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domingo, 28 de fevereiro de 2021

A pandemia urbanística


por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 26/02/2021)

António Guerreiro

“Airbnb” é o nome de uma empresa fundada em 2008, em São Francisco, na Califórnia, exemplo máximo da ascensão do capitalismo das plataformas. Antes da pandemia, já não era apenas uma marca, tinha-se tornado quase um nome comum para dizer “alojamento local” ou “arrendamento temporário”. No último ano, esse nome quase desapareceu, deixou de ser uma das palavras do poder.

Este desaparecimento tem uma tradução bem visível no plano da nossa realidade urbana. Os centros históricos das cidades turistificadas ficaram vazios e emergiu com dramática evidência o que era bem sabido e longamente diagnosticado, mas que era visto pelos poderes gestionários — económicos, políticos, mediáticos — como um mal menor que até era fácil esconder ou menosprezar porque neste domínio tem valor de evidência a regra segundo a qual “tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece”. Quando, subitamente, por efeito de uma pandemia, o fenómeno do aparecimento espectacular foi interrompido, o que se torna conspícuo é o desaparecimento. Medir os seus efeitos e contabilizar as suas vítimas é por enquanto uma tarefa impossível porque o processo não chegou ao fim e não é fácil prever o que se vai passar. Mas se há aspectos em que é possível dizer com alguma segurança que nada será como dantes, a vida das cidades é um deles. Por agora, a paisagem dos centros históricos das cidades turísticas, onde se tinha instalado uma monocultura, permanecem vazios, espectrais. São imagens de pesadelo que deixam adivinhar miséria e projectos interrompidos que por agora ainda é possível silenciar, mas que hão-de tornar-se vozes desesperadas e de revolta. Os actuais tumultos nalgumas cidades espanholas, principalmente em Barcelona e Madrid, tendo muito embora sido incendiados por uma sentença que a Justiça aplicou a um rapper, têm a motivação anárquica das revoltas actuais. Como mostram as reportagens, são quase exclusivamente os jovens desocupados ou precários que têm alimentado estas manifestações inorgânicas que resultam em destruição e confrontos com a polícia. Quando o turismo desaparece, as cidades que dependiam dele começam a ser obrigadas a erguer barricadas.

Sabemos bem, até porque não há promessa mais reiterada no último ano, que tudo será feito para que a vida anterior retome o seu curso, com os mesmos ou, substituindo os que sucumbiram de vez, com outros. Mas há aqui um problema de tempo. Um ano de interrupção, medido pela escala da velocidade e da aceleração necessárias para o equilíbrio do sistema, é muito tempo, produz instabilidade destruidora. Há muita coisa que não vai, pura e simplesmente, ser retomada. E entre essas coisas sujeitas à descontinuidade está a lógica que governava as cidades turísticas. Evidentemente, não é de esperar que Veneza ou Roma continuem, como agora, vazias. Mas alguns factores de esvaziamento vão manter-se mesmo quando acabar a pandemia, por razões psicológicas, mas também por questões logísticas (por exemplo: como é que as companhias aéreas de low cost vão retomar a sua actividade, depois de um desastre desta dimensão?).

Entretanto, vamos tendo notícias que indiciam algumas mudanças que podem tornar-se irreversíveis, mesmo que se façam todos os esforços para retomar a “normalidade”. De Itália, chega-nos através da revista Micromega, dirigida por Paolo Flores d’Arcais, um dossier sobre o “depois do vírus”, onde se faz o retrato de uma “pandemia urbanística” que obriga a uma tarefa ingente: nada mais nada menos do que “redesenhar a Itália”, mudar o “perfil do nosso território” e deter a “corrida da urbanização”. Em suma: o desastre da pandemia ocorrido no último ano mostrou o verdadeiro rosto de um desastre muito anterior que muitos queriam disfarçar. E em França, na semana passada, o Le Monde publicou uma reportagem sobre o êxodo das pessoas para cidades mais pequenas, como menos de 100 mil habitantes, porque o custo de vida é mais baixo, a qualidade é melhor e o modelo da megalópole como Paris só já atrai o turismo ou quem tem muito dinheiro.

Neste modelo de desenvolvimento, as fronteiras da periferia atravessam os centros. Quanto à vida urbana, a pandemia tem efeitos devastadores, mas o fim da cidade tal como a conhecemos no auge da turistificação e do neo-liberalismo estava anunciado e já não pode ser detido. 

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