por estatuadesal |
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 26/03/2021)
Para se ser ministro do Ambiente em Portugal são precisas três coisas: primeiro que tudo, amar profundamente este país maravilhoso que é Portugal e querer absolutamente preservar o que ainda resta daquilo que é o seu maior património, presente e futuro — a sua paisagem natural e ecossistema; segundo, ter bem presente quais são as principais ameaças a essa preservação e ser clarividente na desmontagem dos inúmeros alçapões que se abrem no caminho de quem o quer fazer; terceiro, e consequentemente, estar disposto a travar um combate feroz contra poderosíssimos interesses instalados e suportar as pressões, as ameaças, os riscos inerentes.
Não é tarefa fácil: não basta a um ministro do Ambiente querer defender os tomates contra os abacates, ele tem de ter tomates para enfrentar os abacates.
Como julgo que já toda a gente percebeu, o personagem que, entre nós, responde actualmente pela alcunha de ministro do Ambiente não é homem para essa função. Não sei se lhe falha a primeira qualificação, a segunda, a terceira ou todas elas. Mas, manifestamente, nem ele próprio saberá dizer o que anda por lá a fazer naquele lugar, além de um evidente desejo de não dar nas vistas, sendo tão inútil quanto necessário. E antes que ele volte a escrever para aqui, acusando-me de embirrar com ele de cada vez que não tenho mais nada que fazer, deixem-me notar que não estou sozinho nessa “embirração”: esta semana, a propósito da iminente aprovação de um projecto de construção turística no Mouchão do Lombo do Tejo, pondo em risco a preservação ambiental do estuário do Tejo, um grupo de 11 reputados especialistas no assunto, todos com responsabilidades passadas nessa área, vieram acusar o actual ministro de “envergonhar a sua missão, em pleno século XXI, num país da União Europeia”. E vimos, esta semana também, como o ministro meteu os pés pelas mãos e se refugiou atrás da Autoridade Tributária e de um inesperado ímpeto anti monopolista contra a EDP para justificar o injustificável bónus fiscal de 110 milhões de euros que o Governo deu à EDP. É Matos Fernandes no seu melhor, no seu habitual: há sempre um serviço que atrapalha, um departamento que complica, uma lei que não é clara, um parecer que não esclarece, um grão de areia que o deixa de mãos atadas, na impossibilidade funcional de ser outra coisa que não inútil.
O Tejo foi transformado num esgoto químico há três anos por uma empresa que, até hoje, nada pagou por esse crime ambiental. Mas Matos Fernandes gaba-se de ter limpo o rio — à custa dos contribuintes — sem ter obrigado a empresa a pagar um euro, a garantir que não volta a fazer o mesmo da próxima vez que o rio não tenha caudal, nem tenha tido coragem para mudar a lei para permitir que nenhum expediente jurídico impeça que se meta imediatamente na cadeia alguém que resolve mandar abrir o esgoto de uma fábrica sabendo que vai envenenar o maior rio do país, fonte de vida e de abastecimento de centenas de milhares de pessoas.
E, na semana que entra, quando o Parlamento começar, enfim, a discutir a questão do plantio dos abacates no Algarve — que já vai em 2000 hectares —, ele irá dizer, ou mandar dizer, que o assunto é com a Agricultura e que, embora seja verdade que o abacate gasta muita água e o Algarve tenha pouca e venha a ter cada vez menos, ele tem um plano para trazer água do Guadiana, via Pomarão. (Problema: quando falta água no Algarve, também falta no Guadiana, e os espanhóis, que usam a nossa água para plantar abacates em Tavira e olivais superintensivos no Alqueva, não deixam passar água do Guadiana para baixo.) Mas, em boa verdade, o problema é mais geral do que este homem — reside na cultura instalada muito antes dele e de que ele é apenas um continuador, porventura mais fiel e obediente do que os outros. Veja-se o sistemático retalho e redução das áreas de paisagem protegida, agrícola e ecológica da Rede Natura 2000 e até de Parques Naturais, por via da aprovação dos malfadados Projectos PIN — uma invenção que, em nome de um suposto “interesse nacional”, permite passar por cima de todas as restrições legais à construção e à ocupação do território. Veja-se a modalidade, verdadeiramente terceiro-mundista, da figura da suspensão provisória e ad hoc dos Planos Directores Municipais, a que todos, cidadãos e empresas, têm de se submeter se quiserem construir nem que seja só um metro quadrado dentro de um concelho, mas que podem ser suspensos em casos excepcionais pelo tempo suficiente para que determinados projectos megalómanos sejam aprovados, sendo logo depois repostos em vigor — é assim que, passo a passo, a frente ribeirinha do Tejo, em Lisboa, vem sendo roubada aos lisboetas. Veja-se a tentativa em curso de passar a competência da gestão e licenciamento dentro dos Parques Naturais para as Câmaras Municipais, como se eles não fossem património nacional mas municipal, abrindo caminho para uma inevitável catástrofe paisagística e ambiental.
O problema é, pois, cultural: falta de amor ao país, à sua paisagem, ao seu património natural. E da parte de todos: governantes, autarcas, empresários. Tudo pode ser resumido na imorredoira frase, que eu não me canso de citar, de um ex-presidente da Câmara de Portimão, contemplando a ria de Alvor e suspirando pelos entraves à sua livre urbanização (entretanto, já em curso): “A natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca!”
Uma das vantagens de não estar na política é não temer as acusações que os políticos temem, e uma deles é o centralismo. O centralismo é, de facto, um dos problema que temos e que não é assim tão difícil de resolver. Mas o centralismo não é para aqui chamado — nenhum país que se preza abre mão de defender, a nível nacional, os seus recursos naturais. E a paisagem e o ambiente são recursos naturais e nacionais — eu não confio nem nos autarcas nem nos interesses a que eles são permeáveis para o fazerem. É ao Estado que compete essa função.
E há várias coisas que, em linhas gerais, se impõem fazer, por parte dos governos. Uma é, desde logo, terminar com as excepções às leis que delimitam as Reservas Nacionais — uma pequeníssima parte do território: como sucede em qualquer país civilizado, aí não se pode construir e ponto final. A lei é igual para todos, e não há PINS, nem suspensões do PDM, nem excepções de qualquer espécie para ninguém, sob pena de sanções criminais a sério. Depois, é essencial interligar a agricultura com o ambiente e o ordenamento do território, porque só uma visão integrada e abrangente de todas essas áreas permite uma gestão adequada dos recursos e a sua preservação. É preciso que a água passe a ser a prioridade absoluta de qualquer decisão nestas áreas e que a sustentabilidade de novos projectos deixe de ser uma bonita e vã palavra, mas seja sim uma condição prévia e demonstrada para a sua aprovação, nos domínios do consumo de água, energia, captura de CO2, recolha de lixos, etc. É necessário pôr termo ao ultrapassado princípio do poluidor-pagador e substituí-lo pelo efectivo princípio do poluidor-criminoso, pois, se reconhecemos que os crimes ambientais são crimes, devem ser tratados como tal e não reservar para os seus autores apenas o pagamento de uma multa ou mesmo o ressarcimento dos danos materiais causados, como se de uma simples contravenção se tratasse. É preciso uma visão corajosa que contrarie a estratégia instalada a todos os níveis de uma “economia brutal”, baseada na exaustão dos recursos naturais e tendo como objectivo o lucro rápido: o turismo de massas, a ocupação selvagem da orla costeira, a agricultura superintensiva. E, para tal, é fundamental, é decisivo mesmo, terminar com a ligação entre as receitas do IMI e as receitas das autarquias, pois isso é a fonte e o prémio de todos os crimes urbanísticos e factor de desigualdade territorial. Quanto mais uma autarquia autoriza construir, mais receitas do IMI recebe. E quanto mais receitas tem, mais rotundas, centros de dia, pavilhões de congressos e piscinas constrói e mais eleições ganha o seu presidente. E mais se degrada a paisagem, mais betão vem o Ministério do Ambiente injectar nas rochas e mais areia trazer para as praias. Enquanto concelhos do interior, afastados da pressão turistíco-urbanística, vegetam sem verbas para melhorias essenciais. As autarquias deveriam ser financiadas directamente pelo Orçamento do Estado e em função de critérios objectivos — a área e a população — e de critérios subjectivos — o grau de desenvolvimento e, por exemplo, o seu desempenho em termos de qualidade de vida proporcionado às populações e de respeito pelas metas ambientais.
Eu sei, tudo isto é um sonho. Mas se, como disse, para vergonha nossa, a ministra das Finanças da Suécia, é fascinante que os portugueses não se revoltem por ver os suecos viverem aqui com as suas ricas pensões de reforma sem pagarem um euro de IRS, quer lá quer aqui, também é fascinante pensar que, apesar de tudo, temos de agradecer: este Governo que em matéria fiscal é tão generoso com os estrangeiros, como a EDP e os reformados suecos, e tão impiedoso com os portugueses, ainda não nos cobra impostos por ousarmos sonhar. É de aproveitar.
(*O título é roubado ao livro autobiográfico de Hugo Pratt, o imortal criador de Corto Maltese, e tem a ver com o que o pai lhe dizia quando ele era pequeno e, em vez de estudar, só gostava de desenhar: “Queres ser um inútil?” Porém, qualquer comparação com a inutilidade do ministro do Ambiente é deveras injusta.)
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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