Posted: 26 Jan 2021 04:32 AM PST
«Os resultados eleitorais não são surpresa, mas revelam uma dimensão de normalização política e social do discurso da extrema direita que não pode ser escamoteada.
Um discurso repleto de nacionalismo, racismo, sexismo e xenofobia que dá voz e presença efetiva a preconceitos pré-existentes que, apesar de sempre desvalorizados, mostraram força suficiente para obter um terceiro lugar, numa corrida com vencedor antecipado.
Vitorioso e antevendo um regresso imediato, mediático e apoteótico, Ventura, em mais um golpe publicitário, num vou ali mas já volto travestido de cumprimento de promessa e pleno da empáfia que a vitória e a reconfiguração da direita justificam.
O candidato dos portugueses de bem, conceito que parece excluir, entre outros, os portugueses pretos, ciganos ou que usam batom vermelho, foi o candidato da extrema direita mas foi também o candidato da direita dita centrista, sempre pronta a dar-lhe palco, esperançada ou confortada com a perspetiva de colheita de votos que poderá capitalizar adiante, numa frente unida. Ventura sabe-o bem: “Não há volta a dar: não haverá Governo sem Chega nos próximos anos.”
Nesta onda normalizadora de discursos xenófobos e de exclusão, não esqueço o papel que o atual Governo de Cabo Verde desempenhou, quando não se coibiu de ligações escusas com o Chega, por razões, sem dúvida, ligadas a financiamentos partidários, a não ser que se identifique ideologicamente com a lógica discursiva da extrema direita portuguesa.
Por mais difícil que seja, é preciso admitir que o discurso xenófobo, racista, sexista, discriminatório e fomentador de políticas de ódio abre caminho em Portugal e tem encontrado uma direita recetiva que lhe vai dando palco, normalizando discursos e estreitando alianças em nome do interesse supremo que dá pelo nome de poder.
Em cada eleição existe oportunidade de desmascarar os apelos à intolerância cultural, de mitigar a iliteracia sobre a democracia e os direitos humanos. Oportunidade desperdiçada nestas presidenciais, porque continuamos a subestimar e desvalorizar os sinais.
Desperdiçada quando vemos que a garra de Marcelo face a Ana Gomes só tem comparação no lébi lébi do diálogo com Ventura; quando se esperava um contraponto claro e assertivo de valores, ficou um registo levíssimo de que não é a direita de Marcelo, induzindo que também é direita. Marcelo demitiu-se de combater a extrema-direita populista, quer no campo político, quer na defesa dos valores da dignidade humana, não em nome da sua reeleição mas em nome de um ressurgimento da direita, em futuros atos eleitorais.
Desperdiçada quando vemos uma esquerda pulverizada, sem um projeto comum que enfrente a lógica discursiva fácil da extrema direita, e uma Ana Gomes refém de si própria e de um discurso incapaz de mobilizar a vontade, até daqueles que sofrem na pele a normalização discriminatória.
Os comportamentos discriminatórios, seja pela cor, pela etnia e pelo sexo, são uma realidade e, se não definem um país ou as suas instituições, não podem ser ignorados ou apenas ser tidos em conta em situações limite.
Quando os discursos políticos de ódio da extrema direita são normalizados, os comportamentos xenófobos, racistas e discriminatórios sentem-se estimulados e tendem a aumentar no terreno lavrado pelas dificuldades que o mundo de hoje oferece.
Cada um de nós, portugueses do bem, que acreditamos naquele princípio consagrado na Constituição da dignidade da pessoa humana, não podemos assistir impassíveis à degradação de valores fundamentais em nome de interesses políticos de manutenção ou obtenção de poder.
Urge um combate político sério e uma recusa social muita clara e apartidária das lógicas e discursos discriminatórios. Reconhecer a liberdade de expressão da extrema direita não implica reconhecer as práticas discriminatórias e os discursos violentos como normais. Significa apenas que, enquanto portugueses do bem, reconhecemos a liberdade de expressão como um direito.»
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