por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/03/2021)
Um certificado de vacinação não me levanta problemas. Existe para a febre amarela. Mas só pode haver limitações de movimentos se as vacinas estiverem disponíveis para todos. Para Bruxelas, a propriedade (mesmo paga com dinheiro público) é tão sagrada que, ao arrepio dos acordos internacionais, as patentes estão acima da saúde pública. Para não lhes tocar, está disposta a abrir alçapões morais e jurídicos. A questão não é a globalização. É o que está primeiro: lucro de poucos ou bem estar de todos? Propriedade ou liberdade?
A Alemanha e, por inerência de funções, a Comissão Europeia, avançou com a ideia de criar um passaporte de vacinação. À partida, um certificado de vacinação não me levanta qualquer problema. Quando viajamos para vários países ou de alguns países é obrigatório, por exemplo, o certificado internacional de vacinação para a febre amarela. Até defendo a obrigatoriedade de algumas vacinas que constam no plano nacional de vacinação para inscrição na escola pública, por exemplo.
A imunidade de grupo para algumas doenças implica a participação de todos. E a recusa da vacina é um ato de parasitismo, em que alguém que não quer correr qualquer risco se protege à custa do risco alheio. A liberdade individual não pode pôr em perigo a segurança coletiva. A moda dos antivaxxers é uma doença do individualismo extremo e do conforto que tem correspondido, em alguns países do primeiro mundo, a um recuo de décadas na saúde pública.
Mas qualquer limite de movimentos determinado pela a ausência de vacina contra a covid tem de ter como pressuposto que as vacinas estão disponíveis para todos e em todos os países europeus. Não estar vacinado tem de corresponder a uma escolha. Caso assim não seja, estaremos perante uma segregação de grupo inaceitável numa Europa que se diz democrática e solidária.
A parte interessante deste debate tem a ver com a inversão de valores a que assistimos na União Europeia. Esta proposta surge na mesma Comissão Europeia que é incapaz de usar a legislação internacional para levantar ou pelo menos ameaçar levantar as patentes, perante o descarado incumprimento dos deveres de umas poucas empresas farmacêuticas. Não tem nada de radical. Permite-o a declaração de Doha, no âmbito do TRIPS e da OMC. Como já aqui foi explicado, dezenas de países quebraram patentes, já neste século, em nome da saúde pública. Os EUA fizeram-no quatro vezes nos últimos 20 anos. Uma delas sobre o Tamiflu, durante a gripe das aves. E não é verdade que não haja, na Europa e fora dela, capacidade extra de produção.
Mas, para Bruxelas, a propriedade é sagrada. Tão sagrada que, ao arrepio dos acordos internacionais de comércio, está acima da saúde pública. Tão sagrada que é intocável mesmo quando foi paga com dinheiros públicos e os contratos não são cumpridos. E tão sagrada que a Comissão Europeia está disposta a abrir alçapões morais e jurídicos para não lhe tocar.
Este é apenas o primeiro sinal do que previ, em dezembro, que viria a acontecer quando se percebeu qual seria o modelo para o financiamento e produção destas vacinas. Com os países mais pobres a terem acesso mais generalizado às vacinas lá para 2024, viveremos anos em que a Europa se tornará numa fortaleza ainda mais murada e fechada sobre si mesma, para se proteger dos infetados. Um maná para a extrema-direita.
É curioso ver como os maiores defensores das maravilhas do capitalismo globalizado estão disponíveis para encerrar fronteiras e limitar a liberdade de movimentos das pessoas só para não tocarem na propriedade. O que prova que a divisão política entre os que estão abertos ou fechados ao mundo e à globalização é enganadora. A questão é a que sempre foi: que valores estão primeiro? O lucro de poucos ou o bem-estar de todos? A propriedade ou a liberdade?
Sem comentários:
Enviar um comentário