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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O outro lado das imagens

 


por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 19/02/2021)

José Gameiro

Há filmes que marcam a nossa vida. Mas sabemos pouco sobre a vida desses filmes.


Há filmes que nos marcaram e que vemos e revemos ao longo da vida. Os mais antigos são hoje objeto de estudo e de investigação nas Universidades.

Mas raramente temos acesso, também porque não nos interessa muito, às histórias reais que acompanham o fazer de um filme. É semelhante àquela frase conhecida, se gostas de um livro, não queiras conhecer o autor. Porque podes ficar desiludido.

Cinquenta anos depois do filme “Morte em Veneza”, que nos deslumbrou, surge, no Festival Sundance, de Robert Redford, um documentário sobre o ator que interpretou o papel do jovem Tadzio, “O Rapaz Mais Bonito do Mundo”.

Luchino Visconti demorou meses a encontrar um jovem que fosse suficientemente bonito para encarnar o papel. Correu vários países, Hungria, Polónia, Finlândia e foi finalmente em Estocolmo que encontrou Bjorn Andrésen. O próprio realizador fez um documentário “À Procura de Tadzio”, com todo o percurso que fez.

O filme sobre o ator, agora exibido, demorou cinco anos a realizar. Segundo o jornal “El País”, foram longos tempos a ganhar a confiança de alguém, que tinha ficado marcado para o resto da vida, pelo que se passou depois. Com apenas 15 anos foi exposto de uma forma traumatizante, nas aparições públicas, para promover o filme.

Tudo começou logo na conferência de imprensa de Visconti em Cannes. Falavam dele como se ele não estivesse presente, em francês, que não entendia, sobre a sua beleza. Pareciam morcegos, tive medo, disse Bjorn. A seguir foi levado para um clube homossexual. Só se lembra da decoração vermelha e negra, as línguas vorazes, bebeu muito para não se sentir um bocado de carne. Ainda hoje estas recordações estão bem vivas na sua memória.

Depois levaram-no para o Japão. Ali foi explorado e drogado para aguentar sessões de fotografia, programas de televisão e a gravação de um disco. Ficou lá durante um ano, à espera de fazer um filme, prometido, mas que nunca aconteceu.

Era um jovem marcado pela morte precoce da mãe e por uma avó obcecada pela ideia de ele vir a ser um ator famoso, que o lançou nos castings.

Foram anos e anos em que não conseguia olhar-se no espelho. Hoje, com 66 anos recuperou, fez as pazes com o que viveu e trabalha em cinema e televisão. Como se a história da pandemia que atravessa o filme o tivesse atingido durante muitos anos.

Já em 2007, Maria Schneider, atriz principal do filme de Bernardo Bertolucci, “O Último Tango em Paris”, tinha denunciado o abuso do realizador e de Marlon Brando, na célebre cena da relação anal. Ambos combinaram não revelar o limite da cena, porque queriam ter uma reação da menina e não da atriz... O filme, à época, foi muito criticado pela cena sexual explícita, mas ninguém se preocupou com o que teria sentido uma jovem de 19 anos.

Nenhum destes realizadores abusou dos seus atores. Ao contrário do que foi denunciado nos últimos anos no mundo do cinema e da moda, em que algumas escolhas eram determinadas pela disponibilidade, debaixo de forte pressão, dos jovens em terem relações sexuais, Visconti e Bertolucci nunca o fizeram. Mas permitiram que fossem criados contextos fortemente traumáticos, que condicionaram o resto das suas vidas.

O fotógrafo David Hamilton, célebre e admirado pelas suas fotografias de meninas púberes, em poses sensuais, foi acusado de as ter abusado. À época, foi admirado pelas suas fotos em busca da beleza pura...

Tudo isto se passou há muitos anos, em que ainda ninguém ligava nenhuma a estes abusos. Desde então muita coisa mudou e algumas das vítimas conseguiram falar e denunciar.

Mas as marcas ficaram para sempre e, provavelmente ainda “não sabemos da missa a metade”.

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