por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/03/2021)
A maior condicionante ao comportamento de Marcelo numa crise incerta é a desproporção de força entre o Governo e o Presidente. E ela resulta de escolhas de Costa. Não quis uma solução de maioria e apoiou informalmente Marcelo. O Presidente tem 60% dos votos para redefinir os seus poderes. Já começou. Fá-lo em proteção de um governo frágil, fá-lo-á para limitar todas as suas opções. As opções táticas de Costa definiram o segundo mandato de Marcelo. O seu protetor poderá vir a ser o seu carrasco.
Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse para o seu segundo mandato. Definiu as suas prioridades. Mas vivemos um tempo de tal incerteza que as suas prioridades não podem ser determinadas por ele. Não sabemos quanto tempo durará esta pandemia e até onde nos levará a crise sanitária. Não sabemos, por isso mesmo, a profundidade do impacto social, económico e até político da crise. Nem sequer sabemos que Europa sairá desta pandemia. Serão as prioridades que determinarão Marcelo, não o oposto.
Há, no entanto, condições prévias que já definem e continuarão a definir o comportamento do Presidente da República. E foram quase todas determinadas por decisões táticas de António Costa. A maior condicionante política ao comportamento de Marcelo numa crise de dimensões e duração incerta é a desproporção de força entre o Governo e o Presidente.
Quando António Costa optou por não ter uma solução de maioria parlamentar, não negociando com o Bloco de Esquerda essa possibilidade (bem aliviado deve estar o BE, neste momento), com a desculpa esfarrapada de que essa solução teria de incluir um PCP que recusava acordos escritos, pensou que teria quatro anos de prosperidade económica e folga orçamental. Que poderia gerir alianças de geometria variável e chantagens em cada crise. Se há coisa que um político deve saber é que a previsão é uma arte estranha ao seu ofício. A importância de estar prevenido para o pior é a única certeza que pode ter. Hoje, no meio de uma crise pandémica, Costa depende da continuação da crise da direita para sobreviver.
Estando numa situação de fragilidade política, António Costa decidiu apoiar informalmente a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Mário Soares foi reeleito com 70% no mandado de um governo de maioria absoluta do PSD. Por isso, o Cavaco deu-se ao luxo de apoiar a sua reeleição. Soares nada podia fazer, a não ser dar alento, como deu, a uma esquerda há seis anos na oposição. Costa deu-se ao luxo de apoiar informalmente a reeleição de um Presidente de direita quando governa em minoria.
Julgava estar, com este apoio, a comprar um escudo. A não ser que seja o único político português que acredita na lealdade de Marcelo (Marcelo não acredita na de Costa, seguramente), saberá que esse escudo durará enquanto a direita não se reorganizar e enquanto interessar ao Presidente manter Costa em São Bento. E, mesmo até lá, será um escudo pesado. É evidente que Marcelo venceria as eleições sem o apoio de Costa. Até é provável que o vencesse à primeira, com menos votos da esquerda e mais da direita. Mas dificilmente teria a votação que teve. O que quer dizer que dificilmente teria a força que tem.
Quer a larguíssima votação que deu ao Presidente um poder reforçado, quer a fragilidade da solução governativa resultam de decisões de Costa. E têm origem no mesmo problema: um olhar que é sempre de curto ou médio prazo.
Enquanto a direita não conseguir arrumar a sua casa, não é provável que Marcelo tenha choques com o Governo. E não é provável, porque não precisa de o fazer. Perante uma crise pandémica, social e económica, com um governo minoritário e que tenderá a desgastar-se depois da fase pandémica, o Presidente tem 60% dos votos para redefinir os seus poderes. E já o começou a fazer.
Quando Marcelo anuncia datas e critérios para o desconfinamento, que são poderes executivos, até pode estar a ajudar o Governo, preparando o caminho para uma solução faseada e muito cautelosa. Mas está a alargar a sua influência, como não acontecia desde o tempo de Ramalho Eanes, quando eram outros os poderes. Fá-lo em proteção de um governo frágil, fá-lo-á para limitar todas as escolhas desse governo frágil, quando isso for do seu interesse. Quando Costa fez todas as opções táticas que o tornaram totalmente dependente do Presidente da República, definiu o que será o segundo mandato de Marcelo. O seu protetor poderá vir a ser o seu carrasco.
Nota: não tenho qualquer razão para acreditar na desculpa sem conteúdo dada pelo gabinete de Cavaco Silva para não ter ido à sessão de cumprimentos do seu sucessor. Foi mais uma de muitas demonstrações de desrespeito e deselegância institucional, comuns no ex-Presidente. Mas não deixei de me divertir com a afirmação, dias antes, de que vivemos numa “democracia amordaçada”. Para quem se lembra como as cargas policiais eram a forma banal de lidar com manifestações, fosse de polícias, de estudantes ou de utentes da ponte sobre Tejo, ouvir isto de Cavaco Silva é hilariante.
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