Diálogo sobre o dia em que não se pode dizerpor estatuadesal |
(José Pacheco Pereira, in Público, 25/09/2021)
Simplício, Sagredo e Salviati encontram-se junto ao rio. Está escuro, está de tempestade.
Sagredo – Já é tempo.
Salviati – Os rios são mais bonitos em dias de tempestade. O sol desmerece-os. A água fica melhor com a água. Os gregos sabiam disso. O de Éfeso gostava das correntes, dos caudais. Os de Eleia, não.
Sagredo – Sim, é melhor falarmos sobre as águas, porque hoje não se pode falar de mais nada.
Simplício – Eu acho bem. É preciso ordem, silêncio, dar descanso à exaltação.
Salviati – Mas qual exaltação? Não há, nunca houve nestes dias qualquer espécie de exaltação…
Sagredo – … nas ruas sim, esteve tudo sem ânimo. Mas nas rádios, jornais, televisões havia muita excitação…
Salviati – … por surtos. Faz parte da função, sem excitação, nada se vende.
Simplício – Para mim está bem, paz nas ruas, ruído nas telas, nos papéis, nas ondas. O mundo assim fica bem ordenado. Hoje há paz por todo o lado. É um mau dia para os excitados.
Salviati – Bom, a coisa não é perfeita. Sempre temos as figuras de retórica para obscurecer o discurso e podermos falar do que não podemos falar. Por exemplo, como se vê, usar o paradoxo.
Sagredo – Poder, podes. Mas nestes meses tens boa companhia. Hipérboles há muitas. Amanhã “o sistema vai tremer”…
Simplício – … por causa do vulcão espanhol? Não chega cá.
Sagredo – Chega, chega.
Simplício – Não podes usar essa palavra.
Sagredo – Uso outra. Escorre para cá. Vem do Vox. Para falar da lava é um pouco um disfemismo, tratar uma coisa poderosa como sendo uma escorrência do domínio dos pântanos e dos esgotos.
Salviati – Eu gosto de vulcões, mas vocês estão a falar da Solfatara, e o vulcão espanhol não é dessa categoria.
Sagredo – Vulcões há muitos, fiquemos pois com os de cá. Fora dos Açores, só enxofre e águas minerais. Afinal falar de águas ajuda a não falarmos do que interessa.
Simplício – Não percebo nada.
Sagredo – Amanhã vai haver quem vá pagar o preço de usar só metáforas mortas, porque está com uma linguagem cansada, quase só metonímias. Na verdade, eles falam e nós nem abrimos as orelhas para ouvir.
Simplício – E eles não dão por ela?
Salviati – Não sei. Isto das orelhas é uma alegoria, mas se calhar nem eles mesmos ouvem, recitam. Nem é tanto pela razão do que dizem. É uma espécie de encantação para os fiéis e como cada vez há menos fiéis, menos resultados tem. A “lei da vida”, como um deles dizia há uns anos, acaba por fazer muitos estragos.
Simplício – Quando se desce, todos batem.
Sagredo – E os vivíssimos, que estão a substituir os ex-vivíssimos? Os do Adam Smith, que agora andam todos de ténis, saltam muito e fazem startups?
Salviati – O mestre deles disse: “Vindo da Cidade do Cepticismo, tive de passar pelo Vale da Ambiguidade.” Viram a entronização de Jaime Neves entre os heróis da Liberdade? Eles estão no Vale da Ambiguidade, mas faz-lhes falta a Cidade do Cepticismo.
Simplício – E os ex-vivíssimos? Estão um pouco para o triste, parece-me.
Sagredo – Tens razão, depois de se passar os 15 minutos da fama, o mundo deve parecer cinzento e nem a estrelinha brilha.
Salviati – A maldição das metáforas mortas também já chegou lá.
Sagredo – E os grandes como estão?
Simplício – Até eu, que sou o mais reaccionário e formalista de todos nós, percebo que estão mal…
Sagredo – … mas com males de diferente natureza. Um sofre do mal das grandezas, o outro da escassez de bens. Um tem demasiados “amigos” para alimentar, o outro tem demasiados abutres à espera do corpo.
Salviati – O mal das grandezas gera quedas maiores. A gravidade é uma fdp…
Simplício – Não podes dizer asneiras num jornal sério. Só se fores artista ou escritor de vanguarda e só no Ipsilon.
Salviati – Mas é mesmo. Os que sobem tem tendência para não perceberem que quanto mais alto estão, maior é a queda. E quase sempre caem ou por soberba ou por criarem mais problemas do que os que podem resolver. O dinheiro é bom tê-lo, serve para muita coisa, mas nunca é unívoco. Tem sempre um preço.
Sagredo – E estar atrás de uma bazuca queima. Os gases da propulsão do projéctil matam.
Simplício – E o outro?
Salviati – O outro é vítima de si próprio em muita coisa, mas é difícil andar na rua e ter uma árvore cheias de abutres a passear atrás dele…
Simplício – … as árvores não andam…
Salviati –… isso é o que tu pensas, homem simples. Andam, andam, com o combustível apropriado e esse combustível não falta.
Sagredo – “Sarcasmo”, diria Sheldon Cooper.
Salviati – Vê lá como estamos, começamos com os gregos a acabamos no Big Bang. O mundo já não é o que era…
Historiador
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