A lei também é para os “portugueses de bem”por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 31/05/2021)
As guerras internas no Chega interessam-me pouco. Para quem já viu a capacidade de atração do poder junto de matilhas de medíocres, a coisa é mais ou menos óbvia. Num partido unipessoal, onde à boa maneira da direita autoritária o líder tem poderes disciplinares e políticos absolutos, umas centenas de fura-vidas que apanharam a boleia do radicalismo da moda acotovelaram-se na esperança de estar no lugar certo quando chegar o momento de ir ao pote do sistema. Não há, nas zangas internas, qualquer questiúncula ideológica ou programática relevante. A mudança do programa contra o Estado Social ficou, aliás, para mais tarde, que as exigências de Ministérios tem prioridade em relação à vida das pessoas. Como nos partidos do centrão, há carreiras a construir. O líder, sabendo-se dono dos votos, usa a fome de todos para alimentar a discórdia e reforçar o seu poder.
A relevância das ideias nas lutas medíocres dentro do Chega é a mesma que existe para os afastamentos ou aproximações de Rio a Ventura. Depois de assinar um acordo para formar governo nos Açores e partilhar um palco numa reunião de autoajuda da direita deprimida, o PSD decidiu não comparecer no encerramento da convenção, como resposta às declarações violentas de André Ventura contra o partido. “Há limites de decência e bom senso”, disse o PSD em comunicado.
Rui Rio convive com Ventura em acordos de governo e convenções, depois de ele insultar ciganos, deputadas de origem africana e beneficiários do RSI. Só quando insulta o PSD é que passa os limites da decência. Para Rui Rio, a fronteira da decência está à volta do seu umbigo. Como em torno da convenção do Chega a decência parece ser o último dos critérios, prefiro tratar dela para falar de uma condenação exemplar.
Instalou-se uma ideia extraordinária: que a forma mais eficaz de combater a anormalidade política do Chega (que resulta, entre outras coisas, do seu discurso xenófobo e racista) é normalizá-la. Que se vence debatendo com ele. Não me parece que o fracasso político dos democratas dos anos 30 tenha resultado da falta de argumentos. Não se vence a extrema-direita esperando que a razão prevaleça sobre a irracionalidade. Muito menos ela será vencida em terapias de grupo, como a organizada pelo MEL, onde não faltaram elogios ao Estado Novo.
Também não acho que o caminho seja a ilegalização do Chega. Não é o peso eleitoral do partido que determina que isto seja um erro. Se houvesse argumentos para ilegalizar um partido com 6% ou 8% nas sondagens teríamos de lidar com isso. Em democracia, a força eleitoral de um jogador não determina as regras do jogo. Se deixarmos que assim seja, ele acabará por virar o tabuleiro e interromper a partida quando estiver em vantagem. Sou contra este processo porque ele muito dificilmente seria indiscutível à luz da da Constituição - a natureza ideológica do Chega não é de tal forma explícita nos seus documentos que não deixe espaço para escapatórias. Ou a ilegalização é decretada sem que seja uma evidência para todos os democratas ou, mais provável, oferece-se ao Chega uma vitória judicial. Mas a lei existe e é para ser usada. Foi o que aconteceu no caso do Bairro da Jamaica.
No debate presencial com Marcelo, Ventura exibiu uma “selfie” do Presidente com uma família do Bairro da Jamaica e disse que ali estavam “bandidos”. Cinco dos sete fotografados têm o cadastro limpo. O sexto é uma criança que agora tem cinco anos. Três são arguidos e assistentes – assim como um polícia – no mesmo processo. Dos sete, apenas um foi condenado por crimes. A esse, Ventura chamou-lhe “bandido verdadeiramente”. Há “bandidos” que não o são “verdadeiramente”. Mas se forem candidatos a autarcas do Chega, basta não terem uma condenação transitada em julgado para não ser da “bandidagem”. A presunção de inocência é para consumo da casa.
Já esta família foi exposta ao país, incluindo os que nela nunca tiveram problemas com a Justiça. O racismo é isto: a desindividualização do outro, que passa a representar um grupo de suspeitos. Só que, para o tribunal, cada uma daquelas pessoas tem o direito individual à sua honra e à sua imagem. Por isso, Ventura terá de se retratar publicamente. Já disse que não o fará, mostrando que a lei é sempre para os outros.
Vanusa Coxi, que trabalha desde os 16 anos e sempre cumpriu a lei, teve a coragem de dizer: eu sou cidadã, não sou uma metáfora para a propaganda do Chega. Os que acham que palavras são apenas palavras deviam acompanhá-la, numa ida ao supermercado, no dia seguinte ao ter sido exibida como “bandida” em horário nobre.
Infelizmente, no mesmo dia em que foi condenado foi possível dar uma entrevista de vinte minutos na SIC Notícias recusando-se a dizer mais sobre o tema do que adiar respostas para o dia seguinte, em terreno mais favorável, e que ia recorrer. Que outro líder partidário poderia dar uma entrevista no dia de uma condenação judicial sem que esse fosse o tema central, mesmo que isso não lhe desse jeito? E o que tinha a dizer no dia seguinte é que não tencionava cumprir a decisão judicial.
“É isto que faz crescer Ventura”, diz-se sobre tudo e um par de botas, transformando-o em legítimo portador de todas as frustrações nacionais. Até a aplicação da lei faz crescer o homem que só acredita nela quando se aplica aos de baixo. Temos de combater as causas que dão força ao Chega. Mas, mesmo que houvesse acordo sobre elas, é como dizer que a criminalidade se combate reduzindo a desigualdade. É verdade, mas nem por isso suspendemos a lei contra o crime.
Os impasses que levaram ao renascimento da extrema-direita no mundo ocidental são profundos e demorarão muito tempo a resolver. Já a nossa democracia é frágil e a defesa das suas regras é determinante para que a receita do sucesso de Ventura não seja copiada por outros, com muitas vítimas como Vanusa Caxi. A resposta política é complexa. Mas a imediata é simples: a aplicação da lei, que vigora no Bairro da Jamaica e nos debates em que Ventura participa.
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