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sexta-feira, 24 de julho de 2020

O dia em que Rui Rio quer deixar António Costa ir "trabalhar"

Posted: 23 Jul 2020 06:29 AM PDT

«Parece um dia bom para a democracia portuguesa, dizia eu. Mas não é um dia para a celebrar, porque entre os tais 32 projetos há um enorme passo atrás: é a proposta que fará com que o primeiro-ministro deixe de ir prestar contas aos deputados de 15 em 15 dias, passando a ter presença obrigatória apenas de dois em dois meses. Facto: a proposta que abriu caminho é do PSD, maior partido da oposição. Facto: Rui Rio justificou a mudança explicando ao Expresso que é preciso "deixar o primeiro-ministro trabalhar".

Há dois anos, uma investigadora da London School os Economics publicou um raro trabalho onde comparou o modo como os chefes de governo de 32 países prestavam contas aos respetivos Parlamentos. O exercício é desafiante: se assumirmos como bom o argumento de que é preciso "deixar o primeiro-ministro trabalhar", então ficamos a saber que no Reino Unido Boris Johnson mal consegue trabalhar, porque os deputados em Westminster têm quatro mecanismos diferentes de o chamar a responder: um debate semanal (repito, semanal), perguntas de emergência, declarações políticas sobre temas de atualidade (com direito a perguntas da oposição) e até três idas obrigatórias a uma comissão que zela pela transparência.

O Reino Unido não é caso único: em Itália, os deputados também fazem "perder tempo" a Giuseppe Conte sistematicamente, com quatro mecanismos de controlo; no Luxemburgo e Irlanda há três. Na Bélgica, Noruega, Nova Zelândia, Espanha, Islândia e Áustria são dois. Em Portugal, nesta perspetiva, António Costa tinha o privilégio de poder "trabalhar" bastante mais: só uma vez tinha de ir prestar contas ao Parlamento. Podia parecer pouco, mas era de 15 em 15 dias. A partir de hoje, se a proposta que junta PSD e PS for aprovada, será menos penoso: terá de ir responder aos deputados apenas quatro, cinco vezes por ano, muito abaixo de Reino Unido, Irlanda, República Checa e Dinamarca, onde todas as semanas têm lá lugar marcado. E até ficará com mais tempo do que o chefe de Governo da Roménia, que é obrigado a prestar lá contas apenas uma vez por mês.»

David Dinis

Europa: um marco histórico?

Posted: 23 Jul 2020 03:29 AM PDT

«1. Foi uma maratona longa, turbulenta, acintosa, mas ao cabo de cinco dias lá conseguiram o consenso indispensável para lavrar o comunicado da reunião do Conselho Europeu com suficiente ambiguidade para que cada um pudesse reclamar, no final, a sua fatia de sucesso.

Diga-se de passagem que sempre tem sido assim. De facto, avançando aos solavancos, o projeto europeu foi traçando o seu caminho até aqui, esclarecendo na prática subsequente as imprecisões proclamatórias solenemente assumidas. A mutualização da dívida, apesar de todos os travões e armadilhas congeminadas pelo grupo de países liderados pela Holanda, representa um feito inédito e constitui, sem dúvida, um marco histórico.

2. Contudo, sabemos bem que as divergências exibidas ao longo dessa atribulada reunião são mais profundas e antigas. São expressão da mesma desconfiança e dos mesmos egoísmos que impuseram as políticas de austeridade aos "preguiçosos" do Sul, a indiferença cínica perante as vagas de refugiados e imigrantes, a complacência obscena que aceita a impunidade das violações graves dos princípios democráticos, da separação dos poderes e do Estado de direito, na Hungria ou na Polónia. Testemunho também da espantosa ausência de um mínimo de solidariedade que tivesse garantido, enfim, uma resposta pronta ao pedido urgente de socorro da Itália, em fevereiro, quando o primeiro impacto da pandemia atingiu o continente europeu.

3. Esta já não é a Europa a que aderimos com entusiasmo em 1985, na expectativa de consolidar o regime democrático emergente, de blindar a proteção dos direitos fundamentais e romper definitivamente com o país "orgulhosamente só" - mesquinho, trauliteiro e paroquial - da era salazarista dos "pobrezinhos mas honrados!". Este já não é o tempo cavaquista do "bom aluno" de mão estendida, ávido dos fundos europeus, pronto a substituir os tratores por carros todo-o-terreno e a mandar para as urtigas toda a frota pesqueira, no afã de se transformar rapidamente numa estância exótica de turismo e num espaço qualificado de prestação de serviços.

4. Era um passo inevitável e a hiena financeira dos Países Baixos estava bem consciente disso! Não aceitar a partilha de responsabilidades e condenar metade da Europa ao agravamento incomportável das respetivas "dívidas soberanas" significava precipitar a desagregação imediata de toda a construção europeia. Um risco logo sinalizado pelo eterno regulador: os mercados financeiros internacionais. Foi um "marco histórico"? Sim. Mais propriamente, o "canto do cisne". Outra Europa há de renascer desta terra de ninguém.»

Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Deixem-nos trabalhar

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/07/2020)

Daniel Oliveira

(Uma das funções dos Parlamentos é escrutinar os actos dos Governos. Quando um Parlamento vota a favor de cercear esse escrutínio, só me ocorre dizer que é um Parlamento de eunucos que reconhece a sua falta de virilidade. Um pântano em toda a sua plenitude. Nem o Governo quer prestar contas nem a oposição quer pedi-las. Estão bem um para o outro, mas o País merecia melhor sorte e protagonistas de maior estatura democrática. Salvem-se as poucas dezenas de deputados do PS e do PSD que bateram o pé a esta golpada, além dos deputados de todos os outros partidos, da esquerda à direita.

Tenhamos por isso alguma esperança de que nem tudo esteja perdido. Talvez. Tenhamos esperança.

Estátua de Sal, 23/07/2020)


Ainda me lembro do tempo em que Cavaco Silva punha os pés no Parlamento quando o rei fazia anos. Também se orgulhava de não ler jornais e chamava ao Tribunal de Contas “força de bloqueio”. Ninguém podia dizer que era um homem incoerente: o seu desprezo pelas as instituições democráticas que o pudessem escrutinar era transversal. Infelizmente, Rui Rio tem muitos traços de Cavaco Silva. E António Costa, que governará em crise e com minoria, aproveitou a deixa e agradeceu a sua proposta de acabar com os debates quinzenais. Até porque ele próprio sempre foi contra eles.

Uma das muitas frases que Cavaco Silva gravou na pedra da história foi o “deixem-me trabalhar”. O significado era o mesmo de todas as outras coisas que costumava dizer: quem governa trabalha, quem escrutina faz perder tempo. Foi esta a expressão que Rui Rio repetiu: “O primeiro-ministro não pode passar a vida em debates, tem de trabalhar”. Rui Rio é um Cavaco de Silva sem poder que empresta a sua arrogância política a terceiros. O fenómeno é tão estranho que chega a ser interessante. Provavelmente, é para nos dizer ao que vem.

Além do desrespeito pela democracia, o “deixem-me trabalhar” faz eco de um sentimento muito popular, que vê a política como um mero exercício técnico. Um sentimento que é pai da tecnocracia e filho desse embuste retórico que é a meritocracia. E que muitos jornalistas, justamente indignados com esta decisão, sempre acarinham. O parlamento não serve para escolher os “mais competentes” ou os “melhores”. É bom que sejam competentes e bons, mas a sua primeira função, ao contrário do que acontece com cargos executivos, é de representação. Antes de ser competentes ou bons têm de ser representativos do que é o país. O seu trabalho é esse. E o primeiro-ministro, que só o é porque os deputados o aceitam, verga-se perante aqueles que ocupam a função mais digna da democracia representativa: os que representam o povo. Nunca perde tempo quando a eles responde porque é ao país que responde. Quem não acredita nisto não acredita na democracia representativa.

Os que olham para a política como um mero exercício técnico veem a palavra como uma coisa fútil. “Eles falam, falam, mas não os vejo fazer nada”. Mas, como sabem, “parlamento” vem de “parler” (“falar”, em francês). A palavra é o primeiro trabalho dos deputados. E todos os políticos estão a ela subjugados. A palavra constrói, destrói, faz revoluções e reformas. Porque é por ela que comunicamos e definimos projetos comuns, coisa de que trata a democracia. A palavra é trabalho e todo o político que se furta ela é calão.

Um dos argumentos que vou ouvindo contra os debates quinzenais é a futilidade dos temas que ali se trazem. Que aquele é um momento de “soundbytes”. Se a qualidade do debate é fraca façam por melhorar. Se a palavra é fútil deem-lhe densidade. Mas mesmo os “soudbytes” são política, porque a política tem sempre um lado performativo. Podem ser bons ou maus, com conteúdo ou sem ele. Mas a política não trata apenas dos grandes projetos para o país. A política trata de tudo o que se trata fora dela, seja grande ou pequeno, estrutural ou passageiro. O que não se discutir ali discutir-se-á noutro lado. Nas redes sociais ou nos programas da manhã.

Uma das funções do parlamento é institucionalizar o conflito. E um dos maiores riscos deste tempo é a desinstitucionalização desse conflito. Quem se queixa do “soundbyte” no parlamento é o primeiro a usá-lo no Twitter. Acharão que não faz mal, porque não estão dentro da “casa da democracia”. É o oposto.

Os políticos não deixam de ser políticos por fazerem o combate no Twitter. Apenas dispensam as regras do parlamento, com a sua liturgia, para poderem lutar sem luvas. Não julguem que ao retirarem o conflito quotidiano do parlamento dignificam o debate político. Apenas atiram esse debate para outros lados, com menos dignidade. O parlamento pode ficar impecável, a política é que cai mais para a lama.

Uma das funções desta decisão também parece ser a de tirar tempo de antena a novos fenómenos políticos, como o Chega ou a Iniciativa Liberal. E isso talvez ajude a explicar porque nasceu da cabeça do líder de oposição, que é quem está mais pressionado, à direita, por estes fenómenos. Mais uma vez, um equivoco. É nas redes sociais que este tipo de organizações políticas se sente mais à vontade. O Parlamento apenas lhes dá a justa legitimidade democrática. Mas é nas redes que podem simular uma dimensão que não têm. Na Assembleia, valem mesmo os votos que tiveram. Mais uma vez, é sempre melhor institucionalizar o que existe. Se a política é medíocre, o parlamento será medíocre. Não passará a ser melhor se tirarem de lá a política.

Cuidado com o glorioso Momento Hamilton

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 21/07/2020)

Entre os muitos eflúvios festejantes que antecipadamente foram glorificando o acordo desta madrugada, destaca-se uma curiosa fraude histórica: é a comparação desta sofrida cimeira, em que alguns governantes se insultaram soezmente, Orban contra Rutte, Rutte contra Conte e Sanchez e o mais que nem saberemos, com um dos momentos fundacionais dos Estados Unidos da América como estado moderno, o acordo entre Hamilton e Jefferson, jurados inimigos, para a nova ordem financeira em que se escorou a autoridade nacional. Vai ser o “momento Hamilton”, esconjuraram alguns entusiastas europeus duzentos e trinta anos depois, garantindo ao longo das últimas semanas que os líderes se alçariam a uma grandiosidade histórica e sugerindo, com a delicadeza de que foram capazes, que assim se forja um Estado. Tudo nesta analogia é uma pantomina.

O acordo que Alexander Hamilton, secretário do Tesouro da administração Washington, estabeleceu em 1790 com Thomas Jefferson, secretário de Estado, determinou que a federação assumia a dívida dos estados e emitia dívida nacional, aplicando impostos para a suportar (uma tarifa sobre importações, mais tarde um controverso imposto sobre o whisky), criando assim um orçamento federal. Fora dado o primeiro passo essencial para a criação de uma autoridade política centralizada, através de um entendimento entre as duas alas de um governo dividido, em que Hamilton, o porta-voz da direita, era favorável a uma aliança com os britânicos, enquanto Jefferson defendia um acordo com os revolucionários franceses. O compromisso, sob pressão da finança emergente, incluía ainda uma cedência de monumentais consequências aos estados do sul, a localização da capital na fronteira da Virgínia. Setenta anos mais tarde, o compromisso foi posto em causa pela guerra civil, que viria a ser o fator determinante para a criação do Estado nacional. Sem a vitória de Lincoln e dos seu exércitos, o momento hamiltoniano teria sido um detalhe anedótico. Foram os canhões que impuseram a federação.

A analogia dos federalistas europeus é por isso deslocada, se não mesmo perigosa. Primeiro, porque raros são os que ainda se atrevem a falar de criação de “nação europeia”, quando ficou evidente a acrimónia entre governos e a vontade arrogante dos “frugais” em submeterem outros países a regras de controlo segundo a sua agenda radicalmente liberal, incluindo a tutela das suas políticas de pensões e lei laboral, como Rutte não deixou que a Espanha e a Itália esquecessem. Transformar a UE num estado unificado é um objetivo que já ninguém leva a sério, nem sequer para efeitos de propaganda. O pseudo-“momento Hamilton” desta madrugada não fundou nada, limitou-se a buscar a sobrevivência. Em segundo lugar, a promessa de um “momento Hamilton” não é agradável, é antes uma ameaça sinistra: aquele compromisso frágil só se resolveu muito mais tarde com a força das armas. Procurar ancorar a imagem de uma decisão numa grandiosa analogia histórica é um procedimento muito comum em política, mas nem por isso adequado ou revelador, pois não se adivinha o que nos promete a comparação, se um orçamento centralizado e unificador, que não há, nem vai haver e, aliás, já ninguém propõe, se uma futura guerra europeia à semelhança da Guerra Civil norte-americana, que preferimos evitar e que os analogistas assegurarão sempre ser impossível.

O certo é que a UE está a reduzir-se e não a ampliar-se, e não é só pelo Brexit, um acontecimento de gigantesca implicação. Nesta aflição do Covid, conseguiu um feito, uma verba extraordinária e única para a resposta à pandemia, fazendo-o por via de dívida contraída pela Comissão, uma estratégia até agora recusada. Essa mudança é reveladora de capacidade de adaptação e sobrevivência, que não pode ser ignorada, tal como anteriormente fora demonstrado pelo BCE na sobrevivência do euro.

Sem o mercado único, as forças económicas dominantes na Europa não se sustentam e, por isso, devem evitar uma crise divisória. Mas é conveniente não esquecer que os subsídios podem vir a responder somente a um terço do efeito recessivo que estamos a sofrer e que temos muito mais amargura pela frente. A austeridade não fugiu e foram aceites contrapartidas pesadas, como a redução do orçamento regular, estabilizando a ideia de que os vencedores do mercado único ditam as regras, que podem impor o regresso às regras do Pacto de Estabilidade e que podem vigiar os programas nacionais convocando-os para um exame em Conselho. Tal como foi aceite a impunidade de Orban e dos chefes de extrema-direita nos países que governam com mão de ferro. Há nisto uma vontade de impor humilhações políticas a outros estados, para efeitos das eleições holandesas e outras, ou de contorcer as regras segundo as conveniências, o que agora nos é apresentada como o triunfo da sensatez. Era preferível, em todo caso, que essa escolha não fosse encenada como um “momento Hamilton”, o que demonstra tanto ignorância como cinismo.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Ao Pingo Doce sabe bem pagar tão pouco

Posted: 21 Jul 2020 02:52 AM PDT

«Um acordo europeu para medidas de urgência de resposta à crise (se existir) não é um ato de "solidariedade" e quem assim o apresenta apenas alimenta uma caricatura: transferências do grupo "frugal", liderado pela Holanda, para os "esbanjadores", que Portugal integra.

A ideia da "solidariedade" é errada, em primeiro lugar, porque a UE tem capacidade para financiar um ambicioso plano de recuperação através do BCE, sem exigir qualquer outra transferência entre países.

Em segundo lugar, porque o que os países europeus precisam é de instrumentos para lidar com a crise. A integração europeia eliminou e/ou centralizou esses poderes (como a emissão de moeda) e agora os "frugais" sequestraram-nos. Aos países que necessitem de financiamento, querem impor um programa liberal-autoritário, mesmo se essa não foi a escolha democrática dos seus povos. Uma espécie de servidão por dívida, já não à troika mas agora à Holanda (o que não parece desagradar a direita em Portugal, a julgar pela palavras de Rui Rio). Não deixa de ser irónico que o projeto europeu seja posto em xeque por governos da família socialista, mas esse sempre foi o prognóstico de quem, à esquerda, criticou a UE: uma Europa que, uma e outra vez, falha aos seus povos está condenada ao fracasso.

A ideia de um acordo europeu como ato de solidariedade é, finalmente, errada porque a "frugalidade" que tornaria os Países Baixos moralmente superiores é obtida à custa dos impostos que deveriam ser cobrados em outros países europeus. Todos os anos, o paraíso fiscal holandês cobra 10 mil milhões de impostos sobre os lucros que são desviados dos restantes países da UE. Um regime que nenhum país bloqueia, devido à livre circulação de capitais na UE, e que não é alterado porque os Países Baixos têm o poder de vetar legislação fiscal a nível europeu. Se considerarmos que a contribuição líquida dos Países Baixos para o orçamento europeu é de 4,9 mil milhões, o nosso parceiro "frugal" do centro da Europa é afinal financiado anualmente em 5 mil milhões de euros por estados como Portugal, que veem essa receita desaparecer das suas contas públicas.

Esta hipocrisia é a mesma que, ao longo dos tempos, serviu as maiores empresas portuguesas: ao mesmo tempo que exigiam em Portugal leis e regras à medida dos seus interesses, não hesitaram em registar as suas sociedades em Amsterdão. Entre elas estão todas as maiores da Bolsa portuguesa. Em período de crise, o que se pede a essas empresas não é solidariedade. É apenas decência: mudem as vossas sedes para Portugal e paguem cá os vossos impostos.»

Mariana Mortágua