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sexta-feira, 23 de abril de 2021

Super Liga Europeia: como a economia “trickle down” chegou ao futebol

 

por estatuadesal

(Vicente Ferreira, in Blog Ladrões de Bicicletas, 19/04/2021)

O anúncio de ontem à noite chegou às capas de jornais um pouco por todo o mundo: 12 dos clubes mais ricos do planeta oficializaram a criação da Super Liga Europeia, uma prova que pretende funcionar como alternativa à atual Liga dos Campeões. Embora ainda não se conheçam todos os contornos, os clubes fundadores – Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham, AC Milan, Inter, Juventus, Real Madrid, Atlético de Madrid e Barcelona – terão direito a um lugar permanente na competição, havendo a possibilidade de admitir anualmente alguns convidados. O projeto conta com um empréstimo de €3,25 mil milhões da JP Morgan, como adiantamento de receitas futuras provenientes dos direitos de transmissão televisiva.

No comunicado oficial, os fundadores da nova competição dizem que a decisão surge “num contexto em que a pandemia agravou a instabilidade do atual modelo económico do futebol europeu”, embora, na verdade, as discussões para a criação desta prova já tenham alguns anos. A ideia passa por criar “um formato para que clubes e jogadores de topo compitam uns contra os outros de forma regular”, que possibilite uma “abordagem comercial sustentável […] para o benefício de toda a pirâmide do futebol europeu”. É aqui que o caso se torna interessante: os clubes responsáveis por este projeto prometem que os benefícios não serão apenas para si próprios, mas que acabarão por ser distribuídos e beneficiar todos os outros. É a lógica “trickle down” aplicada ao desporto. Esta ideia, que tem origem nos debates sobre a política fiscal do final do século passado, diz-nos que a redução dos impostos sobre os mais ricos tenderia a beneficiar a sociedade como um todo, pelo efeito de promoção do investimento e da criação de emprego. Alivie-se a tributação da riqueza e esta distribui-se naturalmente, dizia-se.

Só há um problema: a experiência dos últimos 50 anos mostra que esta ideia não funciona. Os economistas Julian Limberg, do King’s College de Londres, e David Hope, da London School of Economics, estudaram os cortes de impostos sobre os mais ricos aprovados ao longo das últimas cinco décadas em 18 países diferentes. Sem grande surpresa, a conclusão a que chegaram foi a de que estes cortes beneficiaram bastante o 1% do topo, mas tiveram efeitos negligenciáveis para o resto da sociedade. “Em média, cada diminuição considerável de impostos resulta num aumento de 0,8 pontos da fatia do 1% do topo”, lê-se no estudo. Por outro lado, “a evolução do PIB per capita e da taxa de desemprego não é afetada por reduções significativas dos impostos sobre os mais ricos”. É por isso que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada ao 1% do topo foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por este grupo mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo, como mostrou um estudo de Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva. Conclusão: estes cortes só acentuaram as desigualdades.

É expectável que a criação da Super Liga tenha um efeito semelhante, favorecendo a concentração do dinheiro e acentuando o fosso entre os clubes mais ricos e os restantes. Basta notar que a promessa de que os ganhos vão ser redistribuídos é feita pelos mesmos proprietários que recusam há anos a criação de mecanismos legais para isso mesmo, como a introdução de limites à participação de capitais privados na gestão dos clubes, a partilha de receitas entre todos ou a definição de tetos salariais, que acontece em algumas modalidades nos EUA. A ausência de regulação explica, de resto, o crescimento da desigualdade nos principais campeonatos europeus ao longo das últimos vinte anos, embora com algumas diferenças entre os países.

Apesar disso, convém não esquecer que esta é uma disputa entre alguns clubes de elite e a UEFA, uma organização marcada por vários casos de corrupção e que já atuava de forma semelhante a um cartel. E isso deve-se ao facto de se ter entregue a gestão dos clubes a grandes grupos económicos, pouco preocupados com os interesses de adeptos e sócios. Mesmo que o conflito venha a ser resolvido nos próximos tempos, talvez sirva para recentrar a discussão nos modelos de propriedade dos clubes: retirar os clubes aos adeptos e entregá-los a acionistas milionários não só acaba com o associativismo de base local, como promove um modelo de gestão guiado exclusivamente pela rentabilidade.

A tendência agrava-se quando se permite uma competição sem regras onde impera a lei dos mais ricos. Não surpreende que estes pretendam agora cimentar o poder que detêm e evitar o incómodo da concorrência. Afinal, uma Super Liga criada por clubes que se encontram a meio da tabela nos respetivos campeonatos nacionais é um bom exemplo de como o mercado hesita muito pouco na hora de decidir entre o mérito e o dinheiro.

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