por estatuadesal |
(José Miguel Júdice, in Expresso Diário, 13/04/2021)
(Júdice não terá, seguramente, qualquer simpatia por Sócrates mas é um experimentado jurista e conhecedor do funcionamento dos nosso sistema de Justiça. Mas até ele sentiu necessidade de se precaver, por antecipação, das críticas que lhe vão ser dirigidas pelo facto de não embandeirar em arco na lapidação pública ao juiz Ivo Rosa.
Contrariamente à indigência jurídica e à menoridade intelectual de outro comentador de direita - Marques Mendes -, Júdice é outra loiça: sólido no argumentário jurídico, escorreito nas suas considerações. Por isso o publicamos.
Comentário da Estátua, 14/04/2021)
Vou entrar, em plena consciência e por isso sem demasiadas ilusões, num terreno minado. Vou tratar hoje do chamado “Processo Marquês”.
A situação está de tal modo radicalizada e emocional que André Ventura até pareceu moderado (comparado com o que li de pessoas moderadas) no modo como tentou aproveitar a seu favor a Decisão de 6ª feira do Juiz Ivo Rosa.
Quando as coisas estão assim, a opinião pública não tolera que se aborde com serenidade e independência o tema. Mas – talvez sobretudo por isso – acho que tenho o dever de tentar.
E faço-o sobretudo pelas seguintes razões: dediquei a minha vida à Justiça, acumulei 40 anos de experiência de tribunais (o que não creio que ocorra com nenhum dos habituais comentadores televisivos regulares e com quase ninguém que abordou o tema nos media), fui Bastonário e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
Como é natural, hoje não surgem as secções finais de “As Causas”: por falta de tempo, claro; mas sobretudo porque neste tema há espaço para elogio, para lembrar que ler é sempre o melhor remédio, para fazer perguntas que não vão ter respostas e para revelar loucura mansa.
O ESSENCIAL DA DECISÃO IVO ROSA
A começar, um resumo das conclusões essenciais:
A Decisão Instrutória foi escrita por um juiz experiente, preparado e independente, mas revela as fragilidades que também o definem e erra em pontos muito importantes.
A revolta social, que se compreende, está a ocultar que a investigação criminal foi esforçada, beneditina, atenta aos detalhes, mas estrategicamente incompetente, e nela está a origem do que estamos a viver.
A estratégia socratiana de “animal feroz” destrói a mera possibilidade social de empatia com as sucessivas violações dos direitos fundamentais, desrespeito do processo devido e abusos de poder, de que são exemplos marcantes as prisões preventivas (e o modo como foram feitas) e os acessos de certos meios de comunicação ao inquérito, que assim fizeram durante anos um julgamento na praça pública, o que por sua vez condicionou os próprios investigadores.
O processo penal é contraditório a partir da instrução, e os advogados (a quase totalidade são profissionais especialistas em prática individual ou sócios de pequenos escritórios) aproveitaram como é seu dever a investigação criminal pouco competente; e os seus argumentos de um modo geral tiveram sucesso.
Se hoje houvesse um capítulo para o Elogio ele seria para os advogados de defesa dos arguidos, até pela coragem que em ambientes deste tipo é preciso para defender quem a opinião pública acha que não merece defesa.
Ivo Rosa é a antítese de Carlos Alexandre e assume-se como juiz das liberdades e nisso aplica o mandato constitucional, o que torna objetivamente mais grave para o ex-Primeiro Ministro e outros arguidos as conclusões a que ele chegou.
Por isso Ivo Rosa matou politicamente José Sócrates – goste-se ou não que assim seja – muito mais claramente do que se fosse Carlos Alexandre (“justiceiro” e colaborador do MP) a pronunciá-lo e a todos os arguidos mesmo que por todos os crimes de que vinham acusados, como seria mais do que provável.
Finalmente, o sistema judicial tem em si todos os instrumentos para rever – se for caso disso - o Despacho de Ivo Rosa, pelo que escusam de rasgar as vestes os que acham que não há Justiça em Portugal.
AS NECESSÁRIAS EXPLICAÇÕES
Feito o resumo, agora algumas explicações:
Ivo Rosa foi – sem nenhuma necessidade jurídica – muito para além da missão do Juiz de Instrução, que é pronunciar ou não pronunciar, não sendo útil criticar com enfase e adjetivos a acusação, como não o seria fazer o mesmo à defesa. Nesse sentido, vestiu a pele do Juiz do Julgamento – mas isso morre com a Decisão e não tem efeitos jurídicos.
Creio que Ivo Rosa errou na questão fiscal e quando decidiu não pronunciar Ricardo Salgado e Helder Bataglia, o que deveria ter feito registando que – devido à confissão de Bataglia - há fortes indícios de que ao menos um deles corrompeu ou tentou corromper, e que deveria ser o juiz do julgamento a decidir – mas isso pode ser alterado pelo Tribunal da Relação.
A decisão sobre prescrição segue a doutrina conhecida do Tribunal Constitucional, mas como esta não tem (ainda) força obrigatória geral, pode também ser revista e alterada pelo Tribunal da Relação.
A pronúncia com base em indícios de corrupção de Sócrates feita por Santos Silva foi defendida por advogados de defesa na instrução, e o MP teria podido aditar à acusação essa tese de forma subsidiária, fortalecendo-a, o que não quis fazer; e ela é compatível com a existência de corrupções a montante, pelo que a insistência na teoria do “testa de ferro” foi um erro estratégico do MP.
Se hoje houvesse o capítulo da Pergunta sem Resposta, ela seria para o MP que não teve a cautela de fazer o óbvio, o que permite agora – corretamente, ou não – ao advogado de José Sócrates ir defender a nulidade da pronúncia com esse fundamento.
O MP partiu de dois factos inequívocos – Carlos Santos Silva fornecia dinheiro a Sócrates a partir de contas com mais de 30 milhões de euros – para tentar a seguir descobrir corruptores ativos, foi passando de uns para outros, tudo isso foi divulgado por alguns meios de comunicação social, e desse modo o MP ficou refém da sua estratégia, optando – como tantas vezes faz, e em regra com o apoio de Carlos Alexandre – por acusar tudo e todos e por todos os crimes que tenha à mão, e depois quando perde no julgamento a “culpa” é dos juízes.
A linha da decisão de Ivo Rosa está correta, pois segue a sábia doutrina dos meus mestres Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Costa Andrade e outros (a doutrina aliás já vem do tempo da Ditadura o que não é dizer pouco…).
Esta linha doutrinária é muito rigorosa e defende que para se poder pronunciar um arguido é necessário que existam “indícios suficientemente consistentes para tornarem previsível a condenação” (ou, nas palavras do art. 308, nº1 do CPP, “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, ao passo que a acusação (art. 283 2 do CPP) exige e basta-se com indícios de que haja “uma possibilidade razoável” de vir a ser aplicada, por força deles, uma pena em julgamento.
Em termos legais, há um oceano a separar a “possibilidade razoável” da “previsibilidade” de condenação. Por isso é normal – mesmo que o MP seja cauteloso, mas nos casos mediáticos prefere não ser – que a pronúncia não coincida com a acusação (até porque na fase da instrução surge o contraditório que não havia no inquérito).
Vou entrar, em plena consciência e por isso sem demasiadas ilusões, num terreno minado. Vou tratar hoje do chamado “Processo Marquês”.
A situação está de tal modo radicalizada e emocional que André Ventura até pareceu moderado (comparado com o que li de pessoas moderadas) no modo como tentou aproveitar a seu favor a Decisão de 6ª feira do Juiz Ivo Rosa.
Quando as coisas estão assim, a opinião pública não tolera que se aborde com serenidade e independência o tema. Mas – talvez sobretudo por isso – acho que tenho o dever de tentar.
E faço-o sobretudo pelas seguintes razões: dediquei a minha vida à Justiça, acumulei 40 anos de experiência de tribunais (o que não creio que ocorra com nenhum dos habituais comentadores televisivos regulares e com quase ninguém que abordou o tema nos media), fui Bastonário e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
Como é natural, hoje não surgem as secções finais de “As Causas”: por falta de tempo, claro; mas sobretudo porque neste tema há espaço para elogio, para lembrar que ler é sempre o melhor remédio, para fazer perguntas que não vão ter respostas e para revelar loucura mansa.
O ESSENCIAL DA DECISÃO IVO ROSA
A começar, um resumo das conclusões essenciais:
A Decisão Instrutória foi escrita por um juiz experiente, preparado e independente, mas revela as fragilidades que também o definem e erra em pontos muito importantes.
A revolta social, que se compreende, está a ocultar que a investigação criminal foi esforçada, beneditina, atenta aos detalhes, mas estrategicamente incompetente, e nela está a origem do que estamos a viver.
A estratégia socratiana de “animal feroz” destrói a mera possibilidade social de empatia com as sucessivas violações dos direitos fundamentais, desrespeito do processo devido e abusos de poder, de que são exemplos marcantes as prisões preventivas (e o modo como foram feitas) e os acessos de certos meios de comunicação ao inquérito, que assim fizeram durante anos um julgamento na praça pública, o que por sua vez condicionou os próprios investigadores.
O processo penal é contraditório a partir da instrução, e os advogados (a quase totalidade são profissionais especialistas em prática individual ou sócios de pequenos escritórios) aproveitaram como é seu dever a investigação criminal pouco competente; e os seus argumentos de um modo geral tiveram sucesso.
Se hoje houvesse um capítulo para o Elogio ele seria para os advogados de defesa dos arguidos, até pela coragem que em ambientes deste tipo é preciso para defender quem a opinião pública acha que não merece defesa.
Ivo Rosa é a antítese de Carlos Alexandre e assume-se como juiz das liberdades e nisso aplica o mandato constitucional, o que torna objetivamente mais grave para o ex-Primeiro Ministro e outros arguidos as conclusões a que ele chegou.about:blank
Por isso Ivo Rosa matou politicamente José Sócrates – goste-se ou não que assim seja – muito mais claramente do que se fosse Carlos Alexandre (“justiceiro” e colaborador do MP) a pronunciá-lo e a todos os arguidos mesmo que por todos os crimes de que vinham acusados, como seria mais do que provável.
Finalmente, o sistema judicial tem em si todos os instrumentos para rever – se for caso disso - o Despacho de Ivo Rosa, pelo que escusam de rasgar as vestes os que acham que não há Justiça em Portugal.
AS NECESSÁRIAS EXPLICAÇÕES
Feito o resumo, agora algumas explicações:
Ivo Rosa foi – sem nenhuma necessidade jurídica – muito para além da missão do Juiz de Instrução, que é pronunciar ou não pronunciar, não sendo útil criticar com enfase e adjetivos a acusação, como não o seria fazer o mesmo à defesa. Nesse sentido, vestiu a pele do Juiz do Julgamento – mas isso morre com a Decisão e não tem efeitos jurídicos.
Creio que Ivo Rosa errou na questão fiscal e quando decidiu não pronunciar Ricardo Salgado e Helder Bataglia, o que deveria ter feito registando que – devido à confissão de Bataglia - há fortes indícios de que ao menos um deles corrompeu ou tentou corromper, e que deveria ser o juiz do julgamento a decidir – mas isso pode ser alterado pelo Tribunal da Relação.
A decisão sobre prescrição segue a doutrina conhecida do Tribunal Constitucional, mas como esta não tem (ainda) força obrigatória geral, pode também ser revista e alterada pelo Tribunal da Relação.about:blank
A pronúncia com base em indícios de corrupção de Sócrates feita por Santos Silva foi defendida por advogados de defesa na instrução, e o MP teria podido aditar à acusação essa tese de forma subsidiária, fortalecendo-a, o que não quis fazer; e ela é compatível com a existência de corrupções a montante, pelo que a insistência na teoria do “testa de ferro” foi um erro estratégico do MP.
Se hoje houvesse o capítulo da Pergunta sem Resposta, ela seria para o MP que não teve a cautela de fazer o óbvio, o que permite agora – corretamente, ou não – ao advogado de José Sócrates ir defender a nulidade da pronúncia com esse fundamento.
O MP partiu de dois factos inequívocos – Carlos Santos Silva fornecia dinheiro a Sócrates a partir de contas com mais de 30 milhões de euros – para tentar a seguir descobrir corruptores ativos, foi passando de uns para outros, tudo isso foi divulgado por alguns meios de comunicação social, e desse modo o MP ficou refém da sua estratégia, optando – como tantas vezes faz, e em regra com o apoio de Carlos Alexandre – por acusar tudo e todos e por todos os crimes que tenha à mão, e depois quando perde no julgamento a “culpa” é dos juízes.
A linha da decisão de Ivo Rosa está correta, pois segue a sábia doutrina dos meus mestres Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Costa Andrade e outros (a doutrina aliás já vem do tempo da Ditadura o que não é dizer pouco…).
Esta linha doutrinária é muito rigorosa e defende que para se poder pronunciar um arguido é necessário que existam “indícios suficientemente consistentes para tornarem previsível a condenação” (ou, nas palavras do art. 308, nº1 do CPP, “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, ao passo que a acusação (art. 283 2 do CPP) exige e basta-se com indícios de que haja “uma possibilidade razoável” de vir a ser aplicada, por força deles, uma pena em julgamento.
Em termos legais, há um oceano a separar a “possibilidade razoável” da “previsibilidade” de condenação. Por isso é normal – mesmo que o MP seja cauteloso, mas nos casos mediáticos prefere não ser – que a pronúncia não coincida com a acusação (até porque na fase da instrução surge o contraditório que não havia no inquérito).
Se hoje houvesse o capítulo Ler é o Melhor Remédio, a sugestão era para se lerem as lições destes professores da Escola de Coimbra.
Se o MP tivesse optado por acusações separadas para cada tipo de situação, em vez do tradicional megaprocesso, o efeito mediático seria muito menor, mas a eficácia processual muito maior.
Uma decisão de um juiz como Ivo Rosa – que é muito mais exigente do que outros no conceito de “previsibilidade” da condenação – é muito pior para Sócrates em termos políticos.
Não acredito – conheço o MP bem – que houvesse uma conspiração para o destruir politicamente e evitar que viesse a ser eleito presidente da República. Pessoas como Rosário Teixeira merecem o meu respeito em termos éticos.
Mas, com toda a sinceridade, um político com a experiência e ambição que José Sócrates (ele confessa agora que queria ter sido eleito presidente da República em 2016) nunca deveria ter aceite o que aceitou receber de Santos Silva, e como o aceitou, mesmo que não se prove – ou mesmo que não tenha havido – corrupção. E disso só ele é responsável.
Por isso se houvesse hoje o capítulo Loucura Mansa, seria para a forma como o ex-Primeiro-Ministro desgraçou o seu futuro político.
Finalmente, 7 procuradores durante 5 anos, apoiados em permanência por um Inspetor Tributário, realizaram um
inquérito com meios e condições nunca existentes, reuniram milhares de documentos, acusaram em documento com mais de 3200 páginas, depois dezenas de advogados carrearam para o processo largas centenas de documentos durante 2 anos e meio e um juiz de instrução – sozinho – em 8 meses, sem férias nem fins de semana, segundo o próprio, teve de decidir e para isso de escrever mais de 6500 páginas.
Ivo Rosa seguramente que não tomou uma decisão sem erros, mas com a minha experiência de julgador o que me admira é que sejam tão poucos. E isso é matéria essencial para reflexão.
QUE FAZER? REFORMAS DO SISTEMA JUDICIAL PENAL
Agora algumas sugestões que resultam de tudo isto:
É urgente mudar radicalmente a cultura do inquérito, reforçando o caráter de magistratura do MP e admitir no futuro que o Estado Português se possa constituir assistente, para separar as águas e evitar a tentação dos procuradores em se tornarem advogados de acusação.
É urgente acabar com o “Ticão”, por tantas razões que uma hora não chegava para de todas falar.
Sem comentários:
Enviar um comentário