por estatuadesal |
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 31/12/2020)
1 Raras vezes assisti a um exercício colectivo de tamanha hipocrisia como este a propósito da matança da Torre Bela. Ressalvo que muitas das enormidades e dos disparates que vi ditos e escritos não o foram por má-fé ou injusta indignação, mas tão-só por uma absoluta ignorância da matéria em causa e das leis aplicáveis. O que não é o caso, obviamente do ministro do Ambiente, tão lesto a cavalgar agora as ondas populares de fúria das redes sociais, logo classificando aquilo como “um crime ambiental”, como é inerte e silencioso perante os verdadeiros crimes ambientais, estruturais e irremediáveis, que marcarão o país por décadas, mas cujos poderosos autores e interesses ele não se atreve a enfrentar. A matança da Torre Bela não tem nada que ver com caça nem com ambiente, foi um simples acto de barbárie e exibicionismo — muito comum entre os espanhóis, que não são verdadeiros caçadores, mas matadores — e que simultaneamente serviu um fim específico: limpar o terreno de todos os animais silvestres de grande porte para nele poder instalar a central fotovoltaica para lá projectada. Todos os coutos de caça maior onde existem veados ou gamos têm de proceder regularmente, e por razões naturais, ao respectivo desbaste, o qual é fixado em função da sua existência. É um espectáculo feio, que eu já testemunhei mas em que sempre recusei participar, mas que, todavia, é como é: ou se proíbe a caça a estas espécies sem ser por aproximação, em terreno aberto de montanha, ou, se se consente, por razões económicas, não se pode proibir o desbaste. E a dimensão deste, ao contrário do que vi dito, não depende de lei nem de fiscalização, mas de quem gere o couto e que se presume que não tem interesse em extinguir ou pôr em causa a “raiz” do mesmo. O que aconteceu na Torre Bela é que o interesse era o oposto, era exactamente o de limpar o couto de todos os animais, de uma só vez. E, para tal, recorreram aos serviços de uma empresa especializada e a “caçadores” orgulhosos de levarem a cabo a tarefa. Foi tão simples quanto isso.
O cúmulo da hipocrisia foi ver juntar-se ao coro das indignações a própria Herdade da Torre Bela, esclarecendo em comunicado que tinha apresentado uma queixa junto do Ministério Público (depois de o Ministério do Ambiente já o ter feito), “contra os promotores da caçada e porque os donos da Herdade não se revêem no que lá foi feito”. Em primeiro lugar, cabe perguntar: quem são os donos da Herdade da Torre Bela? Sim, quem são esses donos que até hoje ninguém, nem o presidente da Câmara da Azambuja (outro indignado) nem o ministro, nos querem dizer quem são? Será possível que não saibam quem é o verdadeiro proprietário de uma das maiores tapadas da Europa, outrora propriedade do duque de Lafões e depois símbolo da reforma agrária? E os senhores gestores da Herdade querem fazer-nos crer que contrataram uma empresa já suficientemente conhecida por promover matanças semelhantes sem estabelecer previamente um limite de animais a abater e sem ter ninguém no terreno a acompanhar o que se passava e poder dizer “basta”, quando visse o que estava a acontecer?
A Torre Bela serviu às mil maravilhas para reacender a fúria dos inimigos da caça — como se aquilo tivesse alguma coisa a ver com caça, que eles sabem que não tem, mas que lhes dá jeito confundir. Até parece ter sido encomendado para isso. Quando oiço o tonitruante ministro Matos Fernandes a dizer que vai perseguir criminalmente os organizadores e “caçadores” da Torre Bela e rever a lei da caça, já antevejo o desfecho do assunto: nada vai acontecer aos espanhóis e as consequências que houver vão sobrar para os banais caçadores portugueses, que não tiveram nada que ver com aquilo.
2 A persistência lusitana em não abrir mão de certas e sagradas regras burocráticas sempre ancoradas em visões congeladas das leis, chega a ser cómica. Assim a decisão do Tribunal Constitucional (TC) de não chumbar liminarmente a candidatura presidencial de um tal Baptista, militar colocado num quartel da NATO na Holanda, e que, em vez das 7500 assinaturas válidas de apoio à sua candidatura, apresentou apenas 11 — “de um camarada militar, um amigo e a família”. Porque, ao que parece, o TC entende que a competência para excluir candidatos, afinal será do MAI, ou que é preciso um acórdão para esclarecer a “questão”. Mais cómico ainda, embora sem graça nenhuma, foi a guerra de competências entre a PSP e a GNR de Évora sobre quem deveria escoltar a carrinha das vacinas covid em direcção ao sul. Como a PSP entendeu que a cidade é da sua competência, resolveu que lhe cabia a si fazer a escolta e não à GNR, e deu-se ao assomo de reter a carrinha (com uma vacina que tem prazos de congelação apertados) durante meia hora, até que alguém do horrível poder central resolvesse este conflito de poderes descentralizados. Fez-me lembrar o episódio de um Tintim, em que os Dupond e Dupont dão ordem de prisão um ao outro e montam numa bicicleta, cada um com a mão no ombro do outro, para assegurar a sua captura. O mais cómico disto é pensar que quando passar esta fase inicial do folclore e fogo-de-artifício, se algum dia, como nos garantem, se chegar às 75 mil ou 150 mil inoculações por dia, é óbvio que acabarão as aparatosas escoltas para saloio ver. Assim como rapidamente acabou o segredo do “armazém secreto no centro do país” onde se armazenam as vacinas da Pfizer. Porque não conseguimos ser mais práticos e menos grandiloquentes? Mais eficazes e menos institucionais?
3 E, por falar em vacinas, há quem já esteja preocupado por ainda não haver, segundo as sondagens, um número suficiente de portugueses dispostos a vacinar-se em quantidade que garanta a imunidade de grupo de toda a população. É, de facto, um problema inesperado se a estupidez de uns quantos puser em causa a saúde de todos. É, aliás, um subcapítulo de uma mais vasta e preocupante estupidez universal que liga o negacionismo sobre a covid-19 a teorias da conspiração sobre o “roubo” da reeleição de Trump, a grande seita pedófila democrática, o chip que Bill Gates terá instalado em cada vacina e destinado a controlar cada cidadão do planeta, e outras histórias que, de tão imbecis, não acreditaríamos que alguém pudesse acreditar nelas, não fosse esta a era da imbecilidade absoluta das redes sociais. Sendo que o princípio da voluntariedade da vacinação permanece intocável, certos países ponderam, contudo, adoptar consequências para quem se recusar a tomá-la, com fundamento na violação de um dever cívico de solidariedade social e de defesa comum da saúde pública. Uma dessas consequências — que me parece no mínimo exigível — é a de que quem se recusar a ser vacinado e venha a ter de ser tratado depois à doença pague os seus tratamentos por inteiro.
Em boa verdade, porém, esta é uma conversa que me parece completamente prematura no caso português. Mantendo o pessimismo de que aqui dei conta na semana passada, acho que estamos muito longe do momento em que as autoridades terão de andar atrás dos portugueses para eles se vacinarem. O contrário é que é bem mais provável: se não abrirem mão do que não pode ser nada mais do que preconceitos ideológicos ou incapacidade organizativa e não estenderem a vacinação à farmácias, sectores privado e social, o que veremos antes é os portugueses a andarem atrás das autoridades a mendigarem uma vacina.
4 Amanhã, Portugal inicia a sua quarta presidência semestral da União Europeia e pode-se dizer que António Costa é um homem de sorte: há um mês, a tarefa de Portugal era um pesadelo à vista, hoje é uma planície de onde foram removidos todos os pedregulhos. Graças a Angela Merkel, a Ursula von der Leyen, a Michel Barnier e a Christine Lagarde, a ‘bazuca’ vai estar desimpedida e activa, o crédito disponível e barato, as vacinas contra a covid em plena distribuição coordenada por Bruxelas e o ‘Brexit’ resolvido. Não é apenas uma oportunidade incrível para Portugal (mais uma!), é também uma oportunidade única para a Europa, para uma nova agenda virada para o futuro e para a procura de soluções para os problemas de amanhã. Temos todas as condições para fazer uma presidência que brilhe, mas também todas as responsabilidades para não falhar. Nesta hora em que a Europa emerge de tantos e tão terríveis desafios mais forte e mais unida do que nunca, gostaria de saber quem é que ainda se atreve a dizer que estaríamos melhor fora da Europa?
5 A lei que rege as candidaturas presidenciais é absolutamente clara no sentido de permitir a suspensão do mandato parlamentar do deputado André Ventura, enquanto durar a campanha eleitoral. E a lei sobrepõe-se ao estatuto dos deputados. Ao recusar a pretensão de André Ventura, ao arrepio do parecer jurídico do deputado encarregado de se pronunciar sobre o assunto, a coligação PS/PCP/BE não faz mais do que cobrir-se de vergonha e ajudar à vitimização de Ventura. Ainda não perceberam que atitudes destas relativamente ao deputado do Chega, tais como as de Ana Gomes e Marisa Matias, só servem para lhe dar força crescente.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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