Da impunidade dos crimes do Ocidente à impotência coletiva dos povos – Parte I
(Por Erno RENONCOURT, in Le Grand Soir, 04/10/2024, Trad. Estátua) Podemos afirmar que, na sua forma atual de geoestratégia totalitária da globalização, o capitalismo já não pode ser definido tal como o marxismo o entendia no século XIX, ou seja, simplesmente como um sistema de produção de mercadorias e bens através da exploração do trabalho assalariado. Neste texto, propomos uma reflexão atípica, até mesmo herética, para repensar o sentido e reapropriar as questões da noção de “consciência” nas novas formas de luta a serem travadas contra a indigência multifacetada que o capitalismo semeia com grandes ventos apocalípticos sobre todos os continentes e em todas as estações. Esta reflexão parece-nos contextualmente necessária, porque, na sua perspetiva da viabilidade humana da história, o materialismo dialético postulou que a condição sine qua non da revolução dependia da transformação da alienação capitalista em poder insuportável (Karl Marx e Friedrich Engels, in A Ideologia Alemã). Ora, a observação da evolução do capitalismo como um poder monetário insuportável é reconhecida por unanimidade. Segundo Marc Chesney, professor de finanças da Universidade de Zurique, “nunca na história houve uma concentração de riqueza em tão poucas mãos”. E esta situação é ainda mais insuportável porque é perigosa. Porque, além disso, a oligarquia financeira está tão interessada nos seus ativos económicos que jura apenas pelo crescimento e pela abundância, e está pronta a assar a humanidade que se rebela contra a sua indigência com o fogo nuclear. Na verdade, esta oligarquia assumiu todos os direitos: manteve durante muito tempo uma grande parte da população mundial na escravatura, especialmente nos países do Sul; derrotou a democracia e o modelo social que tinha, contra a sua vontade, concedido às populações do Norte, depois da Segunda Guerra Mundial, no seu desejo de derrotar o bloco comunista que se impôs, através do seu triunfo sobre o nazismo, como modelo alternativo. Tendo manobrado até se impor como único modelo dominante, após o colapso do bloco de Leste em 1991, esta oligarquia queria tanto expandir o seu crescimento que transformou o seu modelo económico neoliberal de deterioração dos ecossistemas e dos espaços humanos numa geoestratégia da globalização, com o objetivo de absorver toda a riqueza do mundo. Compreendemos facilmente porquê. E sentindo-se ameaçada pelas potências emergentes que querem um mundo multipolar, menos sujeito aos ditames do Estado único sob o controlo desta oligarquia financeira e predatória, parece assumir o risco de colocar a humanidade à beira do guerra apocalíptica. De Gaza ao Haiti: a mesma divagação da consciência humanaE, no entanto, embora esta gangrena, que semeia o caos e a precariedade em prol do seu crescimento e abundância, seja, no final do primeiro quartel do século XXI, unanimemente reconhecida como um poder monetário e totalitário insuportável, a humanidade nunca foi tão impotente e distante das frentes da revolução. Tomando os exemplos de Gaza e do Haiti, podemos modelar os termos dos problemas enfrentados por esses povos por meio de equações equivalentes que envolvem os conceitos de invariância, impotência e errância, interligando-se e entrelaçando-se como variáveis estruturantes de uma mesma representação da realidade. Da realidade do mesmo mundo alienado, do mesmo desejo de quem a todos tem que desumanizar retirando-lhes a sua dignidade; e isto, apesar da distância geográfica, cultural e histórica destes dois povos, e apesar da diversidade de formas e múltiplas manifestações desta desumanização ou desta divagação de consciência. Assim, podemos propor uma equivalência entre os termos do problema haitiano e os de Gaza, e mesmo os do mundo, da seguinte forma: Haiti desumanizado = Invariância das raízes totalitárias do Duvalierismo (que são consequências das estruturas esclavagistas) + impotência coletiva + divagação da governação local (perda de inteligência coletiva local). Gaza Desumanizada = Invariância das estruturas genocidas do Estado hebraico (diversificação das estruturas esclavagistas) + impotência coletiva + deambulação da governação democrática global (perda de inteligência coletiva global). Na verdade, enquanto toda Gaza estava a ser alvo de genocídio em 2024, as classes ricas e médias em França (e em todo o mundo) celebravam os Jogos Olímpicos de Paris 2024. Enquanto o Haiti era entregue à experimentação pelo Ocidente e pelas suas instituições internacionais a um gangsterismo estatal transnacional, que devolve a vida da maioria da população pobre às mesmas condições desumanizantes da época da escravatura, no Ocidente os seus artistas, os seus escritores, os seus intelectuais acotovelam-se nos teatros mundiais para terem sucesso nos sonhos brancos de outros lugares e estão prontos para todas as infâmias, todas as vilanias para se agarrarem a esse sucesso longe desse buraco de merda. Era como se o Grande Noite da ação revolucionária, destinada a iluminar a festa da humanidade social e genérica, se tivesse esfumado. A aurora de um amanhã cor-de-rosa não dissipou os pesadelos da noite, uma lua opaca de terror passou no ângelus do dia, o velho mundo recusa-se a morrer e o claro-escuro de Gramsci transformou-se num eclipse de horror com a efígie da morte. É como se o grande bárbaro, o eterno carniceiro e coveiro dos povos, tivesse coberto o mundo com a sombra espessa do seu gigantesco manto apocalítico, como um convite para o banquete da humanidade que está prestes a ser assada no altar da sua felicidade pós-humanista. Mas onde está o erro? Porque é que os raios materiais negros da existência desumanizada, tão carregados de cólera militante, não iluminaram os céus da consciência de classe dos povos para os impulsionar para a história como motores revolucionários? Transições sistémicasNão pensem que estamos a utilizar esta metáfora para ridicularizar as perspetivas de uma provável revolução, fazendo o papel de aprendiz de crítico do marxismo. O nosso objetivo é mais estratégico do que académico, mais pragmático do que filosófico. É um esforço de sistematização da dialética materialista para contextualizar as condições de viabilidade humana da história, para além da maturação das forças produtivas e económicas. Porque o marxismo é uma teoria científica, e como tal deve seguir o ritmo da dialética: qualquer mudança na infraestrutura da sociedade deve levar a uma rutura na superestrutura, com novas ideias adaptadas para permitir que a teoria seja ajustada de modo a permanecer viva e atual, reinventando-se indefinidamente.
Perante esta inovação perversa, que corrói a dignidade e a humanidade do ser humano através da posse, colocando o poder e o saber no centro da sua existência como artefactos de sucesso do seu condicionamento desumanizador, é necessário um esforço sistémico de reapropriação da noção de consciência, para além da sua leitura “estática dialética” como substrato religioso da alienação (Karl Marx, Os Manuscritos de 1844, Apresentação, tradução e notas de Émile Bottigelli. Paris, Les Éditions sociales, 1972, p. 79). A consciência, porque intervém, não como emergência dada, na compreensão da existência, mas como construção decorrente da representação, interpretação e modelação das suas reais e complexas dimensões alienantes, participa, portanto, no processo de ação para a viabilização humana da história. E, como tal, vai-se afirmando como uma questão de resistência e um território de luta para a construção de uma insubordinação verdadeiramente internacional. Uma insubordinação que não será uma impostura ideológica, mas uma verdadeira insurreição das consciências, assegurando o endireitar das posturas, para que o corpo e a mente se alinhem permitindo que as pessoas ocupem dignamente o seu lugar na existência, aprendendo a ser elas próprias, apesar das suas circunstâncias precárias, aprendendo a enraizarem-se no solo da sua cultura e a saberem renunciar a certos bens económicos e a certos atrativos de sucesso, que implicam sempre pesados passivos para a humanidade. Este esforço é tanto mais útil já que, mesmo alguns marxistas parecem esquecer que, fazer história não é a mesma coisa que escrever história. Assim, há nuances a esclarecer entre as diferentes conceções possíveis do materialismo: a do homem como ator da história, a do homem como autor da sua própria história e a do homem como fazedor da história.
Pois é evidente que cada um destes papéis exige dele posturas mentais e talentos diferentes, consoante a sua lucidez, a sua inteligência, por assim dizer, a sua consciência. A maioria dos marxistas, no entanto, parece ter um horror sagrado a este conceito, que para eles é sinónimo de alienação religiosa. De facto, muitos dialéticos materialistas tendem a esquecer que a ação humana não se põe em marcha sob o pretexto de que as condições históricas estão reunidas. Pois essas condições podem estar historicamente reunidas, mas os homens podem não saber como interpretá-las, nem como explorá-las para as necessidades da viabilidade humana da história. Consequentemente, a ação humana, como veremos, é o trabalho de pessoas que estão até ao pescoço no marasmo da sua existência, plenamente conscientes das suas condições de existência precárias e desumanizadoras, plenamente conscientes das suas responsabilidades no contexto do momento histórico em que se encontram, genuinamente decididas a mudar estas condições falhadas, e sistematicamente equipadas com os meios e ferramentas para levar a cabo esta mudança (Ludwig Von Mises, Human Action, 1949). Se assim não for, a ação pode não passar de um fiasco, como a revolta dos comunistas de Paris (Karl Marx, Les luttes de classe en France (1848-1850), 1850), dando à história motivos para se repetir, passando constantemente da tragédia à comédia, até se impor como a invariância e o eterno recomeço da mesma tragicomédia para a humanidade. Metamorfoses indigentes
Esquecemo-nos de que a consciência, como produto da existência, se constrói em relação à existência, e que essa relação conduz a movimentos flutuantes de ida e volta que podem ser inteligentes e estruturantes ou alienantes e desvinculadores; de modo que a realidade nunca é a mesma para um observador, dependendo do ângulo através do qual a sua consciência interpreta a existência. Da existência à consciência, portanto, há estados mentais que os dialéticos não se deram ao trabalho de inventariar para os integrar no seu arsenal de luta contra a desumanização da existência. E, perniciosamente, é destes estados mentais que o neoliberalismo se apropriou subtilmente, tão bem que conseguiu colocar o homem contra o homem num processo paradoxal de desempenho fracassado. Inicialmente, através de condicionamentos psicológicos e culturais adequados, inculcou nas pessoas o culto do ter (propriedade privada), obrigando-as a submeterem-se às autoridades detentoras dos recursos e a renunciarem à dignidade para garantir a empregabilidade que dá acesso ao poder de compra. Há um paradoxo neste processo, uma vez que o desempenho do acesso aos recursos (o ter) obriga naturalmente o indivíduo a renunciar à sua inteligência e a permitir a erosão da sua dignidade. Como disse muito bem Noam Chomsky: “Há dois conjuntos de princípios. Os princípios do poder e do privilégio e os princípios da verdade e da justiça. Se perseguirmos o poder e os privilégios, isso far-se-á sempre à custa da verdade e da justiça”. Algumas pessoas acreditam que podem enganar o sistema aceitando o que este lhes dá e afirmando que são agentes de mudança do sistema. O erro é que subestimaram o facto de a consciência se adaptar ao que reforça a sua inércia. Em segundo lugar, conscientes da metamorfose que o ser humano sofre, através da erosão da sua dignidade, quando é enobrecido pela riqueza e pelos bens, os estrategas do neoliberalismo aproveitaram a evolução tecnológica para desmaterializar as estruturas de alienação, embelezando as suas formas bárbaras de ação, transformando-as em artefactos de direitos e de liberdade: o direito às cópulas intersexo (enquanto se aguarda a sua generalização entre espécies), o direito à gestação de substituição (enquanto se aguarda a sua metamorfose universal em gestação de substituição por outra espécie), o direito à mudança de sexo (enquanto se aguarda o direito à mutação para outra espécie). Assim, no entrelaçamento temporal desta dupla metamorfose, nasceu um gosto pelo gozo, pelo luxo e pela devassidão que distanciou as pessoas de esquerda do território da consciência, impedindo-as de o verem como uma questão-chave na luta e um espaço mental de resistência contra a indigência que se digitalizou e virtualizou, tomando as trajetórias do imaterial (Jean Clam, CNRS, 2016) para melhor desumanizar a vida. Esta é a acusação insolente e a dissidência que aqui quisemos trazer, neste tempo apocalíptico e carregado de energia nuclear que despoja cada vez mais os homens da sua humanidade, impelindo-os para os territórios deste fracasso humano através da espiral da mais pura indigência. Com este libelo herético - para além da fúria apocalíptica deste outono de 2024, que amplifica todos os medos, enquanto esperamos que a humanidade caia no abismo da miséria -, estou aqui para deixar ecoar em ecossistemas tépidos algumas conversas autênticas e intranquilas (num cenário de tecnologias de inteligência e previsão ética para a tomada de decisões através de aprendizagens neuro-turbulentas e sensoriais), e para me libertar um pouco mais das amarras que atrofiam a vivência sensorial e a sublimação da existência, através da plena consciência de si. |
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