Trump, um produto da falência moral do partido democrata
(Hugo Dionísio, in Strategic Culture Foundation, 07/11/2024, revisão da Estátua) A derrota de Kamala é, assim, a vitória da demagogia política, do messianismo providencialista e do Supremacismo, do qual o Partido Democrata não se libertou e o qual também contribuiu para normalizar, permitindo a Trump ganhar, apesar dele, e da forma exacerbada como o defende. Imigração, aborto, wokismo, guerra da Ucrânia, guerras eternas, reindustrialização e proteccionismo. Com excepção do aborto e wokismo (identitarismo), que se tratam de questões de consciência e não de política estrutural, todas representam, de alguma forma, algumas das consequências mais brutais do neoliberalismo nos EUA, figurando entre as grandes causas da derrota de Kamala e da vitória de Trump. A desindustrialização, esgrimida por Trump como uma das grandes causas da perda de poderio da sua América, aconteceu como causa directa da financeirização da economia (acelerada pelo republicano Nixon) tornando a economia de casino no motor económico dos EUA. Sem indústria veio a deterioração do poder real resolvido com a criação de conflitos eternos. As guerras eternas comportam um penoso custo sobre a economia ocidental (também na Europa) e um entrave ao investimento público em infra-estruturas e outras necessidades. A pilhagem que elas possibilitam à Blackrock, Monsanto, Golden Sachs e outras, não reverte para o povo norte-americano, mas para acumulação de uns poucos. Como forma de desviar atenções, assustar e anestesiar as massas, recupera-se a russofobia, a guerra fria e promove-se o identitarismo, provocando a atomização social e a fractura dos movimentos sociais que poderiam contestar, de forma consistente e coerente, esta situação. O resultado é a instalação de um sentimento de instabilidade e precariedade, relativamente a todos os aspectos da vida. Trump surgiu como a solução que concretizará a aspiração à estabilidade e a uma certa “normalidade” nos costumes, na economia, no trabalho, na família. Kamala nunca se libertou da acusação de que pretende a continuidade dos factores que causam esta desagregação social.
Explicada a causa, falta então estabelecer os seus constituintes, que passo a enumerar, de forma aleatória:
Trump utilizou de forma magistral esta bandeira, capitalizando factores como o medo de uma guerra mundial, a opacidade do complexo-militar industrial, o seu descontrolo nas despesas e o facto de operar para além das regras democráticas, sem auditoria, escrutínio ou necessidade de justificar os gastos. Acresce que, a mais do que previsível derrota da NATO na Ucrânia, traz consigo outra novidade, que consiste num certo descrédito na mítica – mas nunca comprovada – capacidade militar dos EUA. Trump apresentou-se como o candidato que iria resolver os conflitos eternos, libertando o povo americano desse fardo, mas, ao mesmo tempo, recuperando o misticismo militar perdido. Uma espécie de nacionalismo do fim dos impérios, pelo qual todos passam. Este pressuposto tem dois problemas: o primeiro, é que o discurso da paz, e do fim da guerra, deveria, conceptualmente, estar do lado de Kamala; o segundo, é que, acreditar que Trump conseguirá, quererá, sequer, colocar um ponto final no militarismo norte-americano, é, no mínimo, risível. Trump até pode arrefecer alguns conflitos, mas agravará outros, em linha com a sua prepotência e narcisismo, próprias do providencialismo ideológico norte-americano comum a todas as suas poderosas facções. Como se verá, contudo, Trump não apenas aumentará os gastos militares, em linha com o que prevê o Mandate 2025 da Heritage Foundation, como terá de alimentar conflitos para os justificar. Provavelmente mais conflitos frios que quentes, mas, mesmo assim, conflitos. A Europa será uma das grandes penalizadas pela sua própria cobardia. Trump não deixará de extorquir dos cobardes políticos europeus, o que considera constituir a sua justa contribuição para uma NATO que só dá jeito aos EUA e a ninguém mais. Trump alimenta-se da falta de um discurso pacifista, defendendo o fim das guerras eternas, o que não quer dizer “o fim das guerras” e, certamente, não quer dizer “o fim dos conflitos” e tensões militares.
A utilização desta bandeira não é nova. Contudo, lá como por cá, o que Trump não diz, é que, quem exige aos governos ocidentais, a abertura das “portas” migratórias, são os próprios patrões. Nenhum migrante se desloca para um país, se considerar que aí não vai encontrar trabalho. É a susceptibilidade de encontrar trabalho que os atrai. Essa informação circula pelas redes de traficantes e chega aos povos mais pobres, que agarram a possibilidade. E quem propaga a informação? Basta olhar, por exemplo, para o posicionamento das associações patronais europeias sobre o assunto. Consideram que são necessários mais migrantes. Afinal, necessitam de mão-de-obra barata, disponível, bem-comportada, descartável e que pressione para baixo os custos salariais dos povos autóctones. Sobre isto, Trump, e a extrema-direita, nada dizem. A extrema-direita capitaliza, sim, e de forma massiva, os problemas de exclusão social ligados aos fluxos de migrantes e dos seus descendentes. E esta exclusão social é culpa, uma vez mais, do partido democrata. O Partido Democrata responde ao patronato com manutenção ou aumento do stock migratório, mas o dinheiro que deveria ser usado para integrar estas pessoas, e os seus filhos, é usado para a guerra e para financiar as grandes corporações. O pacote anti-inflação de Biden (o Inflaction Reduction Act) financiou, em centenas de biliões de dólares, a compra de capital em bolsa, pelas próprias corporações, para que se valorizem artificialmente. Esse dinheiro não foi usado para melhorar o acesso à saúde, habitação ou segurança social, bandeiras do Partido Democrata. Este partido foi penalizado por tratar os migrantes como os trata o Partido Republicano quando está no poder.
O Partido Democrata perdeu muito do capital de confiança que a juventude norte-americana lhe colocava, na questão palestiniana. Se até aqui, mal ou bem, os jovens progressistas e os adultos antissionistas viam no Partido Democrata uma espécie de apaziguador – pelo menos –, face ao anti arabismo republicano, com Biden e Kamala, tudo se esfumou. É com Biden e Kamala que o mundo assistiu a um inadmissível genocídio em directo. É sob uma administração democrata que os EUA embarcaram numa guerra em duas frentes, uma das quais sob um povo indefeso, e qual delas com as consequências mais imprevisíveis. Kamala e o PD não conseguiram, desta forma, estabelecer uma diferença substancial para Trump e se alguém capitalizou voto, nesta matéria, terá sido mesmo a candidatura deste último. Pelo menos terá captado algum voto a que antes não teria tido acesso. O facto de defender o fim das guerras eternas e dizer que não quer guerra com o Irão, acabou por estabelecer uma diferença importante, também nesta matéria.
O establishment estava convencido de que o povo norte-americano gostava de Hillary Clinton. Estava enganado. Hillary era “Killary” e não nutria simpatia alguma. Os mesmos estavam convencidos de Kamala não falharia. Bastaria colocá-la à frente de um teleponto e estava resolvido. Não era preciso falar muito, e pensar, menos ainda. Ninguém conseguiu capitalizar o que quer que fosse de positivo sobre Kamala. Das vezes que ficou sem teleponto, o improviso foi estarrecedor. A sua incapacidade oratória, retórica e teórica, foi tornada evidente. Mas o facto de ser mulher, associado ao facto de ser “Brown”, não poderia falhar. A cartada tinha dado certo com Obama, porque haveria agora de falhar? Obama foi o genocida mais simpático da história. Enquanto fazia desfilar a sua enorme capacidade discursiva, encerrava crianças em jaulas na fronteira sul, ameaçava a Síria de invasão, criava condições para a entrada do Estado Islâmico na Síria e Iraque, destruía a Líbia e apoiava neonazis na Ucrânia. Esta aposta numa figura inócua, apagada e incapaz não é nova e representa um enorme vazio de liderança real. Biden foi o último dos líderes da máquina democrata e norte-americana. Gente como Cornel West, Jill Stein, ou Bernie Sanders, foram impedidos, pelos grandes doadores, de dar voz às ansiedades populares de jovens e trabalhadores. Eis a “democracy” norte americana em toda a sua extensão.
A precariedade da vida, a agrura das condições, a estagnação ideológica do sistema e o apagamento das luzes da alternativa, e com a estagnação, o apodrecimento e deterioração, associadas à ausência de alternativas, criam as contradições ideais para o surgimento de movimentos que defendem, mesmo que aparentemente apenas, a alternativa. É uma lei da vida. Se a água não for por um lado, vai pelo outro. Contudo, o Partido Democrata, como os partidos social-democratas na Europa, foram controlados pelo neoliberalismo. A deterioração, durante os seus mandatos, dos serviços públicos tornou-se evidente, o que resultou numa desmoralização ideológica, não apenas da social-democracia, mas de todas as forças progressistas e democráticas consideradas moderadas. As radicais são persona non grata e estas deixaram de constituir uma diferença efectiva para as outras forças da direita.
Trump, acaba a surgir como alternativa ao sistema que o constrói e de que se alimenta. E consegue-o porque o establishment transformou o sistema partidário ocidental num amplo campo de direita neoliberal e neoconservadora, em que desfilam figuras diferentes na aparência, mas iguais na substância, domadas pelas elites, apenas com o objectivo de manter a aparência de movimento democrático, quando, na prática, não existe. Afinal, é JD Vance, Vice de Trump, quem aparece a opor-se às deslocalizações para México e China. Não deveriam ter sido os democratas a fazê-lo? Quando vemos Biden a aplicar tarifas, para que as marcas chinesas não entrem nos EUA, vale a pena perguntar se ele não se deveria ter lembrado de o fazer, com as empresas norte-americanas, que se deslocalizaram para América latina e Ásia. Porque foi o Partido Democrata conivente com a destruição da capacidade industrial dos EUA?
Não foi apenas o aborto, bandeira capitalizável numa sociedade reaccionária e muito religiosa. Não vale a pena as Kamalas do mundo virem dizer que, a um Trumpista, ou republicano tradicional, importam mais os fetos humanos do que a vida dos seres já nascidos, se depois mantêm os salários congelados durante mais de 40 anos, deixam a riqueza voltar a concentrar-se, ao nível do que acontecia nos anos 30 do século XX, não criam uma rede de cresces gratuitas, não apoiam a constituição de famílias e a natalidade, e por aí fora. O seu discurso é contraditório com o que fazem na realidade. Onde está a moral para defender o aborto numa situação destas? Mesmo que exista, ela é muito condicionada pelo insucesso das políticas sociais do PD. Como dizer que o aborto é defensável como último recurso, quando se é responsável direto por não criar condições de apoio à natalidade, que tornam esse “ultimo recurso”, no primeiro dos recursos?
A ligação do Wokismo (identitarismo) neoliberal à esquerda, e da propaganda LGBTQ aos movimentos da esquerda, é culpa também do Partido Democrata e dos partidos social-democratas que deixaram cair o universalismo, passando a apostar na atomização da identidade e na liberalização do género.
Usado como bandeira oportunista, o wokismo atomiza a identidade, atomiza a sociedade. A propaganda woke é usada como bandeira política e sinal de sofisticação e liberdade mental, contudo, o efeito da mesma é o de transmitir à sociedade que a sua “normalidade” está em causa. Podemos questionar se a “normalidade” comporta ou não outras identidades, mas sempre como parte de um conjunto, naturalmente. O sistema apenas deve garantir que, escolha o que se escolha, com naturalidade, se tenha direito ás mesmas condições de vida que os demais. Ao invés, o Partido Democrata deixou apanhar-se pela ideia de que o mais importante é podermos afirmar a nossa identidade e até fazê-lo com afronta e panfletarismo. O que importa é poderes escolher ser trans, homo ou não binário, embora possas ter de viver na rua e sem emprego. Trata-se de uma inversão das prioridades. O que garante a liberdade na escolha da identidade são as condições universais básicas necessárias à sobrevivência. E não o contrário. Defender a primeira, secundarizando as segundas, transmite uma mensagem da subversão das coisas, o que destrói a aparência de normalidade e a ideia de estabilidade social. Provocando a reacção. O Wokismo consiste numa liberalização da identidade e da possibilidade de escolha individual, em desconexão com a sua existência material. Trata-se, por isso, de um individualismo, divisivo, de um idealismo. O Partido Democrata nunca deveria embarcar num idealismo. Ao fazê-lo, permitiu a Trump que se vendesse como o garante da normalidade. A extrema-direita vende-se como garante da normalidade!
A associação de Trump a Putin e à Rússia visava capitalizar uma russofobia que nunca pegou realmente, a não ser nos que se alimentam e vivem do establishment. Ontem na Geórgia, Putin voltou à cena. Supostamente teriam vindo ameaças de bomba da Rússia. Já ninguém acredita nisto e os resultados na Geórgia demonstram uma certa e crescente imunidade popular aos golpes da imprensa corporativa. A verdade é que já poucos acreditam em Zelensky e ainda menos conseguem ouvi-lo falar. Em total desconexão com o sentir popular, acreditaram que colocar Trump contra Zelensky, afectaria Trump. Ao contrário, deu a certeza, a muitos que duvidavam de que Trump acabaria com a guerra, de que esse era o voto certo. Como o povo Ucraniano, também nós, ocidentais, estamos fartos desta guerra.
Toda a imprensa mainstream ocidental, mesmo a alinhada com o Partido Republicano (nos EUA têm de declarar o enviesamento partidário), fazia força por Kamala. Kamala tinha os falcões do seu lado.
Trump usou isso de forma exaustiva. Da pós-verdade do primeiro mandato, ao descrédito total no segundo, Trump venceu a Imprensa Mainstream. Já Elon Musk e o seu Twitter desempenharam aqui um papel fundamental. O Twitter foi a força propagandística online de Trump. Nenhum ser deveria ter tanto poder como Musk, mas um dos responsáveis pela fabricação destes poderes “neofeudais” é o próprio Partido Democrata. Em conclusão: A derrota de Kamala é, assim, a vitória da demagogia política, do messianismo providencialista e do Supremacismo, do qual o Partido Democrata não se libertou e o qual também contribuiu para normalizar, permitindo a Trump ganhar, apesar dele, e da forma exacerbada como o defende. O Partido Democrata nunca o poderia desmontar na sua essência, pois os democratas também defendem a “liderança americana”, a “nação indispensável”, todos os slogans triunfalistas e neocolonialistas da elite estado-unidense, fabricados durante Clinton.
O desfile de apoiantes de Trump sem o mínimo de decência política, intelectual ou ideológica, ou o desfile de apoiantes de Kamala sem a mínima capacidade de transmitir ideias, num e noutro caso, apenas chamados à ribalta em função da sua popularidade, constitui um dos tristes episódios deste decadente espectáculo circense, a que chamam eleições nos EUA. Por fim, Kamala, desta feita, impediu, com a sua desinteligência, o Partido Democrata de capitalizar: os votos relacionados com a limitação do uso de armas, pois apresentou-se como alguém que as usa, falando disso com orgulho, o que não deixará de ter chocado muito boa gente; os votos dos migrantes e descendentes de migrantes, preocupados com a agressão constante, pelos EUA, aos seus países de origem (caso dos Chineses, Iranianos, Cubanos, Árabes e muitos outros); os votos pró-palestinianos e muitos votos das classes trabalhadoras. Falhou em estabelecer uma diferença real para a política de Trump e, assim, ou provocou a desmobilização dos seus apoiantes e, pelos factores que referi, a deslocação de muitos para a outra candidatura. O peso das questões internacionais pode não ser muito grande, mas por elas vemos que pouco distancia Kamala de Trump. O que é inaceitável, em democracia.
Vejam lá o deserto em que estamos enfiados! |
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