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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

 

Méritos e limitações do processo judicial por genocídio instaurado pela África de Sul contra Israel

estatuadesal

Jan 16

(José Catarino Soares, 16/01/2024)

Turquia, 29 de Março de 2022. Na foto vêm-se vários membros da delegação ucraniana nas negociações russo-ucranianas. O segundo homem a contar da esquerda, é Davyd Arakhamia, chefe dessa delegação e chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo (o partido fundado pelo presidente Volodymyr Zelensky). 

1. Introdução

Um bilhete público que escrevi num outro blogue, chamando a atenção para o texto “Processo judicial em nome da África de Sul contra o Estado de Israel”, publicado neste blog aqui, suscitou, da parte de um velho amigo meu, o seguinte comentário:

«É meritória a divulgação das inequívocas intenções genocidas do governo sionista de Israel. Mas sem ilusões na natureza do “Tribunal Internacional de Justiça”, órgão da ONU que patrocinou a criação do Estado de Israel em 1948 e a pseudo-solução dos dois Estados com que o sionismo israelita e o Estado fantoche da Jordânia têm promovido a expulsão da sua terra e o genocídio dos árabes da Palestina que aqueles dois Estados ocupam ilegitimamente».

Este comentário suscitou-me a seguinte resposta, que julgo ter interesse publicar na medida em que toca vários aspectos pertinentes para a boa compreensão da iniciativa da África do Sul. 

2. O Tribunal Internacional de Justiça

O gigantesco sistema da ONU ‒ em particular, os seus órgãos principais ‒ é, com certeza,

um sistema com muitos defeitos, cuja actuação é susceptível de crítica severa. É o caso, nomeadamente, do Tribunal Internacional de Justiça, um dos seus seis órgãos principais.

Isto dito, não podemos imputar-lhe coisas que não fez. O Tribunal Internacional de Justiça NÃO «patrocinou a criação do Estado de Israel em 1948 e a pseudo-solução dos dois Estados». O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) não foi tido nem achado na criação do Estado de Israel por três razões.

1.ª) O Estado de Israel foi criado em 29 de Novembro de 1947 por uma resolução da Assembleia Geral da ONU, a resolução 181, aprovada com os votos a favor de 33 países, com 13 votos contra e 10 abstenções.

2.ª) O TIJ não patrocina a criação de Estados. Não é essa a sua missão. A missão do TIJ é julgar qualquer disputa legal que lhe seja apresentada referente a questões previstas na Carta das Nações Unidas ou nos tratados e convenções em vigor (cf. artigo 36.º [1] e [2] do Estatuto do TIJ), nomeadamente: a) a interpretação de um tratado; b) qualquer questão de direito internacional; c) a existência de qualquer facto que, se provado, constituiria uma violação de uma obrigação internacional; d) a natureza ou o alcance da reparação a efectuar em virtude da violação de uma obrigação internacional.

3.ª) O TIJ só se pronuncia quando solicitado por um ou mais Estados membros da ONU, que são actualmente 193. Em 1948, Israel não era membro da ONU. Só passou a ser membro da ONU em Maio de 1949, por uma resolução da Assembleia Geral da ONU. Nunca, até hoje, Israel solicitou a intervenção do TIJ seja para o que for.

3. Ilusões recalcitrantes

Certo, «não devemos ter ilusões no Tribunal Internacional de Justiça». Nem em nenhuma instituição da sociedade em que vivemos, acrescento eu — incluindo os partidos políticos, seja lá quem for ou seja lá o que for que eles reclamem como bandeiras suas. As ilusões só servem para sermos enganados ou fazermos disparates que nos podem custar muito caro. Devemos, tanto quanto possível, procurar conhecer bem a natureza das instituições (económicas, sociais, políticas, culturais) e as suas limitações e actuar em conformidade.

A esmagadora maioria da população portuguesa e mundial (incluindo a que fez estudos superiores) não faz, presumo, a mínima ideia do que seja o TIJ. E são muitos os que, ouvindo falar do TIJ, o confundem com o Tribunal Penal Internacional, que não é um tribunal da ONU, mas que também tem sede em Haia.

Ora, não se pode ter ilusões naquilo cuja existência se desconhece. As ilusões existem, sim, e são imensas, mas são sobre Israel, os EUA, a UE, a OTAN (/NATO) — não sobre o obscuro TIJ. Que ilusões? Pois as de que os seus governantes e dirigentes são os paladinos da liberdade, dos direitos humanos, da democracia e da paz que, no entanto, todos os dias destratam e espezinham.

4. Os méritos da iniciativa da África do Sul

Destarte, o mérito da República da África do Sul (RAS) é triplo.

Primeiro, o da coragem. Em 193 Estados membros da ONU, a RAS foi o único Estado que ousou processar Israel no TIJ por intenção de genocídio. A isto não é seguramente alheio o facto de os sul-africanos de pele mais escura terem sofrido durante décadas as agruras de um regime de apartheid — menos brutal, aliás, do que aquele que Israel construiu para segregar, confinar, oprimir e explorar os palestinianos.

Segundo, mesmo para quem julgue conhecer o que ocorre em Gaza (e são muito poucos os que podem ter essa pretensão sem nunca terem posto os pés em Gaza), as revelações e testemunhos de metódica crueldade de Israel, compilados pelo documento que a RAS apresentou ao TIJ ‒ e colocados, assim, nolens volens, sob os holofotes da comunicação social e à disposição do mundo inteiro ‒ são horripilantes. Os mais horripilantes e também, juridicamente, os mais importantes são os que constam dos artigos 101.º a 107.º do documento acusatório da RAS. Aí são transcritas as declarações de altos responsáveis do Estado de Israel que atestam a sua clara intenção genocida — o elemento probatório fundamental para sustentar a acusação de genocídio no âmbito da Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio (que entrou em vigor em 1951). Foi por isso que foram estes os artigos que traduzi para Português e cuja publicação propus ao blogue Estátua de Sal para conhecimento do público de língua portuguesa — o que foi aceite e feito [https://estatuadesal.com/2024/01/11/processo-judicial-em-nome-da-africa-de-sul-contra-o-estado-de-israel/].

Terceiro, «Para além de impedir que o inferno de Gaza desapareça, convenientemente para os seus perpetradores, dos noticiários, a petição do país de Nelson Mandela desnuda o niilismo moral dos Governos do nosso “Ocidente”. Enquanto os “valores europeus” ficam silenciosamente na gaveta, Biden e os seus ajudantes mergulham os EUA no aviltante papel de financiador e cúmplice desta descida aos abismos do mal» (Viriato Soromenho Marques, “Quando a Justiça bate à porta do inferno”, DN, 12-01-2024).

Deste processo judicial instaurado pela RAS a Israel pode resultar, no plano estritamente jurídico, um de dois veredictos contraditórios: a) o TIJ não dá como provada a acusação da RAS, ou b) o TIJ dá como provada a acusação da RAS. Vai haver, seguramente, muitas pressões de Israel e dos EUA sobre os 15 juízes do TIJ para deliberarem no sentido de a). Mas não se pode descartar a possibilidade de que b) tenha vencimento. Só o saberemos daqui a muitos meses ou anos.

Seja como for, e independentemente do veredicto final do TIJ a mais longo prazo, há um outro resultado que pode sair do processo judicial instaurado pela RAS a Israel. É que a solicitação da RAS ao TIJ inclui a solicitação de “medidas provisórias” onde se inclui a “suspensão imediata” das acções militares israelitas contra a população civil de Gaza. Na prática, isto significa um cessar-fogo imediato e permanente e a entrada livre em Gaza de ajuda humanitária. E isso permitiria salvar milhares de vidas inocentes!

Esta decisão poderá ser tomada dentro de duas ou três semanas. Se o TIJ tomar essa decisão ela será ‒ como são todas as decisões do TIJ em todos os casos em que é chamado a intervir ‒ de cumprimento obrigatório para Israel, embora, bem entendido, ele possa recusar-se a cumpri-la (mas isso terá um elevadíssimo custo reputacional, como veremos mais adiante). Será uma decisão que não se baseia no veredicto final do TIJ, mas no mérito do caso apresentado pela África do Sul. Por outras palavras, ao exigir que Israel cesse imediatamente as suas hostilidades em Gaza, o TIJ não estaria a caracterizar a campanha israelita como sendo genocida. Estaria, isso sim, a admitir que essa é uma possibilidade muito séria a considerar. Logo, mais vale prevenir do que remediar.

5. Os receios de Israel e dos EUA

Mas essa possibilidade suscita grandes receios por parte de Israel e dos EUA.

«Israel e o governo Biden tencionam impedir qualquer injunção provisória do tribunal, não porque o tribunal possa obrigar Israel a parar os seus militares, mas por causa da necessidade de salvar as aparências, que já são desastrosas. A decisão do TIJ depende do Conselho de Segurança para ser efectivamente aplicada — o que, dado o poder de veto dos EUA [no Conselho de Segurança], torna qualquer decisão contra Israel muito duvidosa. O segundo objectivo do governo Biden [este no longo prazo, n.e.] é garantir que Israel não seja considerado culpado de cometer genocídio. Os membros do governo Biden serão implacáveis nessa campanha, pressionando fortemente os governos que têm juízes no tribunal para não considerarem Israel culpado. A Rússia e a China, que têm juízes no TIJ, estão a lutar contra acusações de genocídio de que são elas próprias alvo e podem decidir que não é do seu interesse declarar Israel culpado.

O governo Biden está a jogar um jogo muito cínico. Insiste que está a tentar travar o que, como ele próprio admite, é o bombardeamento indiscriminado de Israel contra palestinianos, enquanto contorna o Congresso para acelerar o fornecimento de armas a Israel, incluindo bombas “estúpidas” [= não guiadas, n.e.]. Insiste que quer o fim dos combates em Gaza, enquanto veta resoluções de cessar-fogo na ONU. Insiste que defende o Estado de direito enquanto subverte o mecanismo legal que pode travar o genocídio. O cinismo impregna cada palavra que Biden e Blinken proferem» (Chris Hedges, “The case for genocide”. The Chris Hedges Report. Substack, January 12, 2024). [n.e. = nota editorial]

Este cinismo e esta hipocrisia só têm rival na hipocrisia e no cinismo dos governantes europeus. Por exemplo, João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, afirmou recentemente: «Nós veríamos com muito bons olhos que houvesse da parte do Tribunal Internacional de Justiça uma decisão sobre a necessidade de cessar-fogo, porque corresponde àquilo que consideramos também politicamente fundamental» (Lusa/Jornal de Notícias, 11-01-2024).

Estas são declarações do ministro de um governo que, tal como todos os governos constitucionais anteriores, nunca reconheceu a necessidade de trabalhar para (i) revogar a funesta resolução 181 da Assembleia Geral da ONU (que incendiou o território da Palestina ao despedaçá-lo em dois Estados antagonistas ‒ um sionista e colonizador e outro anti-sionista e anticolonizador ‒  e que fornece o combustível inesgotável que mantém o incêndio activo há mais de 70 anos) e (ii) abrir caminho à constituição de uma República palestiniana única e unitária (i.e. do Rio Jordão ao Mediterrâneo), laica e democrática, com igualdade de direitos e de representação  para todos os seus cidadãos, seja qual for a sua religião ou a sua etnia — muçulmanos, judeus, cristãos, ateus; árabes, beduínos, drusos, circassianos, etc. [https://estatuadesal.com/2023/11/13/carta-aberta-aos-nossos-aliados-judeus/].

O mesmo ministro J.G. Cravinho disse na audição parlamentar a propósito do Orçamento do Estado para 2024: «Acham que fazia alguma diferença se Portugal, sem mais, reconhecesse o Estado da Palestina [entenda-se: que reconhecesse que os enclaves conhecidos como Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, pomposamente crismados de “Estado da Palestina”, são tudo o que ainda não foi completamente tragado por Israel, razão pela qual precisam de ser protegidos das constantes incursões israelitas até estarem reunidas as condições para a instituição de uma República palestiniana única, unitária, laica e democrática, n.e.]? Não fazia diferença» (Expresso, 3-11-2023). O embaixador de Israel em Lisboa, Dor Shapira, pôde, pois, dizer com tranquilidade:

«Em relação à questão do reconhecimento do Estado palestiniano, a posição de Portugal segue a linha da UE e neste momento a UE ainda não reconheceu o Estado palestiniano, portanto não vejo qualquer mudança nisso» (Lusa, 6-12-2023).

6. O genocídio é o crime de todos os crimes

Temos de impedir o genocídio dos palestinianos em Gaza. Temos de desmascarar o cinismo e a hipocrisia daqueles que, por acção e/ou omissão, permitem que Netanyahu e os seus comparsas continuem a executá-lo sob os nossos olhos.

«O genocídio não é um problema político. É um problema moral. Não podemos, seja qual for o custo que isso acarrete, apoiar aqueles que cometem ou são cúmplices de um genocídio. O genocídio é o crime de todos os crimes. É a expressão mais pura do mal. Temos de estar inequivocamente ao lado dos palestinianos e dos juristas da África do Sul» (Chris Hedges, ibidem).

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