por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 18/01/2021)
Num mesmo processo, uma procuradora investiga uma fuga de informação onde ela poderia ser uma das suspeitas e dois jornalistas são vigiados pela PSP, sem a autorização de um juiz, por estarem a cumprir o seu dever deontológico. Pôr em causa a proteção das fontes é pôr em causa o artigo 38º da Constituição. Quem, em troca de cachas, andou a transformar magistrados em heróis justiceiros, aos quais nenhum limite deve ser imposto, teve a oportunidade de conhecer o monstro que ajudou a criar.
Sempre fui e continuarei a ser crítico dos julgamentos mediáticos, que substituem a sentença em tribunal pela sentença nos jornais. E continuarei a criticar a confusão entre investigação e receção de peças processuais, sem qualquer cruzamento de fontes. Recuso-me a chamar a isso jornalismo de investigação. E sou, como saberão, muitíssimo crítico da forma como se faz este tipo de jornalismo no “Correio da Manhã”.
Mas não é isto que está em causa na inacreditável investigação a jornalistas, com recolha de imagens dos seus movimentos por parte da PSP e acesso às suas contas bancárias. O que está em causa, para além do ataque à liberdade de imprensa, protegida constitucionalmente, é o Ministério Público usar os seus poderes para benefício próprio e, mais grave ainda, em descarado conflito de interesses. Vamos por partes, tendo como guião a completa notícia do “Observador” que depois foi completada pela da própria “Sábado”.
Em março de 2018, Henrique Machado, que era editor do “Correio da Manhã” (hoje está na TVI), e Carlos Rodrigues Lima, subdiretor da “Sábado”, foram os primeiros a anunciar a detenção pela PJ de Paulo Gonçalves, o braço direito de Luís Filipe Vieira, no âmbito do caso e-toupeira. Perante esta fuga de informação, relativamente banal quando comparada com o que diariamente chega aos jornais e televisões de investigações em curso, o Ministério Público decidiu abrir uma investigação.
A primeira perplexidade é em relação a quem dirige a investigação: Andrea Marques, uma das magistradas que participou nas diligências no caso e-toupeira. Ou seja, uma das possíveis suspeitas de passar informação. Que teve, para dirigir o caso, de ser automaticamente excluída dessa suspeição. E foi ela que pediu esclarecimentos ao seu colega de investigação, Valter Alves. Quando lhe solicitou a lista dos intervenientes no inquérito, recebeu quatro nomes do Ministério Público. Entre eles, estava o de quem lhe dava a informação e o dela própria. Tudo em casa, portanto. De resto, eram pessoas do TIC, da PJ e do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça. Excluída a sua própria casa, restavam a PJ e os tribunais. Não bastava o Ministério Público investigar-se a si mesmo, dispensando-se automaticamente dessa investigação, escolhia uma magistrada que poderia ser suspeita para tratar do caso.
DCIAP, Direção Nacional da PJ e à Unidade Nacional de Combate à Corrupção foram alvos de diligências da procuradora Andrea Marques. Foram apreendidas caixas de e-mails, discos rígidos e telemóveis de vários elementos da PJ, incluindo do topo de hierarquia, no que tresanda à utilização de meios de investigação para uma guerra corporativa. A investigação acabou por chegar a um coordenador da PJ. O diretor da PJ, Luís Neves, acabou por dar conta de que alguma da informação apreendida podia estar classificada e protegida pelo segredo de Estado.
Temos esperado pacientemente por todos os inquéritos internos sobre a permanente fuga ao segredo de justiça no Ministério Público. Nunca se chega a nada, nunca alguém é realmente responsabilizado. Agora foi. Porque a fuga terá vindo de outro lado e isso o Ministério Público não tolera. E usa os instrumentos que a lei lhe dá para pôr na ordem todos os que, fora da sua corporação, tenham o comportamento que internamente é tolerado (ou mesmo promovido).
Por fim, o mais grave. Para provar a fuga de informação, os dois jornalistas foram vigiados pela PSP, com recolha de imagens suas ao longo de cerca de dois meses – um procedimento que não teve validação de um juiz – e levantado o sigilo bancário de um deles, apesar de não existir qualquer suspeita de corrupção. O DIAP diz que não era necessária autorização de um juiz, a Ordem dos Advogados e os juristas desta área defendem que sim. A desproporção de meios para a natureza do ilícito é evidente. Ordem dos Advogados, Sindicato dos Jornalistas e Entidade Reguladora para a Comunicação Social mostraram o seu repúdio por esta violação do direito de proteção das fontes.
A liberdade de imprensa tem proteção constitucional. E a proteção de fontes é garantida pela Lei de Imprensa e pelo Código Deontológico dos jornalistas. E pôr em causa a proteção das fontes é pôr em causa o artigo 38º da Constituição da República.A quebra deste sigilo não pode acontecer por vigilância policial, sem qualquer intervenção de um juiz. Isso não impede os que têm de defender o segredo de justiça de agir, investigando aqueles a quem esse segredo é confiado. É um atentado à liberdade de imprensa Ministério Público pôr polícias a vigiar jornalistas que fazem o seu trabalho, quando estes cumprem as regras que a lei e o código deontológico lhes impõem. E foi isso que aconteceu.
Como diz João Garcia, o problema está na lei, que impõe aos jornalistas o que a sua profissão e o seu condigo deontológico só podem recusar. Investigar um jornalista para conhecer as suas fontes é o mesmo que investigar um padre, um médico ou um advogado para desvendar um segredo profissional e chegar ao autor de um crime. Sabemos o que vem depois: escutas a jornalistas e, sem qualquer capacidade para proteger fontes, fim da liberdade de imprensa. João Garcia remata com o que defendo há anos: “A verdadeira hipocrisia é haver segredo de Justiça para tudo quanto interessa à sociedade.”
No mesmo processo, uma procuradora investiga uma fuga de informação de que ela poderia ser uma das suspeitas e dois jornalistas são vigiados pela PSP por estarem a cumprir o seu dever deontológico, que a lei protege. Tudo isto é inaceitável. Mas tenho de deixar uma farpa: quem, em troca de cachas, andou a transformar magistrados em heróis justiceiros, aos quais nenhum limite deve ser imposto, teve a oportunidade de conhecer o monstro que ajudou a criar. Estou, aliás, curioso para ler como alguns jornalistas que têm defendido poderes quase ilimitados para o Ministério Público explicarem porque é que os devemos (e devemos) limitar em casos como estes. Como conseguem explicar que, quando chega à liberdade de imprensa, há valores acima da eficácia da investigação.
Se dúvidas houvesse sobre a cumplicidade de alguma comunicação social com aqueles de que inevitavelmente acabaria por ser vítima basta olhar para a capa da “Sábado”, onde esta vergonhosa perseguição é denunciada. Nela, está a atual Procuradora Geral da República. Pode dizer-se que o processo continuou o seu estranho andamento quando Lucília Gago já era PGR. Mas ele iniciou-se com Joana Marques Vidal, como o próprio artigo da revista reconhece. Na capa, lê-se: “Pela primeira vez em democracia, o Ministério Público, liderado por Lucília Gago, mandou seguir e fotografar jornalistas e vasculhou as suas contas bancárias.” Se a segunda parte parece ser verdadeira, a primeira é objetivamente falsa. O Ministério Público que “mandou seguir e fotografar jornalistas” em abril de 2018 (data que a próprio “Sábado” nos dá) era liderado por Joana Marques Vidal. Lucília Gago só tomou posse em outubro.
Que as vítimas desta perseguição queiram, na capa da sua revista, esconder as responsabilidades da anterior procuradora apenas nos recorda até que ponto a comunicação social se deixou envolver nas guerras corporativas da justiça. Faz parte delas, aliás. E isso também ajuda a explicar o monstro. Quem não é escrutinado com independência deixa de conhecer os seus limites.
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