialmente medidas sociais transitórias), sem qualquer acordo consistente que evitasse a roleta russa orçamental.

Ora, sem maioria absoluta à vista e perante a reorientação do PSD (em viragem para a aliança com a extrema-direita), o PS, se quiser construir uma solução sólida de maioria, necessita de negociar a sério com a Esquerda. Para tanto, não pode limitar-se a algumas “aspirinas sociais” temporárias debatidas em clima de chantagem, mas tem de construir uma resposta a sério à crise instalada e acordar um projeto para o país, capaz de reequilibrar as relações de trabalho, transformar a proteção social, reconstruir os serviços públicos, apostar num investimento que reoriente a nossa economia e substitua o seu padrão de precariedade. Esse é o debate que conta e que vale a pena fazer.

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