Posted: 10 May 2021 03:43 AM PDT
«Rui Rio queixou-se do tom rasteiro da entrevista de António Costa à TSF e ao DN. Parece-me que “rasteiro” é demasiado forte e, verdade seja dita, Costa não disse nada que fosse mentira. O namoro do PSD com a extrema-direita e o convite a Suzana Garcia, vindos de quem queria recolocar o PSD ao centro, e as contradições de quem se batia contra “julgamentos de tabacaria” e agora cavalga todos os que lhe possam render votos, exibem um desnorte por parte de quem nos prometia banhos de ética. Mas se António Costa desejasse acordos de regime e saídas políticas deixaria esta análise para quem a faz de fora. Não pode passar o tempo a dinamitar pontes e depois queixar-se de que ninguém atravessa o rio para o ajudar em tempo de crise. Sobretudo quando não lhe tem faltado compreensão e ajuda por parte da oposição.
Na entrevista que Rui Rio deu à RTP, que até lhe poderia ter corrido bem porque soube falar com clareza do combate ao corporativismo na Justiça, do que aconteceu em Odemira ou da instrumentalização da Justiça no caso da escolha do provedor europeu, acabou por confirmar o desnorte em que vive. Quer pelas respostas para lá de criativas que deu para justificar a escolha de alguns candidatos autárquicos, quer pela justificação da ida à Convenção do Movimento Europa e Liberdade porque lá está Sérgio Sousa Pinto, quer pela infelicíssima referência ao julgamento da Casa Pia, um caso que deveria tratar com pinças por revelar quase tudo aquilo de que se queixa na Justiça. Tinha tudo para dar uma boa resposta ao primeiro-ministro, estragou tudo com a incapacidade de determinar a sua própria narrativa, perdendo-se nos costumeiros comentários laterais.
Mas voltemos à entrevista de António Costa. Se Rio mereceu muitos mimos, o saco de boxe em que se tinha transformado o Bloco de Esquerda teve direito a novo namoro. Vão longe os tempos em que Costa dizia que o BE era “pouco confiável” e um partido “oportunista que parasita a miséria alheia”. Mas vão perto os tempos em que lhe chamou “partido mass-media” e ainda mais perto quando mandou dirigentes do PS mais fiéis fazer-lhe ataques violentíssimos por não viabilizar o último Orçamento. Esta relação ciclotímica do primeiro-ministro com aqueles com quem deseja negociar dificulta qualquer relação de confiança.
Há, neste novo namoro ao Bloco, em que Costa até fala de novo casamento depois do divórcio, duas possibilidades: a mais e a menos cínica. Com Costa tendo a inclinar-me para a mais cínica. Estou convencido que, a haver uma crise política, António Costa prefere que ela aconteça no próximo orçamento, antes de a crise social e económica rebentar em todo o seu esplendor e ainda colada à popularidade de que gozam os governos que geriram decentemente a crise pandémica. E, já agora, colada a uma previsível vitória autárquica.
Posso estar a ser injusto, mas é possível que Costa queira atirar a bola para o Bloco de Esquerda para o responsabilizar por uma crise futura, sem qualquer intenção de abrir um processo negocial sério para o próximo Orçamento de Estado. Para que o BE seja responsabilizado é necessário que seja visto como parceiro, como era antes da votação do OE de 2021 e como é hoje o PCP. Para agarrar os partidos à sua esquerda à responsabilidade de uma crise política o PS precisa de ressuscitar a defunta “geringonça”, que manteve artificialmente viva nos primeiros anos deste segundo mandato sem que nela realmente acreditasse.
Há, no entanto, a possibilidade de António Costa ter deixado de ser um jogador e estar genuinamente interessado em garantir a solução de estabilidade que recusou logo depois das últimas eleições legislativas. Essa possibilidade não depende da proposta de Orçamento de Estado que apresentar para 2022. Depende da execução orçamental do OE de 2021. É importante recordar que a execução do Orçamento de 2020, aprovado antes da pandemia, ficou bem abaixo do esperado – já nem falo do retificativo. Nem a pandemia fez o Governo executar o que tinha negociado antes de saber que ela viria. Isso foi relevante na negociação do OE de 2021: os partidos à esquerda do PS sabiam que estavam a negociar uma fantasia. Que, aprovassem o que aprovassem, João Leão faria o que quisesse. Se assim continuar a ser, e não temos nenhum sinal de que tenha mudado, não vejo que relação de confiança pode existir para que PCP e BE aceitem um acordo que sabem não ter valor real. E pagarem eleitoralmente por uma austeridade orçamental que não aprovaram.
Costa tem de fazer uma escolha. Se não quer que a extrema-direita cresça tem de permitir que os partidos à esquerda tenham vitórias para apresentar aos seus eleitores, deixando para o PSD o papel de fazer oposição. Se continuar a tentar secar tudo à sua volta, empurrado Rio para a extrema-direita, Catarina para o espaço e Jerónimo para o seu regaço, sabemos o que sobrará. Por isso, desta vez não chega o entusiasmo inicial da geringonça. Costa tem de perceber que a soma com os partidos à sua esquerda tem de ser boa para todos, permitindo que os eleitores compreendam a utilidade de votar em parceiros do PS. Ela não serve para lhes conquistar votos. Caso contrário, até se pode evitar uma crise política, mas aprofunda-se uma crise de regime. Sem um BE e um PCP fortes, à esquerda, e um PSD forte, na oposição, teremos a extrema-direita como única alternativa a um PS instalado no centrão. Foi o sonho de Macron e o pesadelo está quase a chegar a Paris.»
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