por estatuadesal |
(José Pacheco Pereira, in Público, 06/03/2021)
Sem o doublespeak orwelliano, esta expressão não significa outra coisa senão capturar o PSD para a direita dos tempos da troika.
A ocultação pelas palavras e a manutenção do poder pelo controlo sobre as palavras estão na essência do 1984. Orwell descreveu a linguagem do ingsoc assente no doublespeak e o que é mais que actual no seu livro é a percepção de que, mais do que a repressão directa, era o controlo do que se dizia e como se dizia que explicava o poder do Big Brother. Acrescia a esta percepção a também muito actual situação de o Big Brother proibir todos os anos um certo número de palavras, o que, empobrecendo o vocabulário e a sua capacidade expressiva, condenava os seus servos a uma linguagem gutural e pouco comunicativa. Não nos diz nada num mundo dominado pela restrição de caracteres no Twitter e as abreviaturas da linguagem gutural dos SMS?
Por cá temos muitos exemplos do doublespeak orwelliano. Recordo-me de um exemplo típico nos anos (que parecem saudosos a alguns) da troika, quando o Governo Passos-Portas-troika anunciou uma série de “cortes”. Algum “comunicativo” explicou que chamar “cortes” aos cortes era uma asneira e no dia seguinte todos os ministros, secretários e demais pessoal político passaram a falar de “poupança”. Ontem eram “cortes”, hoje são “poupanças”. Mas a prática continuou.
Um exemplo dos dias de hoje é a célebre “reconfiguração da direita”, expressão que muita gente usa descuidadamente como se fosse unívoca. Vamos por partes, começando pela “direita” e acabando na “reconfiguração”. Já disse cem vezes, e repito mais uma, que os termos “direita” e “esquerda” são muito inadequados para uma análise da complexidade da vida política contemporânea, mas, mais uma vez, por maldita comodidade vou usá-los. No entanto, com a redução da política a um grau muito próximo do zero, talvez passe de novo a ter algum sentido. Só que esta “esquerda” e esta “direita” já não são o que eram – são outra coisa, são expressões que são hoje tribais, num período de radicalização que varre tudo o que não seja pertença de uma tribo outra. Estamos no reino dicotómico da esquerda-direita, e tudo o que não se reconheça numa das tribos é visto como traidor por uma delas. Na verdade, a tribalização hoje é mais evidente à direita do que à esquerda, porque a agressividade identitária é muito maior, quer pelas forças, a principal das quais é a aliança com o populismo antidemocrático, quer pelas fraquezas, em particular nas urnas. Por isso, na nossa frase orwelliana da “reconfiguração da direita”, a direita de que se fala tende a não ser a direita democrata-cristã, nem conservadora, nem liberal, mas a direita tribal que vem para regular as contas com o “socialismo”, que parece ser o seu alvo, mas não é.
Vamos então à “reconfiguração da direita”, uma expressão que não significa outra coisa senão capturar o PSD para a direita dos tempos da troika. Para esta direita tribal, o PSD é o seu objectivo principal, não é o PS. Sem o PSD, toda esta direita tribal é grupuscular, quem tem os votos é o PSD, sem eles não se acede ao governo e esse acesso, principalmente em tempos de “bazuca”, é estratégico. O seu inimigo principal não é Costa, é Rio, que cometeu o crime de querer recentrar o PSD e tirá-lo da forte deslocação à direita que se deu no Governo Passos-Portas-troika. Daí a nostalgia do regresso de Passos Coelho, a criação de Relvas, cuja memória é todos os dias objecto de lavagem, também num sentido orwelliano. Um dos instrumentos dessa lavagem é a atribuição das políticas mais impopulares à troika, quando os ditames da troika foram consentidos, desejados e ultrapassados, indo “para além da troika”. Na parte em que houve obrigação, isso deveu-se a que o descalabro orçamental de Sócrates foi seguido por vários meses de políticas idênticas, até aos célebres cortes do Natal, que seriam únicos e para não se repetirem (já ninguém se lembra), porque chegavam. O problema nem sequer foi apenas os cortes, mas o alvo dos cortes, o ataque aos mais velhos, a “peste grisalha”, e à baixa classe média, aos direitos laborais, a sistemática tentativa de fazer políticas anticonstitucionais, num ambiente de revanchismo social contra todos os que tinham saído da pobreza por via do Estado, na educação, na saúde, na administração pública. E a coisa acabou com o varrer para o tapete, com a conivência da União Europeia, de tudo o que ficou por resolver como a crise na banca, que ainda hoje pagamos.
Terminando com a “reconfiguração da direita”, sem doublespeak, e traduzindo, significa afastar Rio, trazer Passos ou um qualquer clone de Passos, capturar o PSD para a tribo, colocar o PSD à cabeça de uma “frente de direita” (algo que Sá Carneiro não quis que a AD fosse), e voltar à austeridade com os mesmos alvos do passado, “os que viviam acima das suas posses”, que não eram os que sempre viveram das nossas posses.
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