Posted: 26 Apr 2021 03:57 AM PDT
«Tenho passado anos nestas páginas escrevendo sobre a importância do dia em que tivermos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura, mais tempo de liberdade do que de repressão. Para mim, essa data tem uma importância que vai muito para lá de uma mera efeméride: mais do que uma comemoração, ela deve ser uma missão.
Vi por isso com natural contentamento o Governo decidir iniciar as comemorações para os cinquenta anos do 25 de Abril no dia 24 de Março de 2022 — que calcularam como a data em que o tempo da democracia ultrapassará o da ditadura — e nomear como comissário dessas comemorações Pedro Adão e Silva. É, portanto, daqui a apenas onze meses que esse ciclo se inicia. Nos próximos parágrafos quero relembrar os argumentos a favor da sua importância histórica e aqueles que, em meu entender, podem ser os seus objectivos.
Portugal padeceu a mais longa ditadura da Europa ocidental, durante praticamente quarenta e oito anos, e isso deixa marcas. A gerações, a indivíduos, à sociedade como um todo. Hoje dei por mim a pensar que a mim, nascido em Julho de 1972, o tempo em democracia superou o tempo em ditadura muito cedo, antes dos meus quatro anos. Mas ao meu pai, nascido em 1929, a democracia só chegou quase aos quarenta e cinco anos, e ele nunca chegou a ter mais tempo de liberdade do que opressão. A maior dívida de gratidão, é claro, vai para todos aqueles e aquelas que lutaram contra a longuíssima ditadura sem chegarem a ver o fim dela. Vidas que não puderam realizar o seu potencial em democracia, gerações inteiras sujeitas aos horizontes estreitos da ditadura.
O 25 de Abril representou uma atualização de Portugal com a história do mundo tão grande que por vezes ainda não é inteiramente entendida. Não só porque nas meras vinte e quatro horas daquele dia uma série de coisas que eram dadas por adquiridas passaram a ser inconcebíveis — a polícia política, a censura prévia, os presos de opinião — mesmo que nem tudo tenha estado no plano inicial. Mas sobretudo porque em pouco tempo se tornou evidente que “ao fim do ciclo imperial” se iria suceder “um ciclo europeu”, como um ano antes escrevera José Medeiros Ferreira. Essa atualização inevitável significou uma viragem radical da inserção geopolítica e geoeconómica do nosso país depois de 500 anos de história. Ainda muitas vezes acho, nos nossos debates sobre Portugal, a Europa e a globalização, que não se entende verdadeiramente a enormidade desta adaptação em tão pouco tempo, e o seu significado profundo: que basicamente Portugal como era não seria sustentável nesse novo ciclo, com o fim dos mercados cativos e da extração de matéria-prima nas colónias, e com uma força de trabalho com baixos níveis de qualificações a ter de competir num continente onde a maior parte da produção continha níveis de incorporação de conhecimento e tecnologia então inatingíveis para nós.
O manifesto do Movimento das Forças Armadas trazia consigo uma espécie de fórmula-síntese particularmente brilhante no traçar do rumo para os primeiros tempos do novo regime. Eram os “três D” que vinham precisamente do texto de Medeiros Ferreira ao Congresso da Oposição Democrática de 1973, de Democratizar, Desenvolver e Descolonizar (no texto original de 1973 havia também um “S”, de socializar, que não aparece no manifesto do MFA). Nenhum desses “três D” perdeu atualidade — não, nem o de descolonizar. Continuamos a precisar de aperfeiçoar e reforçar a nossa democracia; precisamos absolutamente de encontrar um novo modelo de desenvolvimento para o país; e ainda apenas adentrados no ciclo pós-imperial, continuamos a precisar de definir melhor o nosso lugar na Europa e no mundo, e a encontrar formas de sarar as chagas do colonialismo que ainda sobrevivem em novos preconceitos, discriminações e assimetrias.
Mas agora que nos aproximamos de ter mais tempo de democracia do que de ditadura, é cada vez mais pelo futuro que temos de definir. Isso significa rever metas, mesmo dentro do acervo de abril. Um exemplo que costumo dar: o objetivo da convergência com a média da União Europeia já deveria desde o início deste século ter sido considerado obsoleto; ele serviu bem à geração dos meus pais e dos meus irmãos, mas já não chega para a geração dos meus sobrinhos e filhos. E significa, no fundo, encontrar os novos “três D”, a fórmula-síntese que trace o rumo para uma democracia madura que depende cada vez mais só de si.
Por isso digo que mais do que comemoração, precisamos de uma missão. Uma missão por uma nova relação entre Estado e cidadão, entre o país e o seu território, entre as gerações e o seu futuro, num período que será marcado por enormes transformações tecnológicas, ambientais e sociais mas no qual queremos que a democracia fundada no 25 de Abril não só sobreviva mas floresça. Venham mais cinquenta.»
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