Posted: 16 Mar 2021 04:49 AM PDT
«Numa visão muitíssimo superficial, o Parlamento teria sofrido esta segunda-feira um revés, com o chumbo do Tribunal Constitucional (TC) da lei da eutanásia que levou ao veto por inconstitucionalidade por parte do Presidente da República. Mas o suposto “cartão vermelho”, como lhe chamou o líder do CDS, acabou por encerrar a questão que realmente mobiliza os opositores deste avanço na liberdade individual, autonomia e direito à dignidade das pessoas.
Mesmo a oposição política de Marcelo Rebelo de Sousa a esta lei era de fundo e, tal como a Igreja Católica, centrava-se na questão do direito à vida. Sendo um constitucionalista experiente, percebeu o enorme risco em insistir na inconstitucionalidade da lei com esse argumento, tendo escolhido outra abordagem no seu pedido de fiscalização. Mas, sem que lhe fosse perguntado, o Tribunal Constitucional fechou o debate constitucional essencial: "O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância.”
Quando digo que fechou o debate, refiro-me ao debate constitucional, não ao debate moral e político. Esse pode e vai continuar, como continua o da interrupção voluntária da gravidez. Mas ele não se transpõe para a contenda constitucional porque, como diz o comunicado de imprensa do Tribunal Constitucional, a Constituição permite ponderar a proteção da vida com a autonomia pessoal de quem é seu dono. Os deputados têm a legitimidade do voto para encontrar o equilíbrio entre estes dois valores. Este é o debate que ficou resolvido.
Não sobra, em relação ao que é fundamental nesta lei, nenhuma dúvida constitucional. As dúvidas que o Presidente da República levantou são as que qualquer defensor de uma lei que regule e autorize a eutanásia poderiam levantar: os limites rigorosos em que a eutanásia pode acontecer. Marcelo considerava que os conceitos de “situação de sofrimento intolerável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico” eram demasiado imprecisos. Os juízes não concordaram com ele no primeiro caso: acham que ele é possível determinar “pelas regras da profissão médica”. Quanto ao conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema”, parece-me não terem seguido propriamente a argumentação do Presidente, que julgo estar preocupado com a possibilidade de alguém recorrer à eutanásia por ter uma lesão definitiva, sem estar a morrer. Se compreendi as objeções dos juízes, consideraram não estar determinado com rigor o que é “consenso científico” neste caso. Como deixaram alternativas que permitem encontrar na lei portuguesa ou no Direito Comparado formulações mais rigorosas, os deputados só terão de as aproveitar. As restantes normas só são consideradas inconstitucionais em consequência desta. A lei pode, por isso, ser alterada.
Não me parece mau que este recuo obrigue a debater de forma ainda mais apertada, com ainda mais cautelas, as condições em que um passo definitivo e complexo como este é dado. Afastado o fantasma da inconstitucionalidade de sermos donos da nossa própria vida, usado para impor à lei e ao conjunto dos cidadãos concessões religiosas da vida, aclara-se o debate em torno do que é prático nesta lei. Uns verão um recuo, mas é um avanço fundamental.
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