A cultura da vitória e da violência é uma faca de dois gumes — lições d’Os Lusíadas
(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 13/10/2024) A propósito da guerra na Ucrânia, numa entrevista recente, Sergei Lavrov, o ministro dos negócios estrangeiros russo, afirmou que ela apenas poderá terminar com a vitória da Rússia, porque vitória e derrota são as únicas linguagens que o Ocidente entende. Independentemente do que cada um possa pensar sobre as causas do conflito e das justificações dos contendores, a vitória com esmagamento do adversário é a doutrina da Europa e do Ocidente desde que a Europa iniciou a sua expansão no século XV. Estamos, embora se note pouco, na celebração dos quinhentos anos de Os Lusíadas, de Camões. Ora, Os Lusíadas refletem a diferença de pensamento e de estratégia do que foi o conceito português de abordagem do “outro” e o conceito vencedor do Ocidente, o dos impérios espanhol e inglês. Os Lusíadas expõem a diferença radical no modo como os dois grandes impérios europeus expandiram o seu poder e o da abordagem dos portugueses aos outros povos e civilizações. Motivam a provocadora interrogação: Com quem e com o que fariam os espanhóis uma epopeia? Com Cortés e a conquista do México, ou com Pizarro, que realizou o feito de prender o imperador Atahualpa, dos incas, depois de aceitar o convite deste para um jantar, durante o qual assassinou a sua pequena guarda? E os ingleses que herói têm para uma epopeia? Os corsários Drake e Raleigh, que os seus contemporâneos designavam por Sea Dogs, os cães do mar? Os Lusíadas são também um extraordinário manual de relações internacionais. Os dirigentes dos impérios europeus que sucederam aos portugueses, os ingleses e os espanhóis, agiram com a arrogância e a convicção de superioridade que se iriam traduzir na gigantesca empresa da escravatura de africanos, na destruição das culturas e civilizações do continente americano e no genocídio dos povos. A partir da chegada de espanhóis e ingleses e também dos portugueses às américas que contributo foi permitido aos povos locais — desde a Patagónia ao Alaska — darem ao progresso do mundo e que possa ser comparado ao que as civilizações do Índico e do Pacífico proporcionaram? A ordem internacional imposta por espanhóis e ingleses, também por franceses e alemães, atualmente pelos norte-americanos, assenta em princípios opostos aos que Camões expressou em Os Lusíadas. Fundou-se na morte por asfixia das culturas e civilizações existentes. É este reconhecimento que Sergei Lavrov faz e que motiva a atitude da Rússia nos atuais conflitos que o Ocidente conduz na Ucrânia e no Medio Oriente. A estratégia que o império Ocidental — herdeiro dos impérios inglês e espanhol — está a conduzir na Ucrânia e no Medio Oriente é a do esmagamento dos povos que existem desde o Líbano à Rússia — com propositado exagero, estabelecer uma Gaza de Beirute a Moscovo — ou uma limpeza como a que foi feita na América do Norte de Nova Iorque a São Francisco, ou como as levadas a cabo por Cortés e Pizarro na América Central e do Sul.
As visitas do presidente da Assembleia do Irão e do ministro dos negócios estrangeiros a Beirute realçam a aliança existente e a assinatura de um pacto de defesa entre o Irão e a Rússia. E isso significa que a reprodução da estratégia de vitória por esmagamento que presidiu à estratégia ocidental durante cerca de cinco séculos tem grandes probabilidades de degenerar num desastre a vários títulos, militar, desde logo, mas também económico e, mais profundamente ainda, civilizacional. Apenas para recordar, os princípios filosóficos em que assenta o pensamento europeu foram transpostos do grego para a Europa através dos árabes e foram-no principalmente durante os sete séculos em que eles estiveram na Península Ibérica no Al Andaluz. Já agora, os nossos algarismos ainda são conhecidos por números árabes.
Os Lusíadas são a epopeia de uma península que era a proa de um continente que viajava ao encontro de outras gentes e culturas e ali aportava. Da epopeia dos portugueses no Oriente cantada em Os Lusíadas mantiveram-se e desenvolveram-se civilizações tão pujantes como a Índia, a China, a Indochina, o Japão, enquanto nas Américas nada restou, além de ruínas e a humilhação espelhada nos rostos daqueles a quem arrogantemente o Ocidente uniformizou sob a designação de “índios”. Na expansão para Ocidente, os europeus provocaram terror a todos os que encontraram com o barulho ensurdecedor das armas, o cheiro insuportável da pólvora e com os “monstros de quatro patas”, o cavalo, desconhecido pelos povos do continente americano. Tal como acontecerá em Hiroshima e Nagasáqui com as duas bombas atómicas e acontece hoje em Gaza e no Líbano com as mais mortíferas armas ocidentais. A anti epopeia da Europa terminou com a sua derrota na Segunda Guerra Mundial, quando foi substituída por uma entidade sem alma, que funda o novo mundo com um imenso genocídio e uma exploração sem regras nem limites da natureza, expressa na célebre carta do cacique de Seattle ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1855: O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também a sua amizade e benevolência. Isto é gentil da sua parte, pois sabemos que não precisa da nossa amizade. Vamos, porém, pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. […]
Há uma diferença radical entre a chegada dos europeus às Américas e a de Vasco da Gama à Índia. Entre a dominação e uma aliança, Vasco da Gama propõe uma aliança ao Samorim: E se queres, com pactos e lianças/De paz e de amizade, sacra e nua, Comércio consentir das abondanças/Das fazendas da terra sua e tua, Por que creçam as rendas e abastanças/(Por quem a gente mais trabalha e sua)/De vossos Reinos, será certamente/De ti proveito, e dele glória ingente. Os Lusíadas não fazem parte das leituras nem na sede da UE, nem da NATO. |
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