A indústria de falsificações do Estado Novopor estatuadesal |
(José Pacheco Pereira, in Público, 05/06/2021)
Numa altura em que a direita radical tenta recuperar o conjunto da sua história no século XX, ou seja, os 48 anos em que governou Portugal em ditadura, porque precisa de reforçar a sua legitimidade limpando-se do seu passado, para demonizar à vontade o dos “outros”, vale a pena olhar para o que foi esse período negro da nossa vida colectiva. Ou pensam que foi a esquerda que governou de 1926 a 1974? Como se diz em português plebeu, lata para dizerem isso têm.
Uma das técnicas é dizer que o regime da ditadura – a que não chamam assim, como é obvio – foi “indefensável”. De passagem, como se come um peão no xadrez, brevemente e sem consequências na economia do discurso, para depois não dizerem uma linha, uma palavra, um “mas”, mesmo de circunstância, sem mencionar a ditadura, as prisões e a repressão, a censura, e os milhares de mortos da guerra colonial durante a módica quantia de 48 anos. Terra de leite e MEL, com um pequeno problema, que é “indefensável no plano político”, mas nem sequer se diz porquê, porque estragava o resto, o que é “defensável”. O que está implícito é que em muitas outras matérias é “defensável”. Foi isto que fez um académico numa intervenção estritamente política e com muito pouco de académico, Nuno Palma, no MEL. No sentido weberiano percebe-se bem de mais o mecanismo da empatia com aquilo que é eufemisticamente classificado apenas como o Estado Novo. E desafio o Polígrafo a desmentir-me.
O problema do contexto é iludido e, neste caso, o contexto é tudo. Não faltam exemplos do contexto que, esse sim, falta aqui. Só a Censura tinha uma história longa e exemplar para contar, mas não havia só Censura, havia falsificações, fake news, com a publicação pela Legião Portuguesa e pela PIDE de documentos falsos, disfarçados de verdadeiros. Era uma prática muito comum, que abrangia panfletos com assinaturas falsas, exemplares falsos de jornais clandestinos e cartazes com imagens manipuladas, de que os que aqui reproduzo são meros exemplos. Desde Salazar, mentindo publicamente sobre o assassinato de Delgado, ao legionário da esquina, a falsidade era o corrente. A falsidade, a calúnia e a difamação como instrumento de ataque aos opositores.
(Números falsos do Avante!, de O Jovem, da FPLN, e um comunicado com falsas biografias de candidatos da oposição)
Dos exemplares que reproduzo acima um é particularmente repulsivo, a “biografia” de Mário Sottomayor Cardia. Cardia é acusado de roubar dinheiro nos vestiários da Cidade Universitária para ir cear ao restaurante Mónaco, de onde saía embriagado, e de ter sido protegido pela PIDE por ter participado num atentado à bomba. Tenho a certeza, mas tenho mesmo a certeza, que haverá quem leia isto hoje e pense: “Se calhar era mesmo verdade.” Hoje, em 2021, porque quando este papel imundo foi feito quem o lia percebia que a PIDE ou a Legião estava a fazer o seu trabalho sujo. Do modo como as coisas estão, era mais inócuo lê-lo em 1969 do que hoje.
A coisa repugna-me em particular, porque Sottomayor Cardia foi nesta altura preso e espancado pela PIDE, provocando-lhe um deslocamento de retina. Cardia era um homem tão franzino, como corajoso, e a violência contra ele é por si só uma “marca de água” da brutalidade da ditadura “indefensável”. Aliás, a mesma propensão dos valentes polícias e pides para baterem em homens de constituição frágil provou-a Urbano Tavares Rodrigues. E, em bom rigor, muitas e muitas centenas de comunistas, anarquistas, oposicionistas, ou inocentes apanhados por engano, como os primeiros acusados do atentado a Salazar que, como é óbvio, “confessaram”.
Eu, aos do MEL, do Observador, dos novos think tanks e da galáxia comunicacional cada vez mais vasta, percebo-os bem de mais. Esmagados pela ditadura férrea do PS, do PCP e do BE, e pela inoperância da “direita fofinha”, ou seja, o PSD, o que os irrita é não poderem assumir uma inocência que a sombra dos 48 anos de governo da direita em ditadura lhes tira. Mas em conclave estão cada vez mais à vontade para louvar essa direita não fofinha que nos protegeu do comunismo durante quase todo o século XX.
Eles pensam que são muito corajosos combatentes contra o ditador António Costa, mas são apenas lampeiros. Grandes palavras tem o português. E ouçam-se as palmas – aliás, o padrão das palmas no MEL é idêntico em todos os oradores, de Ventura a Sérgio Sousa Pinto –, que são o retrato da audiência na sala, do que quer e do que lhe interessa. E esse padrão é muito mais sinistro do que tudo o resto. Não se ponham a pau…
Historiador
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