por estatuadesal |
(António Guerreiro, in Público, 09/04/2021)
Já tem um quarto de século, uma boutade proferida por Fredric Jameson, garantindo que “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”. Nos últimos tempos, fomos invadidos por um caudal de discursos (livros, artigos, conferências, etc.) sobre fins e colapsos do mundo, de tal modo que assistimos ao nascimento de uma nova disciplina, de fronteiras incertas, que se chama colapsologia. Já sobre o fim do capitalismo, o que nos chega, quando muito, são ainda os ecos de antigas e falsas profecias, recorrentemente anunciadas e sempre desmentidas. Temos agora a certeza de que Jameson tinha razão: tanta gente a pensar o fim do mundo e quase ninguém a pensar o fim do capitalismo.
Aquilo que o anti-capitalismo clássico, agarrado à noção de “classe capitalista” caracterizada como proprietária dos” meios de produção” e detentora de um “capital fixo” nunca quis perceber muito bem foi que o capitalismo se foi alterando radicalmente do interior e passou a ser “outra coisa”, sempre mutante, esvaziando de razão os pressupostos escatológicos dos anúncios recorrentes do fim e da superação. De tal modo que já não é possível hoje saber do que se está a falar quando se fala em capitalismo. É como dizer “o ambiente”, ou “a atmosfera”, ou “o horizonte”. Nomear hoje o capitalismo exige precisão, implica uma classificação vectorial: há o capitalismo digital, o capitalismo de vigilância, o capitalismo atencional, o capitalismo extractivista, o capitalismo estético, o capitalismo de plataforma e, até, o capitalismo genético. E outros, certamente, pois neste domínio tornou-se difícil ser exaustivo. Assim, temos hoje múltiplos capitalismos, e de alguns deles nós nem sabemos que mercadoria eles põem em circulação ou nem suspeitávamos que era possível extrair mais-valias colossais daquilo que nem tínhamos antes percebido que podia ter um imenso valor de troca. Se há quarenta anos nos viessem dizer que a mercadoria do nosso século é a experiência humana (a experiência da atenção, por exemplo) e o saber sobre os nossos comportamentos nós não acreditaríamos, estávamos ainda colados à ideia de que o capitalismo sobrevive graças à exploração do trabalho humano. Jonathan Crary mostrou muito bem, em 24/7. O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono (trad. portuguesa, Antígona), que o capitalismo, que outrora se alimentava durante os nossos horários de trabalho, está agora activo durante as 24 horas dos 7 dias da semana, mesmo que para isso precise de nos roubar o tempo do sono.
Mas é sempre tardiamente que nos apercebemos de que tem um imenso valor aquilo que fomos cedendo gratuitamente, em troca de algo que acreditávamos que era gratuito. Por exemplo, os nossos dados. O que o capitalismo hoje possui não é uma mercadoria material, é a nossa própria despossessão. Foi assim que a “riqueza das nações” foi hoje substituída pela “riqueza das redes”, como anunciou o professor de direito económico em Harvard, Yochai Benkler.
Apesar de algumas inibições dos discursos políticos, já se começa a falar aqui e ali de pós-capitalismo. Por exemplo, a revista francesa Multitudes dedicou-
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