Posted: 01 Feb 2021 03:30 AM PST
«A associação conceptual, técnica e política da pandemia à economia será classificada pelas gerações futuras como um crime contra a humanidade. Esta associação provoca atrasos inevitáveis no combate à pandemia e consequências evitáveis na economia e na vida dos cidadãos.
Vivemos num ciclo vicioso auto-imposto e resultado de uma cegueira civilizacional. Para combater a pandemia precisamos de reduzir drasticamente a interacção social, mas a redução coloca as pessoas em situação económica e financeira insustentável. É necessário ultrapassar esta contradição: deseja-se uma interdependência naquilo que é mutuamente exclusivo.
Se a redução da interacção social não tivesse custos económicos, o combate à pandemia far-se-ia de forma mais eficaz e eficiente. A sociedade consolidou-se ao longo dos últimos 500 anos através da ligação mobilidade-emprego-rendimento- consumo, de tal forma que se considera esta ligação como parte do ADN da espécie humana. Será mesmo assim? Em que momento é que a economia se tornou numa lei da física? Em que momento é que a matriz económica relegou a humanidade para um seu subproduto?
A economia é uma construção social, não é uma lei da física. É uma forma de organização de recursos, construída pelas sociedades e capaz de dar uma resposta satisfatória ao modelo de extracção, produção e consumo de energia necessário à sobrevivência. A economia que existia há 1000 anos é diferente da que existe hoje e será diferente da que existirá daqui a 1000 anos. Repare-se na ironia: mesmo os partidos de esquerda já se deixaram alienar pela matriz económica que sempre criticaram, aceitando confinamentos mais duros, mas salientando que é preciso “apoiar a economia”! A economia não precisa de apoios, as pessoas é que precisam de apoios! Apoiar a economia não é a mesma coisa que apoiar as pessoas. A interacção social origina um tecido económico que se traduz num filtro que tem consequências sobre as sociedades. Sabemos que a matriz económica é um filtro que produz efeitos indesejáveis (criminalidade, insegurança, desigualdades, problemas ambientais). A sociedade tem vindo a aperfeiçoar este filtro, mas é um processo em constante construção. Apoiar as pessoas é um caminho para melhorar o filtro económico. Apoiar a economia, esperando que chegue às pessoas, é utilizar um filtro deficiente numa situação para o qual ele não foi concebido. O resultado não poderá ser melhor do que o instrumento utilizado.
Eu achava que por Abril ou Maio de 2020 os principais líderes mundiais já teriam dado indicações para que os principais bancos centrais emitissem moeda, que seria canalizada pelas rubricas orçamentais para as necessidades das pessoas, mantendo os agregados macroeconómicos constantes. Esta acção reduziria a interacção social para níveis que tornariam o combate à pandemia (e o posterior estímulo às actividades económicas) mais eficiente. Não se consegue um consenso mundial? Tente-se um europeu. Num dos momentos mais delicados da humanidade, a Europa tem uma boa oportunidade — num período sob a presidência portuguesa – de uma vez mais mostrar ao mundo a sua natureza progressista e inovadora. A solução pode até ser menos radical: emissão de moeda para as necessidades dos sistemas de saúde e de segurança social, sem contabilização para o défice e a dívida.
Pode não se gostar destas soluções. Mas ao prolongar a ausência de qualquer solução, as consequências são múltiplas. Biologicamente, impede-se a resolução rápida da pandemia (mais tempo de circulação do vírus, novas mutações, sistemas de saúde exauridos). Economicamente, aprofundam-se todos os efeitos indesejáveis (recursos, emprego, pessoas, maior dessincronização territorial, nova austeridade?). Politicamente, quanto mais tempo durar a pandemia e se aprofundarem os problemas económicos e sociais, maior é o espaço para o crescimento de partidos anti-sistema.
Arrisco dizer que nenhum político, nem nenhum sistema político, ficará na história pela forma como lidou com a pandemia até ao início de 2021. Não faltará, contudo, espaço para os movimentos que tenham contribuído para a clarificação das regras do jogo que se jogou na terceira década do século XXI. Afinal é possível, conceptual e tecnicamente, dissociar as duas dimensões. E politicamente? Como vão os nossos filhos avaliar o futuro que lhes legámos e tudo o que lhes negámos?»
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