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sábado, 23 de janeiro de 2021

Como Ventura usou o imaginário nacionalista do Estado Novo e imitou Donald Trump

José Fernandes

A postura e o discurso do candidato presidencial e líder do Chega não são novos. “Também como o Estado Novo, Ventura centrou-se na Idade Média”, o que lhe “permite colocar-se ao lado de figuras maiores e incontestadas da história nacional”, diz ao Expresso uma historiadora. Daí as aparições de D. Afonso Henriques ou Nuno Álvares Pereira na campanha. Um sociólogo comenta: “São estratégias, mecanismos retóricos identificados com uma nova internacional radical”, que teve em Trump o seu exemplo mais bem-sucedido

22 JANEIRO 22:23

Hélder Gomes

Hélder Gomes

Jornalista

José Fernandes

José Fernandes

Fotojornalista

André Ventura visitou o túmulo de D. Afonso Henriques na Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, e disse que o primeiro rei de Portugal, “o pai da nacionalidade”, representa a sua luta enquanto líder do Chega e candidato presidencial. Perante o maior protesto que teve de enfrentar na sua campanha, com cerca de uma centena de ativistas antifascistas, afirmou ter “o dever histórico de dizer que nenhuma minoria ruidosa” poderia impedi-lo de “salvar Portugal”. O tom salvífico de homem providencial, que se ancora em figuras do passado para alavancar uma refundação que defende ser necessária, foi uma constante nestas duas semanas de campanha. D. Afonso Henriques, o castelo de Guimarães e D. Nuno Álvares Pereira foram alguns dos símbolos que utilizou na sua propaganda.

“Tal como movimentos da direita autoritária conservadora do século XX, André Ventura procura legitimar-se através da História. Ao revisitar locais e figuras do passado, Ventura procura inscrever-se na História nacional, ou seja, apresenta-se na continuidade do que lhe antecedeu, como se fosse o seu natural seguimento”, comenta ao Expresso Elisa Lopes da Silva, historiadora do Estado Novo no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (UNL). “De resto, tal como outras direitas autoritárias mais recentes na sua relação com o passado guerreiro da nação: é um gesto comparável ao de Jean-Marie Le Pen em relação à figura da Joana d’Arc”, exemplifica.

Ventura junto a túmulo de D. Afonso Henriques, em Coimbra

Ventura junto a túmulo de D. Afonso Henriques, em Coimbra

 

José Fernandes

Para a investigadora, a ressonância com o Estado Novo é evidente. Ventura fala constantemente numa revolução falhada, em 46 anos de desgoverno, como se a transição para a democracia tivesse sido apenas pautada por falhanços. “Também como o Estado Novo, Ventura centrou-se na Idade Média, quando se dá a formação de Portugal. Tal permite colocar-se ao lado de figuras maiores e incontestadas da História nacional, acima das dissensões políticas”, compara. “Mais importante para o seu discurso, a invocação e uso da figura de D. Afonso Henriques e do castelo de Guimarães permitem-lhe encenar um discurso de ‘refundação’ do regime”, acrescenta. E isto nada mais é do que a repetição do “gesto histórico do Estado Novo”. “Assim, a proposta política de corte com o passado [da III República] é naturalizada”, sustenta.

Após “uma revolução que fracassou em Portugal”, o candidato clamou em campanha por “uma nova revolução, a revolução do voto, da democracia, de verdadeiramente dar a voz àqueles que são o cerne deste país e não à minoria que vive à conta da maioria que trabalha”. E foi reagindo aos protestos nas várias paragens que foi fazendo pelo país com um discurso ora defensivo, ora provocador. “Se acham que é fascismo querer que os corruptos não voltem ao poder, então, sim, nós somos fascistas”, disse a certa altura, descrevendo-se como “o político mais ameaçado e perseguido desde o 25 de Abril”.

“NACIONALISMO HISTÓRICO EXCLUSIVISTA” E “EXCLUSÃO DO OUTRO EM NOME DA NAÇÃO”

“O uso de figuras guerreiras medievais, como D. Afonso Henriques ou Nuno Álvares Pereira, foi comum a nacionalismos conservadores. O exemplo da fundação da nacionalidade de ‘espada em riste’ contribui para a sua retórica guerreira e violenta, legitimadora dos seus propósitos declarados de ‘reconquista de Portugal’”, avalia a historiadora da UNL. E isso permite ainda apresentar-se “como uma figura messiânica”. O próprio afirmou que ele e os seus apoiantes tinham diante deles “uma oportunidade que muitos dos nossos antepassados queriam ter tido, de derrotar este sistema corrupto e inadequado”. “E foi a nós que a Providência permitiu transformar este movimento numa oportunidade de transformar Portugal”, sublinhou.

Ventura tira ‘selfie’ junto à estátua de Nuno Álvares Pereira, no exterior do Mosteiro da Batalha

Ventura tira ‘selfie’ junto à estátua de Nuno Álvares Pereira, no exterior do Mosteiro da Batalha

 

José Fernandes

Ventura atribuiu ainda a sua convicção e a dos seus apoiantes à “força dos genes que temos”, ao “espírito de Portugal que nos percorre”. Do castelo de Guimarães disse “ecoar a voz” que lhes diz “não desistam”. “E perante este castelo eu me ajoelho em memória de Portugal”, dramatizou, sem verdadeiramente se ajoelhar. Se, por acaso, como aconteceu em Leiria, chovia, também isso era aproveitado para uma extrapolação messiânico-nacionalista: “A chuva que cai hoje do céu é sinal de que somos, estamos e continuaremos abençoados” e as eleições de domingo são as eleições “do bem contra o mal”. Só ele – e não qualquer outro dos candidatos a Belém – está “do lado certo da História”. “Eu sou a voz do património dos portugueses de bem e trago comigo todas as histórias de Portugal”, chegou mesmo a declarar.

Numa ação de campanha, o candidato do Chega depositou uma coroa de flores junto à escultura equestre de Nuno Álvares Pereira, no exterior do Mosteiro da Batalha. O nobre e general do século XIV, também conhecido como o Santo Condestável, foi crucial durante a crise de 1383-1385, defendendo a independência de Portugal face a Castela. Ventura descreveu-o não apenas como “um estratega militar”, mas também como “um ícone da matriz civilizacional portuguesa”. O candidato constrói, assim, “um nacionalismo histórico exclusivista”, elegendo “um inimigo externo (os espanhóis, na alusão à Batalha de Aljubarrota ou na ação de D. Afonso Henriques)”. E deste modo edifica “ideologicamente uma extrema-direita fundada no combate violento e na exclusão do Outro em nome da nação”, remata a historiadora ouvida pelo Expresso.

“A ALVORADA, O RENASCER QUE PORTUGAL PRECISA”, CLAMA VENTURA

Mas Ventura vai mais além, galgando as fronteiras da Península Ibérica e tentando proteger o espaço europeu do que descreveu como “a invasão crescente e progressiva de quem não respeita a nossa identidade, quer viver à conta dos nossos impostos e continuar a destruir a democracia europeia”. “A nossa luta na Europa também é uma luta pela nossa matriz civilizacional, que não podemos ignorar. Defendemos uma Europa de matriz cristã”, balizou. À sua volta não vê mais ninguém capaz de assumir este caderno de encargos: “Estamos no meio de uma luta épica em que enfrentamos sozinhos um sistema inteiro”.

Uma ronda rápida por apoiantes, militantes e presidentes de distritais reforça esse caráter pretensamente único e messiânico de que Ventura se diz investido. Ele “é o único que pode mudar Portugal, o único que defende a soberania nacional, a segurança, a população mais desfavorecida, o único que nos dá garantias de que vamos mudar”, assegurou ao Expresso um militante. Um militante entoou em Guimarães uma canção que comparava Ventura com “o Jesus da Galileia. E a presidente da distrital do Chega em Santarém, Manuela Estêvão, regozijou-se ao perceber que a sede ficaria “à frente do São Francisco”, “símbolo de humildade, fraternidade e dedicação a uma causa”.

Ventura advertiu que “caminhamos sorridentemente para uma ‘venezuelização’ do regime, para uma tomada de poder ditatorial pela extrema-esquerda, sem que ninguém se preocupe”. Ninguém, claro, tirando ele próprio, o autoproclamado “homem do leme” que, ainda assim, não esquece a estrutura que o apoia e acompanha. “Esse homem do leme será certamente a IV República que precisamos para este país”. No “berço da nossa nação”, disse que a sua candidatura representa “a alvorada, o renascer que Portugal precisa”. “Desta escuridão nascerá a luz de um novo país, capaz de se olhar ao espelho, de se ver com dignidade, de voltar a olhar para este castelo e dizer que se orgulha de ser português”, proclamou.

Comício de Ventura num coreto em Santarém

Comício de Ventura num coreto em Santarém

“UM FASCISTA DOS NOVOS TEMPOS”

Um país do ‘orgulhosamente sós’, do ‘Deus, Pátria e Família’? A historiadora Elisa Lopes da Silva não tem dúvidas de que Ventura repete “gestos históricos do Estado Novo”. Ele insiste na necessidade de “uma nova reconquista”, tomando o castelo de Guimarães como “o símbolo do caminho” que farão até domingo. Graça Nazaré, pensionista de 67 anos, foi uma das manifestantes do protesto que o recebeu em Vila Real e confessou-se “assustada”. “Não porque ele seja um fascista do tempo da outra senhora, mas porque é um fascista dos novos tempos”, distinguiu. “O autoritarismo toma formas diferentes conforme as épocas e ele pertence a esta época. O grito final é esta espécie de desbragar de ideias que nem sequer são muito novas: aproveitam algumas do passado e tomam algumas formas do presente”, avaliou a manifestante.

“Hoje a noite pode ser escura mas acordaremos numa nova manhã”, promete Ventura. Enquanto “a noite que o socialismo nos trouxe nos ensombra cada vez mais”, o exército do Chega aumenta “dia após dia, engrossando de comunistas a católicos, de todas as raças, etnias e religiões”, assegurou ainda, antes de anunciar serem “o Exército Popular Português”. “A noite do dia 24 tem de ser nossa, tem de ser deste exército popular que se levantou para salvar Portugal. O dia 24 de janeiro será o nosso 25 de novembro”, disse ainda.

Declarações carregadas de simbolismo de uma figura que assume querer romper com o sistema que se iniciou a 25 de Abril de 1974. Dos protestos vai-se defendendo assim: “Quando gritarem lá fora, de forma absurda, ‘fascismo nunca mais’, vamos dizer que ‘socialismo nunca mais’ porque foi esse que destruiu e está a destruir Portugal”.

Ventura ajoelha-se diante do túmulo de D. Afonso Henriques

Ventura ajoelha-se diante do túmulo de D. Afonso Henriques

 

José Fernandes

O líder do Chega está “no mesmo caminho” de tantos outros antes dele, “a tentar identificar um eleitorado e perceber como se pode constituir em alternativa por via da expressão eleitoral”, captando “grupos prováveis de apoio que podem dar-lhe votos”. Além da “hiperbolização da linguagem”, deixa-se fotografar na igreja ao lado da mulher, apresentando-se como “homem de família e em missão” para criar uma estética de figura “obstinada mas reverente e temente”. A “defesa de valores que devem ser mantidos e defendidos” e da “pureza nacional” permite-lhe alargar as bases do eleitorado e “entronca bem na cartilha que está a utilizar”, avalia Nuno Dias.

“UMA LEGITIMAÇÃO INTERNACIONAL DE DESRESPEITO DAS REGRAS DE CIVILIDADE”

Ao admitir que não será o Presidente de todos os portugueses, está a produzir “um dano institucional”, na medida em que “ataca a vocação universalista dos direitos constitucionais”. Ao mesmo tempo que abre “uma brecha para que a legitimidade das instituições seja questionada”. Tal como “Trump o faz, criando a dúvida”, acrescenta o sociólogo. “Não há uma necessidade de correspondência com a verdade, o que vem também dos primeiros movimentos fascistas. Mussolini tem uma agenda muito ligada à questão eleitoralista, é errático do ponto de vista ideológico, não há uma linha convergente, não é assumidamente nada no sentido em que pode facilmente adaptar-se a um descontentamento identificado que lhe permita captar a adesão popular”, recorda.

“Há uma legitimação internacional de desrespeito das regras de civilidade nos debates políticos e na linguagem de comício, habitualmente mais emotiva e agressiva. A forma como caracteriza os outros candidatos é muito brejeira, muito grosseira, da qual não se retrata, tal como Trump”, diz ainda o sociólogo ouvido pelo Expresso. Nuno Dias deixa um alerta: “Ventura ainda representa uma oposição ao sistema criada no interior do sistema, mas que facilmente constituirá espaço de produção de novos atores vindos de fora do sistema”. “A necessidade de criar bases de representação a nível nacional pode fazer entrar elementos mais ligados a sectores com menos presença e colonizar espaços marginais. Esse fantasma está presente desde a sua fundação: grupos extremistas, ligados a atividades criminosas, etc. Há aqui um conjunto de relações que podem ser menos escrutinadas e dar, de facto, abertura a uma subversão de uma infraestrutura institucional e constitucional”, adverte ainda.

Maria Pinheiro, assistente social

Maria Pinheiro, assistente social

 

José Fernandes

A assistente social Maria Pinheiro, de 27 anos, tirou-lhe o ‘retrato’, enquanto segurava um cartão onde se lê: “Um candidato de ‘bem’ que NÃO nos representa”. Ventura “vem falar de problemáticas complexas com soluções simplistas para encher o olho a simpatizantes e eventuais votantes”, disse ao Expresso. Daqui a dois dias se verá quantos foram convertidos. 

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