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domingo, 31 de maio de 2020

Para podermos respirar

Posted: 30 May 2020 03:36 AM PDT

«”Não consigo respirar”. O grito, como é sabido, não é de nenhuma vítima da Covid-19, mas sim de George Floyd, o cidadão negro, afro-americano, de 46 anos, que foi executado barbaramente por um polícia em Minneapolis. A frase foi repetida dezenas de vezes, em estado de aflição, enquanto o polícia continuava a esmagar com o joelho imperturbável a garganta de Floyd. Ao contrário do que escreveu alguma imprensa, o polícia não se “ajoelhou no seu pescoço”. Asfixiou-o deliberadamente. Floyd não morreu por isso em nenhum “incidente”. Perante os apelos dos transeuntes para que o deixassem respirar e a passividade criminosa dos restantes agentes policiais, que recusaram prestar qualquer assistência a uma pessoa que estava a ser assassinada, George foi linchado por quem tem, supostamente, a missão de proteger os cidadãos.

“Não consigo respirar”. Foi também este o grito, repetido desesperadamente mais de uma dezena de vezes, por Eric Garner, cidadão negro que tinha 43 anos quando foi estrangulado ate à morte, durante mais de 15 segundos, em julho de 2014, por um agente da polícia de Nova Iorque, também ele um homem branco. O caso, seis anos antes numa outra cidade, e que terminou sem qualquer condenação do homicida, tem todas as afinidades possíveis com o de Minneapolis. E mostra como nada parece ter mudado para todos aqueles que não podem sentir-se seguros se a polícia estiver por perto.

Enquanto tantos se mobilizam, um pouco por todo o mundo, para combater um vírus que nos impede de respirar, para que haja ventiladores capazes de salvar vidas, há outras vidas e outros corpos que são tratados como se não tivessem direito a viver. Como se o poder pudesse dispor deles e eliminá-los.

A asfixia dos negros não vem, como se sabe, de agora. Estes episódios estão longe de ser acontecimentos isolados. Muito menos são tristes coincidências. São, de facto, a expressão da política do racismo estrutural, que é brutal nos Estados Unidos, mas não só. Estas histórias, que nos revoltam por dentro, existem porque foram conhecidas, porque alguém filmou e nós as testemunhámos. Imaginem agora quando não há ninguém a registar o que acontece, quando é no silêncio e na impunidade absoluta que estes assassinatos acontecem. Quantos não existem, todos os dias? Quanta violência racista é perpetrada sem que nunca ninguém seja condenado por isso? Sabemos bem, em Portugal também. É preciso lembrar Alfragide, por exemplo?

É por isso que me declaro solidário com quem manifesta a sua indignação e a sua repulsa, que são também minhas, contra esse racismo larvar que atira migrantes e negros e pobres para as periferias das cidades e dos empregos mal pagos, para as vias desvalorizadas do ensino e para os transportes cheios e expostos à doença, para as prisões e para os bairros com poucas condições. Para a violência estrutural às mãos das instituições.

Em Minneapolis, esta revolta é já um potente grito coletivo e multirracial que ocupou as ruas, com gente de várias comunidades e pertenças, com igrejas solidárias a abrirem as suas portas para abrigar os manifestantes durante os ataques de gás lacrimogênio da polícia, com comerciantes a anunciar o seu repúdio pelo que aconteceu, com gestos importantes como o de Joan Gabriel, presidente da Universidade de Minnesota, que anunciou, numa carta pública, o corte de todos os contratos com o Departamento de Polícia de Minneapolis e o cancelamento de qualquer pareceria para a segurança de concertos, palestras ou outros eventos daquela instituição.

Está visto, é certo, que vai ser preciso muito mais luta para que as coisas mudem. Hoje mesmo, Omar Jimenez, um repórter negro da CNN que tem coberto as manifestações naquela cidade, foi detido pela polícia em pleno direto televisivo. As imagens deixam qualquer um perplexo – a mim, pelo menos, deixaram-me boquiaberto. Depois de tudo o que se tem passado, Jimenez é levado pela polícia sem que se perceba porquê: “Por que estou preso?”, pergunta em direto. A polícia divulgou mais tarde a sua explicação: o repórter e a equipa haviam sido detidos por não se terem afastados quando receberam essa ordem. A câmara televisiva, caída no chão, continuou a transmitir as imagens em direto.

Os olhos do mundo estão em Minneapolis, porque Minneapolis é em muitos lugares do mundo. George Floyd é hoje o símbolo das vítimas deste vírus insuportável que torna as nossas sociedades irrespiráveis. O racismo mata, de muitas maneiras. E será só pela nossa luta sem tréguas e sem hesitações que poderá ser erradicado.»

José Soeiro

sábado, 30 de maio de 2020

Ricos, pobres e mal agradecidos

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 30/05/2020)

Miguel Sousa Tavares

Numa sociedade decente, os pobres têm direito a esperar que os impostos sobre os ricos não os deixem cair na miséria nem no abandono: não é por acaso que os dois países mais atingidos pela pandemia, Estados Unidos e Brasil, são dois dos países mais desiguais do mundo, apesar de também serem dois dos países a quem a providência contemplou com maiores riquezas naturais. Mas quando uma sociedade tolera sem problemas que o luxo viva paredes meias com a favela ou que se morra de doença na rua porque os hospitais só tratam quem tiver seguro de saúde, essa sociedade até pode constituir países capazes de mandar homens à Lua ou inventar vacinas contra os vírus, mas jamais conseguirá explicar as estatísticas internas que envergonham qualquer país decente.

Mas numa sociedade decente, o Estado Social — que nós, europeus, devemos a Bismarck —, se, por um lado, tem por obrigação proteger os pobres, os doentes, os desfavorecidos, os desempregados, os indefesos, os velhos, tem, por outro lado, a obrigação de não estimular nem contemporizar com os que se acomodam à situação de assistidos pelos impostos dos outros, sem nada fazer para saírem dessa situação podendo fazê-lo. Porque, aí, o Estado não estará a defender os pobres, mas a perpetuar a sua pobreza, nem a proteger os indefesos, mas os ociosos.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Este princípio transportámo-lo para a fundação da União Europeia, desde os seus alvores, desde a CEE, já lá vão décadas. Com os sucessivos alargamentos da UE, em particular ao sul e a leste, o princípio da solidariedade foi constantemente posto à prova, com altos e baixos, momentos de tensão e momentos de distensão. Nós, que entrámos antes da revoada dos países do leste, pertencemos ao número dos altamente beneficiados com os dinheiros europeus, cujos evidentes benefícios — na parte que soubemos aproveitar e não desperdiçar — só gente de má-fé pode negar. A entrada no espaço europeu permitiu-nos recuperar em anos décadas de atraso, financiando o desenvolvimento económico com capitais a que, de outro modo, não teríamos acesso. E a entrada no espaço do euro, se nos retirou a possibilidade de jogar com o factor cambial a favor das exportações, permitiu-nos, por outro lado, livrar-nos do pesadelo da inflacção e dos juros mortais e dar às nossas empresas acesso a um mercado altamente competitivo. Nem tudo foram vantagens, claro, mas este não é um jogo de ganhar apostando no vermelho e ganhar apostando no preto. Os ingleses estão a descobri-lo à sua custa: quiseram sair da UE porque estavam fartos das regras do clube, mas querem a todo o custo manter uma: o acesso ao mercado comum de 600 milhões de consumidores sem terem de pagar taxas, como país outsider.

O mesmo que os ingleses, querem os quatro países actualmente classificados como “forretas” (adjectivo bem mais adequado do que “frugais”): Áustria, Suécia, Dinamarca e Holanda. Querem que aqueles que “gastam o dinheiro em copos e mulheres”, nas inesquecíveis palavras do ex-ministro das Finanças holandês, se mantenham na Europa e no euro — o que lhes dá muito jeito enquanto consumidores e pouco dano lhes causa enquanto competidores, enfrentando taxas de juro bem mais elevadas, quer para empresas, quer para os Estados. Mas não querem, de forma alguma, ter de gastar um euro a mais a financiar os “vícios” dos “gastadores” — seja a compor as finanças públicas arruinadas pela crise bancária nascida nos EUA em 2008, seja a reconstruir toda uma economia devastada por um vírus planetário nascido em Wuhan, na China.

A Europa, para eles, era, antes de tudo e no fim de tudo, o seu interesse próprio. A Europa, fazendo-se a vontade deles, acabava aqui e agora. Foram dois meses de tensão, de desespero de muitos, de epitáfios já prontos a servir. Mas, no fim, o trio Merkel, Macron, Ursula von der Leyen não quis deixar que a história acabasse assim e colocou em cima da mesa o regresso da UE às suas origens mais nobres. Nada está ainda assente, muitas resistências vão ainda ter de ser ultrapassadas, muitas lágrimas de raiva terão de ser engolidas, mas aquele trio tem muita força. E, se a ele juntarmos a Itália e a Espanha, temos o verdadeiro core business da UE alinhado em tudo fazer para acorrer a quem mais precisa, na hora mais negra dos mais desprotegidos povos europeus. Foi para isto que se fez a UE, para garantir aos povos europeus 70 anos de paz, de prosperidade e de solidariedade, dentro da diversidade. O que Ursula von der Leyen anunciou na quarta-feira no Parlamento Europeu foi muito mais do que um grandioso plano de reconstrução da economia de todo um continente: foi um grito a reunir contra os inimigos da Europa, os extremistas de direita e esquerda, os antidemocratas, os que já estavam prontos a precipitarem-se para os braços de Trump ou de Xi Jinping, os arautos do salve-se quem puder.

Porém, não basta apelar à solidariedade alheia e estender a mão para a receber: é preciso justificá-la, é preciso merecê-la, é preciso saber aproveitá-la e mostrar a quem deu que valeu a pena dar. Essa é a nossa parte. Porque, estranhamente ou talvez não (talvez não, porque metade dos portugueses não paga impostos sobre o rendimento), temos entre nós muita gente que acha que receber dinheiro dos outros é um direito adquirido. Ainda há dias, num desses fóruns matinais das rádios, onde o facilitismo intelectual dos ociosos anda à solta, um ouvinte apresentava a sua solução para a crise económica global (resultado, presumo, de uma noite passada em branco a quebrar os miolos): “Não tem nada que saber”, garantia ele, “desta vez, o FMI tem de despejar dinheiro a fundo perdido sobre os países!” Quem lhe soprará ao ouvido que o dinheiro do FMI é... dos países? Nestes tempos covid, aliás, é de ficar estarrecido ao ver como toda a gente, da esquerda à direita, se esmera num campeonato de ideias de onde injectar mais e mais dinheiro do Estado, de cuja conta final ninguém quer saber nem a proveniência, nem o montante, nem o modo de pagamento. Se um diz “empresta”, o outro diz “a fundo perdido”, se um diz “paga”, o outro diz “nacionaliza”, ao ponto de vermos o libérrimo Pires de Lima, que se indignava contra as “taxas e taxinhas” sobre o turismo lisboeta, a exigir agora que o Estado dê 500 euros a cada família portuguesa para gastarem este verão nos hotéis de Portugal. E com o argumento de que não custa nada, porque pode-se tirar das ajudas europeias.

Justamente. Ainda não tinham passado meia dúzia de horas sobre a apresentação da proposta da Comissão Europeia, ainda estávamos todos a digerir a notícia em que já poucos acreditavam — a de que a UE ia investir 750 mil milhões na recuperação da economia, dos quais dois terços a fundo perdido e o resto na inconfessável e tão desejada mutualização da dívida, e de que a Portugal, em primeiras contas, caberiam 15,5 mil milhões “dados” e 10,8 mil em crédito a taxas de juro “alemãs” —, e Jerónimo de Sousa, órfão de más notícias na frente europeia, tinha o supremo desplante de começar por as comentar assim: “Independentemente do carácter limitado dos montantes...” Como? Como foi que disse? “O carácter limitado dos montantes?” Mais do que os 13 mil milhões que o Governo estimou gastar com o combate à crise e falando só em dinheiro dado? Quanto seria necessário que os contribuintes europeus nos dessem — dessem! — para satisfazer Jerónimo de Sousa? Sim, porque adiante, e completando a frase, acrescentou ele: “É preciso saber quais as condicionantes e imposições que estão associadas, se estarão amarradas aos critérios da UE...” Bem, comecemos por esclarecer: os dinheiros dados não têm condições algumas; o dinheiro que podemos, se quisermos, pedir emprestado a taxas de juro iguais às dos países competitivos, esse obedece aos critérios definidos por Bruxelas para todos, os quais, e muito bem, privilegiam investimentos dirigidos ao digital e às políticas ambientais. Compreendo a desilusão e a desconfiança de Jerónimo de Sousa: trata-se da orientação política definida pelos 27 para o próximo Quadro Comunitário de Apoio e não do Programa Político do PCP, que não obteve vencimento em Bruxelas nem financiamento em Caracas. Tudo isto seria patético, se não fosse sério. Se não fosse enxovalhante morder a mão que dá de comer, até daria vontade de rir ouvir o eurodeputado do PCP João Ferreira afirmar, a propósito deste momento histórico, que “há um forte condicionamento de Portugal pela sua integração na UE”. Ó João Ferreira, só agora é que descobriu isso? Você, que pertence a um partido que está sempre a falar do “colectivo”, só agora é que descobriu que, quando se pertence a uma associação de países, manda a vontade comum e não apenas a nossa? E sabe que isso é vontade livre dos portugueses? E sabe que agora, com esta crise, só ainda não fomos à bancarrota e não temos exércitos de desempregados a vaguear pelas ruas porque o Estado pode arriscar-se a sustentar a economia com o dinheiro que sabe que vai receber dessa malfadada UE de que você é eurodeputado? E, já agora, como é que se sente e senta no Parlamento Europeu alguém que é contra a União Europeia? Pobres, sim; mal agradecidos, não. Há uma diferença entre reclamar justiça ou perder a vergonha.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Os ignorados e os invisíveis

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 30/05/2020)

Pacheco Pereira

A pandemia, que poderia ter tido um efeito de revelação da realidade, acaba por não o ter, não por causa do excesso de visibilidade de alguns, mas pelo seu exacto contrário, a invisibilidade de outros. Porque, em Portugal, em que qualquer manifestação de preconceito rácico ou étnico é de imediato condenada, é-se indiferente aos preconceitos sociais. Na verdade, há muita comunicação dos segundos com os primeiros, algum do racismo é muito mais resultado da força dos preconceitos sociais do que de uma recusa da raça ou da etnicidade, mas isso não convém ao chapéu do anti-racismo.

Os preconceitos sociais já cá estavam antes, e vão continuar depois. São uma marca de uma sociedade muito desigual, com uma forte inveja social, com muita pobreza e exclusão e com uma cultura cívica muito débil. Tudo isto se reflecte na força de um olhar social, que torna uns intocáveis e outros, alvo de comportamentos depreciativos, de desprezo, de ridículo ou, pura e simplesmente, de não-existência, são ignorados. A comunicação social, que acha que está acima destas coisas, está profundamente impregnada de preconceitos sociais, que vêm da sociedade e que não são sentidos como sendo preconceitos, mas como um pano de fundo inconsciente que faz valorizações e menorizações, sem se ter sequer consciência do que se está a fazer.

Não é preciso ir mais longe do que ver a forma como são tratados criminosos ou acusados de crimes de colarinho branco, com diferenças culturais e sociais sobre o modo como são apresentados, mesmo quando se enunciam os seus crimes. Ricardo Salgado nunca será tratado como Sócrates, Vara ou Lima, que têm em comum terem vindo “de baixo” e terem subido à custa da política e da corrupção. Aliás, esta é uma velha tradição de diferenciação social em que, por exemplo, o O Independente era exímio. Não tocava nos facilitadores que sabiam comer à mesa, e vestir-se à inglesa, mas atacava com desprezo social os políticos de “meia branca”, que vinham da província e que não tinham os pergaminhos daquilo a que o jornal chamava, de forma, aliás, errada e ignorante, a “velha riqueza”. Passemos adiante, para os dias da peste.

Os dias da pandemia mostraram, mais uma vez, a força dos preconceitos sociais no modo como duas comunidades atingidas pela crise económica são tratadas: a da cultura e a dos feirantes e itinerantes. Os artistas, trabalhadores da cultura, músicos, actores, “criativos”, etc., são um sector em que predomina o trabalho precário, e foram de imediato atingidos pelo confinamento e pelo encerramento dos espectáculos. Mas, sem contestar a dureza da crise, têm várias coisas a seu favor: uma é a grande visibilidade na comunicação social, um tratamento muito favorável (capas, variadas fotografias, artigos, etc., por exemplo só no PÚBLICO), que funciona como forma de pressão sobre o poder político, que tende a responder a quem tem mais voz mediática.

Acresce que é um sector fortemente subsidiado por Governos e autarquias, em que não há qualquer escrutínio, porque este é difícil para certas actividades criativas, mas também porque a pequenez do meio favorece o silenciamento das críticas por parte dos pares. Se apenas uma pequena parte das críticas que são feitas em privado, em conversas, fosse pública, ver-se-ia como é feito um julgamento muito duro das qualidades criativas e do valor de muitas “obras” e “artistas”, mesmo descontando a inveja do sucesso alheio, que também é muita. Acresce o facto de muitos serem jovens e, queira-se ou não, os jovens têm sempre uma vantagem e mais oportunidades do que as pessoas mais velhas. Mas a cultura é hoje um sector económico e mesmo industrial, e pode e deve ser tratado sem o mito da intangibilidade da criação, que é também uma expressão corporativa.

Em contraste, o sector dos feirantes e itinerantes, constituído, na maioria dos casos, por pessoas mais velhas e famílias inteiras, viu-se, de um dia para o outro, sem modo de vida. São os feirantes propriamente ditos, mas também os que fazem a vida com diversões de Verão, que transportam de terra em terra carrosséis, carrinhos de feira, circos, e vendedores itinerantes, todos dependendo de ajuntamentos e de “feiras”. Não é uma vida fácil e há nela muita pobreza.

Fizeram manifestações e houve algumas notícias sobre eles, mas nem de perto nem de longe com o mesmo tratamento e destaque que tiveram as manifestações da cultura e, acima de tudo, sem qualquer empatia. Muito são nómadas, alguns são ciganos, o que, numa sociedade sedentária, significa serem tratados como “feios, porcos e maus”, em contraste com o mundo glamoroso da cultura. O seu meio e os seus clientes, pela província fora, são também gente de poucas posses, que não compra a roupa em lojas finas, e que não come em restaurantes da moda, mas no meio de mesas de tábuas e bancos de madeira, ou ao lado das carrinhas, no meio do barulho e da poeira. Milhares de portugueses vivem assim a sua vida de trabalho, muito mais necessitados, com mais bocas para comer e menos visibilidade. São ignorados, socialmente invisíveis, por isso mais maltratados.

Poderia escrever o jornal inteiro com exemplos do papel dos preconceitos sociais na exclusão social. É por isso que, mesmo no meio das dificuldades, a crise não toca a todos. Não, toca mais a uns do que a outros. E nós ajudamos a que seja assim.

Jamaica, Azambuja, Banco Alimentar: os pobres da covid-19 e a nossa hipocrisia

Posted: 29 May 2020 03:32 AM PDT

«Um dos meus livros de economia preferidos chama-se “The Economics of Poverty” e foi escrito por Martin Ravallion, um estudioso da pobreza e antigo diretor do departamento de investigação do Banco Mundial. Ravallion começa logo nas primeiras páginas com a pergunta “Porque existe pobreza?” e explica que existe uma longa tradição intelectual de culpar as mulheres e homens pobres pela sua condição, atribuindo-lhes estereótipos como o de serem preguiçosos, irracionais, incapazes de gerir a sua vida. Esta velha tradição intelectual de separar o mundo entre “nós” e “eles” reflete-se na organização da sociedade e da economia e, infelizmente, uma parte destes estereótipos sobreviveram até ao dia de hoje no nosso subconsciente coletivo. Vem isto a propósito da crise causada pela pandemia. Raramente na história recente a separação entre os privilegiados e os destituídos foi tão crua.

Comecemos pelo confinamento que, quando nasce, não é para todos. O surto nas plataformas logísticas da Azambuja ou a fábrica de conservas em Peniche, que enviou esta semana 200 funcionários para casa devido a um caso positivo, mostram que nem toda a gente pode proteger-se do risco de contágio. Desconhecemos que medidas de segurança foram implementadas nestas fábricas e armazéns. Não sabemos quantas pessoas esconderam sintomas por medo de perder uma parte do pouco rendimento que têm. Mas sabemos que não conseguimos coletivamente proteger estes trabalhadores mal pagos e com poucos direitos laborais, que carregam nos ombros o que de mais essencial flui na economia, como a comida para os supermercados.

Como uma desigualdade nunca vem só, a do rendimento mistura-se nesta história com a étnica e de país de origem. Segundo os jornais, muitas pessoas que trabalham nas empresas afetadas na Azambuja são imigrantes jovens, que se deslocam para o trabalho de comboio, a partir de bairros periféricos da Área Metropolitana de Lisboa. Os hostels de Lisboa também concentravam imigrantes, provavelmente com trabalhos precários e mal pagos, a viver em espaços sobrelotados no limite da indignidade. Agora temos um surto no Bairro da Jamaica, onde as autoridades se preparam para encerrar os cafés para evitar que o contágio se generalize. Aparentemente, uma festa no início de maio estará na origem dos contágios. É que isto de aguentar o confinamento depende muito da qualidade do sofá, da velocidade da internet e da variedade do que há no frigorífico. Para os jovens do Bairro da Jamaica e do vizinho Santa Marta é menos suportável do que para a burguesia do teletrabalho onde me incluo.

Serão estes exemplos fruto do acaso? Em Portugal não temos como quantificar estes fenómenos, mas no Reino Unido e Estados Unidos, onde há informação étnica e disponibilidade de dados, há vários estudos que mostram como as minorias étnicas são mais afetadas pela covid-19. No dia 8 de maio, o The Lancet publicou o artigo “Evidence mounts on the disproportionate effect of covid-19 on ethnic minorities”. O título é sugestivo, os números também. No Reino Unido, a taxa de letalidade entre as pessoas de ascendência africana é 3,5 vezes maior do que a dos brancos britânicos. Já os caribenhos e paquistaneses morrem 1,7 e 2,7 vezes mais do que os brancos. Em Nova Iorque, um estudo mostra que as mortes entre os negros são de 92,3 por 100 mil habitantes e entre hispânicos e latinos de 74,3, o que contrasta com menos de 50 por 100 mil para brancos e asiáticos.

O The Lancet afirma que a diferença na prevalência de doenças crónicas entre estas comunidades e os brancos não é suficientemente elevada para explicar por si só as discrepâncias na mortalidade, e explica que estas pessoas “trabalham muitas vezes em empregos que os colocam em risco, como de atendimento ao público e transporte de mercadorias ou entregas, e é menos provável que tenham empregos que lhes permitam fazer teletrabalho”. Qualquer semelhança com os trabalhadores da Azambuja e de Peniche ou os residentes dos hostels não é mera coincidência.

Lembrei-me ontem de Martin Ravallion a propósito do esquema de apoio de emergência aos artistas da Câmara de Lisboa, que exigia em troca até 30 horas de trabalho. A capa do livro de Ravallion é uma fotografia de uma “workhouse” para pobres da Inglaterra vitoriana, uma estrutura de acolhimento e trabalho típica das políticas de combate à pobreza daquele período. Como nos explica Ravallion, encontramos nos dias de hoje heranças deste passado negro nos apoios ao rendimento com componentes “workfare”, que é como quem diz: obrigação de trabalho em troca de transferências. Ao ator e produtor Filipe Crawford, por exemplo, foi-lhe exigida tal contrapartida em troca de 154,69 euros de apoio mensal. A vereadora da cultura da CML, Catarina Vaz Pinto, comunicou que a câmara decidiu revogar esta norma, mas aproveitou para insistir que isto não configura uma “prestação de serviços” mas antes uma “contrapartida do apoio concedido”. Descubra as diferenças.

A ideia de que os pobres são “diferentes” reconfortou as elites ao longo da história na sua inação para erradicar a pobreza. As “workhouses” da Inglaterra vitoriana eram instituições assistencialistas e moralizadoras, que alimentavam – mal e pouco – as pessoas pobres e procuravam corrigir os seus supostos maus hábitos. Durante o fim de semana, Marcelo Rebelo de Sousa visitou a sede do Banco Alimentar contra a Fome e apelou aos donativos de comida, alegando que há 400 mil pessoas com fome, mais cerca de 20 mil do que as habituais 380 mil servidas habitualmente pelas instituições de solidariedade apoiadas pelo Banco Alimentar. Segundo o Presidente, “não é preciso gostar do Banco Alimentar, da líder ou dos voluntários. É preciso pensar nos que estão mal e que vão estar assim mais um mês, dois, três, mais um ano, o tempo que durar a crise”.

A mim, parece-me que é preciso pensar que espécie de sociedade é esta que perante pessoas que podem ficar com fome durante mais de um ano se contenta com oferecer uns pacotes de arroz para as campanhas do Banco Alimentar. Este cheirinho feudal dá-me náuseas.»

Susana Peralta

Reino Unido dá a mão a Hong Kong

De  Ricardo Figueira  •  Últimas notícias: 29/05/2020 - 08:54

Hong Kong

Hong Kong   -   Direitos de autor Kin Cheung/Copyright 2020 The Associated Press. All rights reserved

O governo britânico estende o tapete a cerca de 300 mil cidadãos de Hong Kong, em resposta ao apertar do cerco ao território por parte da China, com a aprovação de uma lei que reduz a autonomia e na prática põe fim ao princípio "um país, dois sistemas".

Os cidadãos da antiga colónia que ainda detêm o passaporte do Ultramar britânico podem agora residir no Reino Unido por 12 meses renováveis e é-lhes facilitado o acesso à cidadania britânica. Isto se a China não voltar atrás com a lei.

Hong Kong foi um território britânico até 1997. O último governador, Chris Patten, não poupa as palavras ao descrever as ações da China e diz que se trata de bullying: "Esta lei vai permitir que o Ministério da Segurança do Estado, o equivalente chinês do KGB, possa operar em Hong Kong. Este organismo tem uma longa reputação de coerção e de tortura. Se for para Hong Kong, não é para vender comida chinesa", disse.

Se o "KGB chinês" for para Hong Kong, não é para vender comida chinesa.

Chris Patten

Ex-governador de Hong Kong

A nova lei aumenta o controlo de Pequim sobre o território, ao fim de 11 meses de manifestações contra a ingerência chinesa em Hong Kong. As manifestações, interrompidas pela epidemia de Covid-19, foram retomadas com esta lei. As relações da China com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha deterioraram-se.

Os ativistas pró-democracia dizem que a nova lei vai deitar por terra o alto grau de autonomia que lhes foi prometido quando o território passou do Reino Unido para as mãos da China, com o princípio "um país, dois sistemas" e pode levar à supres são de qualquer atividade política em Hong Kong. Para Pequim, o que se passa aqui é um assunto interno da China e nenhum outro país tem o direito de intervir.