Posted: 31 Mar 2021 03:36 AM PDT
«“Uma verdadeira UE da saúde”, defende o Presidente da República (DN, 25/03). Se considerarmos a incapacidade demonstrada pela Comissão Europeia para gerir as várias fases da gestão da pandemia, mas sobretudo a aquisição e distribuição das vacinas, tenhamos calma. A comissária Kyriakides tinha uma palavra a dizer sobre este assunto e não o fez. Foi preciso a presidente vir justificar as trafulhices da AstraZeneca limitando-se a uma explicação que parecia um comunicado do laboratório que produz a vacina. A exigência esteve sempre ausente das negociações com os laboratórios. Este é um dos exemplos do ambiente existente na saúde europeia. E não se lhe pode chamar política de saúde porque para o efeito teria de haver escolhas e escrutínio sobre essas escolhas.
Aliás, não se percebe porque existe uma comissária para a saúde e assuntos correlativos, quando na verdade nunca se sentiu que a Comissão Europeia tivesse tido uma palavra sobre o assunto, a não ser sobre aspectos pouco mais do que correlativos. O que existe é a OMS para a Europa sediada não em Bruxelas, mas em Copenhaga, que emite recomendações técnicas sobre as melhores práticas e orientações quanto às políticas de saúde. Basta lembrar a Declaração de Alma Ata nos idos dos anos 70 e a marca que deixou na política de saúde de muitos países em todo o mundo, nomeadamente em Portugal.
Acabou por ser cada país, seguindo genericamente as orientações da OMS, a resolver os problemas complexos que a pandemia veio colocar. Não admira, por isso, que praticamente em toda a parte a técnica da tentativa e erro tenha sido aquela que veio a ser aplicada. Uma vez que a política de saúde é multifactorial, imagine-se o que poderia vir a ser uma política de saúde europeia, em que a distribuição dos determinantes da saúde é particularmente assimétrica e as desigualdades sociais extremamente pronunciadas. Atendendo à variabilidade de desenvolvimento em que cada país se encontra, as várias europas que já existem dentro do espaço europeu iriam contar com mais um parceiro para a sua ainda maior estratificação, uma vez que a rede que conecta as várias políticas sectoriais é particularmente débil, com cada comissariado a trabalhar para o seu gabinete.
Se considerarmos o indicador que melhor traduz o estádio de bem-estar de uma população, a esperança de vida saudável, a discrepância entre os valores de cada país é particularmente significativa, traduzindo o seu nível de desenvolvimento, medido pelos determinantes sociais da saúde - grau de escolaridade, habitação, alimentação saudável, emprego, PIB per capita, rendimento disponível, mobilidade, integração social, suporte social, cobertura e acesso aos cuidados de saúde, meio ambiente, entre outros.
Segundo os últimos dados disponíveis (Eurostat, 2018), os valores extremos deste indicador são: o melhor valor, nas mulheres, encontra-se na Suécia, com 73,7 anos de esperança de vida saudável, nos homens este valor é de 73,4 anos, em Malta. Em Portugal, este valor é de 59,8 anos para as mulheres e de 57,5 anos para os homens. O pior valor, nas mulheres, encontra-se na Letónia, com 53,7 anos e 51 anos nos homens. A média europeia é de 64,2 anos, nas mulheres e 63,7 anos nos homens. Portanto o valor da amplitude de anos de vida saudáveis é de 20 anos para as mulheres (Suécia/Letónia) e de 22,4 anos para os homens (Malta/Letónia). Quanto a Portugal, a diferença para a média europeia, nas mulheres, é de 4,4 anos, e para os homens de 6,2 anos. Se tivermos como referência o melhor valor, esta diferença é de 14,1 anos, nas mulheres (Suécia/Portugal) e 15,9 anos (Malta/Portugal). Feitas as contas, no indicador mais importante de qualquer política de saúde, Portugal encontra-se nos últimos lugares dos países europeus, exigindo grandes investimentos não tanto para a esperança de vida, em que as diferenças entre o valor de Portugal (81,3 anos) e a Suécia, por exemplo (82,6 anos), ou seja, 1,3 anos, mas para a vida depois dos 65 anos, que vai sofrer o impacto da exposição a riscos evitáveis desde o nascimento.
Uma vez que a esperança de vida saudável está associada aos determinantes sociais da saúde, tomemos como exemplo o PIB per capita daqueles três países e o valor das relações entre eles. Portugal com 24.590 € do PIB per capita (2020) representa 42% do valor da Suécia (57.975 €), a Letónia (16.698 €), 29% e a Letónia representa 68% do PIB per capita português. Relativamente à média do PIB per capita da UE (37.104 €), Portugal, Suécia e Letónia representam, respectivamente, 66%, 156% e 45%. Fonte: Trading Economics, 2021.
Estes valores servem para demonstrar que o SNS tem cumprido bem o seu papel, contribuindo para que o valor da esperança de vida seja equivalente aos países europeus mais desenvolvimentos. O SNS português, mau grado os seus défices, trata bem os doentes que lhe vão bater à porta. O grande défice encontra-se naqueles aspectos que contribuem para se ter uma população mais saudável, isto é, determinantes sociais da saúde que aumentem a esperança de vida saudável. E para colmatar estes défices seriam necessários grandes investimentos, não só em Portugal, sendo duvidoso que a EU estivesse disponível a fazê-lo. Portanto, vamos devagar. Questione-se que política de saúde é mais desejável. Investir em instalações e equipamentos pesados para darem resposta à doença, ou investir na promoção da saúde e na prevenção, sem menosprezar o tratamento da doença? Se um dia vier a colocar-se na agenda política uma UE da saúde, é respondendo a esta perguntas que se deve começar. Fora deste quadro é continuar-se a expandir os recursos para tratar as doenças oncológicas, as cardiovasculares, os AVC, a diabetes, as doenças pulmonares e mais aquelas que podem ser prevenidas, mas que só se dá conta delas no gabinete médico.
Fazer uma discussão destas em cima de um vulcão em actividade, é correr o risco de no fim só haver vulcão. Comece-se pelos alicerces, se for essa a intenção. E os alicerces consistem em melhorar as condições de vida das pessoas.»
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