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terça-feira, 9 de março de 2021

Oportonismo filial II

 

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 05/07/2021)

José Gameiro

"Não sei se se lembra? Estive cá a falar consigo há uns meses. O meu filho estava a controlar-me a vida, durante o primeiro confinamento. E agora repete a graça.” Claro que me lembrava, o homem, por um lado, ficava sensibilizado pela preocupação do filho, mas por outro tinha perdido a liberdade e fazia coisas na clandestinidade. Chamava-lhe, e bem, o oportunismo filial.

“Durante o verão correu tudo muito bem. Um ou outro telefonema do Algarve para saber o que estávamos a fazer, onde tencionávamos ir, nada demais. Estava entretido com os amigos, voltou à condição de filho... Mas agora com este confinamento voltou tudo, ainda pior. Preciso mesmo que me ajude, isto não pode continuar. Já no Natal, apesar de termos sido aconselhados a ter cuidado, mas nada nos impedia de estar com a família, começou a chatear. Vocês são uns inconscientes, dão ouvidos a esses epidemiologistas que acham muito bem que se façam testes rápidos para se sentirem seguros. Eu só vou ao Natal de família se comermos fora da mesa, está fora de questão ficarmos todos sentadinhos e depois já sei como é... A partir daqui foi sempre a piorar. Se no primeiro só se preocupava comigo, agora tomou o comando da casa. Faz as compras, nada de produtos calóricos, que engordámos muito, todas as refeições com saladas, parecemos uns grilos. Em abono da verdade nunca comi tão bem, inventa e sai sempre ótimo. Com o agravar dos contágios dissemos à empregada para não vir. Olhe, acordo de manhã com o aspirador e com o frio a entrar pelas janelas. Abre tudo, diz que é preciso arejar, para expulsar os miasmas. Quer-nos obrigar a fazer testes regularmente. Muito antes desta nova diretiva de fazermos testes sem prescrição, já ele e os amigos os faziam. Ó pai é muito simples, telefona para a linha SNS 24, diz que teve um contacto suspeito, tosse, espirra, parece que tem menos olfato e passado pouco tempo recebe um código para ir fazer um teste de borla. Claro que nunca o fiz, mas não deixo de reconhecer que foram precursores da testagem maciça...”

Balbuciei, mas isso é bom, não é? Estava tão exaltado que não me respondeu.

“Calma que ainda não ouviu tudo. Um dia destes aceitámos um convite para ir jantar a casa de um amigo meu. Vive sozinho, tem uma mesa com quatro metros, o risco é quase nulo. Fez uma cena, que não podíamos ir, amuou, pintou a manta e, depois, como não é parvo, disse-nos que também ia sair. Está a ver, como se fossemos todos iguais. Isto da pandemia mudou muito a hierarquia familiar. Acha que vai voltar ao normal?”

Tentei pôr água na fervura. Claro que sim, é passageiro e traduz a preocupação dos jovens com os mais velhos. Levei logo com a resposta. “O senhor doutor é um ingénuo. Diga-me lá qual é a preocupação dele com o que lhe vou contar. Há uns dias chamou-me à casa de banho, com um ar de caso. Que grande bagunça que isto está. As coisas da mãe e do pai, todas misturadas, decidi arrumar tudo, as suas para um lado e as da mãe para o outro. Ah, pus no lixo toda a tralha que vocês tinham aqui. Não têm vergonha andam a roubar os frasquinhos dos hotéis, parecem uns putos, contentes por usarem gel com cheirinho. Não contente, chegou à dispensa e fez o mesmo. Metade foi fora. Aqui tinha razão, muita coisa já estava fora de prazo.”

Tentei falar, mas não me deixou. “Já estou a acabar, mas não posso deixar de lhe contar mais uma. Quando vou às compras trago-as num daqueles sacos de papel ecológicos que depois ponho lixo. Acusou-me de não me preocupar com o planeta: ‘O pai vai guardar o saco e usa sempre o mesmo, até poder.’ E agora tentou comprar-me: ‘Se o Pai se portar como deve de ser, ensino-lhe um sítio onde pode ir saborear o seu cafezinho. Basta dizer que é meu pai e tem tudo o que quiser... Mas não pede um café, pede um bitoque...’”

Quebrei todas as regras e perguntei ao senhor: “Onde é o cafézinho?”

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