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domingo, 10 de março de 2024

A Europa corre o perigo de adormecer em paz e acordar em guerra

estatuadesal

9 de Março de

(Hugo Dionísio in Strategic Culture Foundation, 06/03/2024)

Somos governados por uma aristocracia eleita por poderes supranacionais, que usa os estados como territórios expandidos, dos interesses centrais a quem responde.


Europeus, não se admirem se um dia acordarmos ao som de notícias como “a guerra começou”. Este prenúncio é tudo menos fantasioso e é para ser levado muito a sério. Na minha ignorância, julgo mesmo que, na história humana, após a segunda guerra mundial e considerando a experiência da guerra fria, estaremos, talvez, no momento em que o risco de confronto militar é mais elevado. À falta de uma arquitetura mundial unificadora, de democracias sólidas e de canais de comunicação resultados e credíveis… Tudo se torna possível.

No quadro de mais uma adaptação da já doutrina estratégica secular “da espada e do escudo”, enunciada, em 1917, pelo General Pershing, quando explicava às suas tropas que não estavam, na Europa, para defender os europeus, mas para defender os americanos - uma vez que os países europeus seriam um escudo e os EUA a espada -, ao longo dos últimos 30 anos, a Casa Branca foi construindo uma elite administrativa aristocrática e aristocratizada, a qual responde, em primeiro lugar, aos interesses da “espada” americana.

Em qualquer grupo fechado, a sua coesão interna funda-se em sentimentos de pertença, os quais, neste caso, residem nos valores da exclusividade, individualidade (não é para quem quer) e inacessibilidade (é só para quem pode) ao comum dos mortais. O grande objetivo e o sucesso da estratégia americana residem na criação de um sentimento segundo o qual, cada um dos membros do grupo, faz parte de uma estrutura de eleição, à qual só aderem seres muito especiais. Este sentimento é trabalhado a partir de diversas estratégias de comunicação, sugestão e persuasão que visam criar uma identidade de grupo, mesmo quando os membros relevantes partem de países, realidades e áreas educacionais diversas.

Vejamos alguns casos exemplificativos, mas também paradigmáticos. Emanuel Macron, passou pelo  Institut d'Etudes Politiques de Paris (IEP), o que constitui a chancela de confiança, a premissa, segundo a qual, o sistema neoliberal passa a ter, em Macron, alguém preparado para a nutrir os seus interesses. Para além do caráter selecionado com que esta instituição privada, exclusivamente, se apresenta, as convenções que mantém com a Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e com a, sempre reputadíssima, London School of Economics, ou o curso de mestrado em Inglês para jovens promessas mundiais, representam uma contribuição poderosa deste instituto para a causa monopolista neoliberal. É ali que se criam os fundamentos ideológicos e os ensinamentos propagandísticos que, mais tarde, são enraizados no discurso político.  

Para quem tem dúvidas desta descrição que faço, nomes como Alain Juppé, Lionel Jospin, Dominique de Villepin, Jacqes Chirac, François Hollande e François Miterrand, todos passaram pela escola Sciences Po. Podemos mesmo dizer que, estudar no seletíssimo Instituto é meio caminho andado para o estrelato mundial e, mais importante ainda, para as ações públicas de um dos motores da UE.

Contudo, esta exclusividade não é restrita aos mais elevados representantes da aristocracia ocidental. Mesmo os mais bárbaros e obscuros aspirantes  são obrigados a apresentar qualquer tipo de conexão. Tal é o caso de Kaja Kallas, a primeira ministra da Estónia, que se candidata a tudo o que dá tacho e pertence a todos as direções que a aceitam. 

Kallas passou pela necessária Estonian Business School , pois as escolas de Business têm aqui um papel fundamental no enquadramento ideológico do eleito, mas, entre muitas outras coisas, Kallas pertence também à Global Young Leaders, organização privada relacionada com universidades como Stanford, da Ivy League, destinando-se essencialmente a formação STEM.  

Profundamente ligada aos programas de formação para jovens, selecionados através das estruturas americanas existentes nas universidades e escolas de todo o mundo, aos “sortudos” eleitos de seus programas, é destinado a toda uma panóplia de seleção, com insígnias como “Inovadora”, “Negócios” ou “Liderança”. Em programas que vão desde as escolas do ensino básico à universidade, os “estudantes” aprendem a movimentar-se, desde muito novos, nos meios do poder, desenvolvendo competências ligadas à criação de ONG's, empresas, partidos, como intervir junto de governos, da ONU e de outras estruturas.

Pense-se assim: numa escola pública que propositadamente não forma os alunos para a vida política, o que constitui um erro crasso em democracia, as mesmas elites que o negam à generalidade da população, preparam os seus rebentos para que sucedam de forma direta – qual monarquia hereditária escondida – nos “fazeres” dos adultos. Como se costuma dizer, em terra de cegos, quem tem olho é rei. E as elites oligárquicas sabem-no melhor que ninguém.

Outro caso é o de Rishi Sunak, o indiano que se sente mais americano que inglês. O que não admira. Em 2006, por exemplo, Sunak requentou um MBA da Universidade de Stanford (quase omnipresente), como bolsista da “Fullbright”. A “Fullbright” é mais um desses programas que desenvolve cursos para supostos jovens atrasados. Lá está, a exploração do individualismo, do egocentrismo, do sentimento de exclusividade, como pilares da construção de um sentimento de pertença, através do reforço positivo enquanto ser excecional. Todos se sentem confiantes. Daí a sua arrogância, o seu distanciamento.

Não admira, portanto que a própria Ursula seja tão fervorosamente anti Russa e atlantista. Como não poderia deixar de ser, entre 1992 e 1996 viveu em Stanford (outra vez Stanford), na Califórnia, onde estudou economia. O próprio Donald Tusk, da Polónia, fez parte de uma Associação de Estudantes Independentes, criada em 1980, financiada pelos mesmos de sempre, que visava subverter, a partir da academia o regime – à data socialista – da Polónia. Mais tarde, foram os quadros desta “associação” que deveriam ser “independentes” que apoiaram, no terreno, a organização da Revolução Laranja na Ucrânia. Ou seja, o que vemos na Ucrânia, hoje, é o resultado de um amplo projeto de separação e submissão da Europa aos interesses neoliberais, hegemónicos e imperiais dos EUA.

Este “escudo” europeu, como podemos constatar, é construído por um grupo que funciona quase como uma sociedade secreta, dotado de profunda coesão interna, baseado no sentimento narcisista de eleição, exclusividade e de pertença a um grupo de elite, treinado para liderar, formado para administrar os interesses supranacionais do estado monopolista por excelência, os EUA.

Agora, imagine-se uma estirpe de pessoas que, para além de muitas pertencerem às classes mais abastadas ou à aristocracia política, ainda lhes inculcam, através de consideráveis ​​recursos institucionais ao dispor, a ideia de que fazem parte de um grupo restrito, colocado acima do comum dos mortais, destinado a decidir, por conta dos interesses monopolistas que os contratam. Pertencendo a uma elite deste tipo, o erro comum, que normalmente custa a careira, a honra e até a vida, para esta gente não passa de um percalço na ascensão ao topo. Imaginem-se colocados nestas posições; como se comportariam? Com sentido de responsabilidade? Ou com total sensação de impunidade? Se vocês soubessem que o vosso poder, estatuto e legitimidade emanavam de interesses supranacionais, a quem seria natural demonstrarem a vossa lealdade? Ao povo?

A forma como os EUA, e os interesses monopolistas que compõem o seu sistema de poder, subverteram qualquer ideia de autonomia estratégica para a UE, atirando-nos a todos para uma linha da frente que, não visa proteger os nossos interesses, mas os deles propriamente, consistiu na entrega da alta política, não aos mais experientes estadistas, aos mais emergentes líderes de massas, ou aos mais capazes e competentes quadros públicos, mas, ao invés, a uma estirpe espartana socialmente isolada (apenas no modo de organização e não nos costumes), composta por carreiristas, incapazes de distinguir entre interesse público e privado, nacional ou internacional. Para tais seres, os interesses da coisa pública confundem-se com os seus, e os seus, com os dos seus patrocinadores. São uma e a mesma coisa, num ciclo vicioso em que quem ganha e quem perde está, à partida, determinado.

E, se a atuação deste grupo privilegiado, elitista, segregacionista e exclusivista, em matéria de economia europeia, tem os resultados à vista, também no que diz respeito à política externa, os seus atos demonstram por conta de que projeto as suas lealdades são expressas. Victoria Nuland veio à Europa, exigiu demonstração de apoio e recebeu-o sob a forma de um Macron que, convocando todos os líderes europeus para o Palácio do Eliseu, discutiu a possibilidade de enviar tropas europeias para a Ucrânia. Não fosse Robert Fico, que, pelos vistos, não se revê neste seleto grupo de yuppies, e não saberíamos que os líderes em quem é suposto os povos europeus confiarem, discutirem, entre si, à porta fechada e nas costas da mesma democracia com que enchem a boca, algo como o rastilho que pode incendiar uma terceira guerra mundial. Ou seja, discutem, entre si, a utilização da Europa como escudo da espada americana, com total desprezo por quem dizem governar.

Coincidência ou não, é também após a visita da incendiária Nuland, que todos tomámos conhecimento de que três militares alemães de alta patente desejavam preparar um ataque à ponte sob o estreito de Kerch, usando mísseis Taurus fornecidos pelo seu país. Entre todas as formas de manifestação de lealdade, a mais hilariante só poderia vir de Zelensky, quando este, qual Cristo ressuscitador de mortos, conseguiu transformar as centenas de milhares de soldados, que ele próprio enviou para a morte, em apenas 31 mil falecidos. Onde param então mais de 500 mil soldados?

Dizem, depois, os incautos que, no Ocidente, faltam “estadistas”, repetindo tal vezes sem conta, sem se darem conta do paradoxo. Para existirem “estadistas” primeiro têm que existir estados. Se, nesta nova construção geográfica que é o “ocidente coletivo”, já não existe a figura do estado-nação, mas, antes, territórios de interesse estratégico, então, no quadro deste modo de organização, o que podemos esperar daqui são missões e envios plenipotenciários que servem principalmente aos interesses monopolistas da hegemonia americana. Uma espécie de cônsules de um poder imperial supranacional. Atualmente, qualquer leitura que façamos sobre a realidade política vigente, tem de ter em conta que a Europa, o Japão, a Coreia do Sul ou a Austrália passaram a ser, não apenas especificamente o “escudo” de defesa dos EUA, mas também o seu “espaço vital”. Um espaço vital que, agregado ao seu próprio, capacita os EUA para uma competição feroz com o eixo Rússia, China e Irão, mais populoso, produtivo e motivado. Já não se trata, apenas, de “manter a Europa dentro” ou a “Alemanha em baixo”, como era pretendido para missão da NATO, trata-se, sobretudo, de fazer coincidir o território NATO com o território vital dos EUA, o que levanta questões profundas sobre o papel da União Europeia, num quadro deste tipo.

Assim, se a realidade que analisamos não é composta por estados-nação, mas por um espaço comum supranacional, liderado pelos EUA, esperar por “estadistas” não é minimamente realista, pois ao “estadista” preocupa o Estado, enquanto organização coletiva que constitui a cúpula de uma determinada existência sociopolítica. Interessa-lhe a Nação, o povo, a sua economia, as suas tradições e identidade. Será que esses valores movem um Emanuel Macron, uma Ursula Von Der Leyen ou um Donald Tusk? Nem a sua atuação e, muito menos, o seu currículo, o indiciam.

Assim, a cobertura da impunidade que só um estatuto excecional, mas sobretudo supranacional, pode trazer, ajuda-nos a uma discussão sobre a oficialização da presença de forças europeias na Ucrânia, nomeadamente as que estão afetadas aos “estados” que andam a celebrar, nas costas dos seus povos e sem discussão soberana, acordos bilaterais de segurança, que os podem obrigar a entrar numa guerra, tal como o Reino Unido inaugurou, como mundial, a segunda guerra, por ter assinado um tratado bilateral de segurança com a Polónia. Se isto não é um assunto a ser discutido, profundamente, em democracia, por um povo, então não sei o que será mais importante! Casas de banho erradas? Casamento entre pessoas do mesmo sexo? O retrocesso nas leis do aborto? Sem desprimor por essas questões, claro!

Bem sabemos que, tal discussão, neste preciso momento, resultou de mais uma manobra contingente, que visa impedir aquilo que prometeram, desde o início, nunca ser possível: a vitória russa! Nunca se retratando e provando que a impunidade que sentem tem correspondência com o poder que os legitima, a designada “comunicação social” dominante, a tal que deveria informar, escrutinar, questionar, criticar, cala-se bem caladinha e passa a dizer, hoje, o que veementemente, ontem, negava. Como que a provar que, uns e outros, emanam de uma mesma fonte de poder.

O facto é que, por este caminho, amanhã, poderemos acordar com forças da NATO oficialmente estacionadas, ao longo da fronteira norte da Ucrânia com a Rússia e a Bielorrússia e, ao sul, na região de Odessa, procurando salvar a ligação dos resquícios do país que antes existia, ao Mar Negro. A partir desse dia, Vladimir Putin, o ministro Shoigu ou Medvedev, já não terão de fazer de conta que não existem tropas da NATO às portas da Rússia! Elas estarão lá, para todos verem. Nesse dia, saberemos para que ainda servem as bandeiras nacionais dos estados-membros da UE e da NATO. Servem apenas para mascarar a presença da Aliança junto do seu eleito inimigo, ou para transmitir aos povos europeus, enganando-os, de que não será a NATO que lá estará, mas sim, os seus estados-membros. Afirmar a presença da NATO, por um lado, e escondê-la, por outro.

Quando tal acontecer, confirmaremos, na prática, tudo o que disse anteriormente: somos governados por uma aristocracia eleita por poderes supranacionais, que usa os estados como território expandido dos interesses centrais a quem responde, recorrendo ao conceito de estado-nação apenas para legitimar as ações que visam desenvolver, sob essa capa.

E só assim será possível adormecermos, uma certa noite, em paz, e, no dia seguinte, acordarmos em guerra!

 

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