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segunda-feira, 29 de março de 2021

O abraço dos anticorpos

 


por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 26/03/2021)

Não te abracei quando nasceste, teria sido pouco prudente. Mas apeteceu-me. Como todos os pais, peguei-te ao colo, confesso que, ao início, com medo de te deixar cair. Ao contrário das mães, que parecem ter uma capacidade inata de segurar os filhos, nós temos de aprender, sob o olhar vigilante delas.

Quando começaste a andar e eu chegava a casa ao fim do dia, vinhas a correr do fundo do corredor, saltavas para o meu colo e davas-me um abraço tão forte que o dia estava ganho. Depois ias à tua vida, que a partir desse momento passava também a ser a minha. Vivíamos no chão. A montar Legos, a fazer corridas de automóveis, que ganhavas sempre, ou quase sempre, porque os psicólogos chateiam os pais se não deixam os filhos viver a frustração. Ao fim de semana íamos aos baloiços e aos escorregas. Passado pouco tempo já te atiravas, para eu te agarrar. Nunca te deixei cair, apesar daquela máxima pessimista, que não se deve confiar em ninguém, nem no pai.

Fizemos algumas coisas loucas, que não posso contar aqui, porque não sei quanto tempo demoram a prescrever as irresponsabilidades dos pais. Podem ser criticáveis, mas ainda hoje te lembras delas e me dizes, o pai era muito maluco… E os abraços continuavam sempre.

Depois, a pouco e pouco, como se quisesses respeitar a minha dependência e fazer uma “desintoxicação” lenta, os abraços foram sendo mais esquivos. Primeiro quando estavas com os teus amigos, depois mesmo sozinhos. Respeitei. Mais uma vez me socorri dos psis, que dizem que na adolescência vai tudo para os de fora, os de dentro têm de esperar que venham melhores dias. Confesso que tive ciúmes quando te via abraçar um amigo ou uma amiga, um avô ou uma avó. Mas tinha algumas migalhas nos dias de aniversário, ou quando trocávamos presentes no Natal.

Tudo passou, ficaste um adulto, claro que nunca mais correste para mim de braços abertos, mas os abraços voltaram. Até que veio a malfadada pandemia. No início ainda tentei esquecer-me, mas tu nunca te esquecias. Fugias de mim, no corredor da nossa casa. Quando nos cruzávamos, encostavas-te às paredes. Mas talvez nunca tenhamos falado tanto. De nós, da política, da família.

Aprendi contigo a aceitar decisões de outros que nos afetam profundamente. Devia ser ao contrário, mas usaste um argumento imbatível. Tivemos sorte, ninguém, da nossa família adoeceu. Protestámos juntos, contra os disparates que íamos ouvindo na televisão. Deixámos de ver notícias quando nos fartámos da exploração diária do número de mortos. Expliquei-te, o que já sabias, as desgraças vendem, em nome daquilo a que se chama verdade...

Falámos muito acerca da economia ter de ser para as pessoas e de como sem pessoas não há economia. Da injustiça dos confinamentos para aqueles que não têm ordenado certo ao fim do mês. É verdade que não demos abraços, mesmo com máscara, mas conhecemo-nos melhor. E perdemos as nossas arrogâncias. Eu a de pai e tu a de filho.

Até que chegou a vacina. Eu armado em conhecedor a tentar imaginar hierarquias de vacinação. A cada ideia que tinha, tu replicavas, o pai está a complicar. Isto é muito simples, dizias. Primeiro aqueles que vivem no meio do vírus e depois dos cem anos para baixo... E fazias contas, os avós devem ser vacinados lá para... e os pais lá para...

Até que chegou o meu dia. O primeiro e depois o segundo. Deixaste passar duas semanas, tantas conversas tinhas ouvido que já sabias umas coisas de imunologia. Cheguei a casa ao fim da tarde. Correste para mim como fazias em criança e deste-me um abraço. Nunca mais me irei esquecer do que me disseste: “Finalmente damos um abraço carregado de anticorpos.”

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