Translate

domingo, 28 de abril de 2024

 

O 25 de Abril “divide”? Em 2024, divide…

estatuadesal

28 de Abril de

(Pacheco Pereira, in Público, 27/04/2024)

Cartazes artesanais usados na manifestação do 25 de Abril de 2024

O 25 de Abril “divide”? Em 2024, divide… e foi por isso que mobilizou muito mais gente do que o costume.


O domínio da direita nos órgãos de informação está a fazer mais uma mistificação, que depois circula com sucesso, não só porque não tem contraditório, mas também porque o espírito de rebanho é muito poderoso. Esta mistificação é despolitizar a parte das comemorações que é mais difícil de “engolir” à direita, que são as manifestações “populares”, com muitas centenas de milhares de pessoas que foram para a rua, muito mais do que é costume, não para comemorar os 50 anos, mas para contrariar aquilo que parece ser a tendência política-eleitoral dos nossos dias: a ascensão do Chega em primeiro lugar e, em segundo, o Governo da AD. Esse foi o grande motivador e, goste-se ou não, não é possível analisar o que se passou sem ter em conta que uma sensação de perda e risco está a mobilizar muita gente contra aquilo que parece ser o statu quo político.

Se este tipo de mobilização se reflecte eleitoralmente nas europeias, é prematuro prever, porque depende de muitos factores. Na verdade, por muito que o facto de centenas de milhares virem para a rua e não se limitarem a uma oposição cómoda seja relevante, este tipo de mobilização pode não ter projecção eleitoral significativa. Mas significa que, com excepção do populismo do Chega, não existe nenhum impulso mobilizador nos outros sectores de direita. Não há grande empatia pela governação da AD, nenhum entusiasmo pela mudança governativa em si, e quer o PSD quer muito menos a sua "versão actual dos Verdes do PCP", o CDS, estão longe de ter a dinâmica que o Chega revelou. Mesmo à direita, as pessoas interiorizaram o impasse político gerado pelo facto de o partido indesejável, o Chega, ser quem decide, e sem o Chega a AD parece ter tido uma vitória de Pirro.

É por isso que a esquerda teve a sua primeira manifestação de força e um grande dia, porque era evidente que na rua era a esquerda e as pessoas que não querem a direita no poder que fizeram a manifestação.

Sim, o “25 de Abril é de todos”, mas na realidade em 2024 não foi, porque a manifestação respondeu a um receio sobre a liberdade e a democracia que a actual situação política parece justificar.

Pensar que foi outra coisa, e que o que de mais significativo aconteceu na manifestação foi haver famílias com criancinhas, adolescentes, “jovens” na acepção actual – havia igualmente muitos velhos, –, esquece deliberadamente o que diziam os milhares de cartazes artesanais que representavam vozes individuais inorgânicas. Esses cartazes são já mais do que a presença na manifestação, são vontade de dizer coisas com voz própria, com a individualidade de quem os fez em casa num bocado de cartão e com um marcador e que depois se erguem na rua. E as mensagens eram inequívocas, e não se pode falar da manifestação sem as ter em conta.

A manifestação dita “popular” do 25 de Abril tem uma história à esquerda. Sempre foi tida como um contraponto às comemorações oficiais, e umas vezes contra o PS, noutras contra o PSD, conforme quem esteja no governo, sempre representou uma atitude crítica mais à esquerda. Veja-se quem tem sido a comissão organizadora das manifestações, o papel da Associação 25 de Abril, que a abre com as suas chaimites, e partidos como o PCP e o Bloco, a CGTP, e a miríade de pequenas organizações de extrema-esquerda que desfilam.

No PS, para além da ala esquerda do partido cujas personalidades figuram entre os organizadores, é a JS que tem tido o principal contingente. É verdade que quer a JSD quer a IL participaram no fim da marcha oficial, e fazem bem, porque não só têm pleno direito de se manifestar no 25 de Abril, como é correcto do ponto de vista da saudação à liberdade que lhes permitiu a organização e a acção. Mas as poucas centenas de pessoas que com eles desfilaram não alteram a composição global e o sentido político que em 2024 teve a manifestação.

É igualmente verdade que a manifestação tem um ambiente de festa e que já foi noutros anos, com menos gente, mais agressiva no plano político. Mas uma parte dessa festa tem um sentido comunitário, muitas pessoas só se encontram nesta altura e os encontros que se puderam testemunhar eram de pertença e de afirmação de que naquela luta estavam juntos. Como se fosse um exército e uns e outros mostravam que estavam no seu posto. Muitos se encontravam, família, grupos, amigos, saudando-se com palavras de ordem do género “25 de Abril sempre” e o outro lado dizia “fascismo nunca mais”. Não é mesmo a direita que lá está.

Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril na Avenida dos Aliados, no Porto

A mistificação parte do princípio de que em 2024 há unanimidade à volta do 25 de Abril, o que não é verdade. O modo como à direita, radical, se tem usado como contraponto ao 25 de Abril o 25 de Novembro é objectivamente contra o 25 de Abril, até porque o 25 de Novembro da direita é uma falsificação histórica. Não me parece que o objectivo de criar uma comissão oficial para celebrar o 25 de Novembro seja para homenagear o grande lutador pela democracia em 1975 no plano civil, Mário Soares, ou o partido mais relevante nessa luta, o PS, e os militares do Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro ou Ramalho Eanes e o Presidente Costa Gomes, tudo gente que a direita detesta. E limitar essas comemorações a Jaime Neves, que actuou sob ordens, é um reducionismo absurdo, assim como esquecer o papel decisivo de Melo Antunes, que somou à derrota da esquerda militar no dia 25 a vitória sobre a contra-revolução, recusando no dia 26 ilegalizar o PCP.

Aliás, seria interessante ver como seria a dimensão de uma manifestação “popular” comemorando o 25 de Novembro, e compará-la com a de há dias.

O autor é colunista do PÚBLICO

quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

Com Biden ou Trump, EUA estão condenados à violência e ao absurdo

estatuadesal

24 de Abril de

(David Brooks, in Diálogos do Sul, 23/04/2024)

A situação política nos EUA seria até engraçada se os personagens que mais falam impropérios não estivessem disputando o cargo mais poderoso do mundo.


Parte obrigatória da profissão de jornalista é ter que ver e escutar os políticos mais poderosos da história do país, uma tarefa que pode ser bastante tediosa em um cenário político onde quase nunca há surpresas, já que tudo está bem ensaiado e coreografado. Mas há dias em que há algo inédito, como quando, por exemplo, aparecem nos cenários uns canibais. Sim, canibais.

O presidente Biden, como costumam fazer os políticos para “se conectar” com as pessoas, estava falando de um conto de sua vida pessoal durante um evento de sua campanha eleitoral em sua cidade natal de Scranton, Pensilvânia, onde foi ao monumento comemorativo aos homens desse povo que lutaram na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a guerra “boa”.

Encontrou os nomes de seus tios, incluindo seu “tio Bosie”, cujo avião, contou, foi derrubado perto de Nova Guiné e “nunca encontraram o corpo” porque foi “derrubado em uma área onde havia muitos canibais”, dando a entender que o tio do presidente foi, como o disse diplomaticamente, um colega jornalista, “comida” de uns canibais.

Mas a história não acabou aí. Pouco depois foi revelada a informação de que a história fantástica era justamente isso, uma fantasia: arquivos do Pentágono informam que o avião teve problemas mecânicos, caiu no mar, e que o tio [de Biden] não era um piloto, mas um passageiro, em um voo que não era parte de nenhuma missão de combate. Mentia ou [Biden] acreditava nisso? Da mesma forma, ambas as possibilidades são preocupantes.

Nesses mesmos dias, o rei indisputável da fantasia política estadunidense, Trump, teve que aguentar uma semana no incômodo banco dos réus em um tribunal criminal em Manhattan, onde se viu como um menino mal-comportado, castigado por um professor e onde, pela primeira vez em sua vida adulta, teve que aceitar ordens de calar a boca e ficar quieto.

Mas ao sair a cada dia, como um “valentão”, se declara vítima e mártir, e acusa todos que se atrevem a criticá-lo e até julgá-lo, de fazerem parte de um complô da “esquerda radical” encabeçada por Biden, para descarrilar sua candidatura (surpreende cada vez que se é informado que se vive num país socialista com um governo “radical”. Mas pelo menos ele não mencionou os canibais como parte da trama).

Enquanto isso, outras figuras da cúpula política competem para ser as mais cômicas, mas dentro de um filme de terror, entre elas: o senador democrata e ex-juiz político do hemisfério, Robert Menendez. Este está contemplando culpar sua esposa para defender-se em seu julgamento em que é acusado de aceitar barras de ouro, uma Mercedes e um montão de dinheiro de estrangeiros em troca de favores políticos; e aí nesse Capitólio continua sentado um legislador acusado de pagar a menores de idade por sexo. Outros dizem que Deus selecionou Trump (o candidato continua vendendo Bíblias autografadas por ele) entre vários mais que defendem neonazistas, entre outros.

Tudo isto seria meio engraçado se não fosse o fato de que estes estão entre os encarregados de conduzir a política do país mais poderoso do mundo. Todos eles compartilham responsabilidade pela violência no exterior e no interior deste país.

Biden e a maioria dos democratas, junto com suas contrapartes republicanas, acabam de aprovar milhões a mais em assistência militar para enviar mais bombas e munições a Israel e para continuar a guerra entre Rússia e Ucrânia, e provocar um pouquinho mais a China.

Ao mesmo tempo, este 20 de abril marcou o 25º aniversário de Columbine, o tiroteio massivo em uma escola preparatória em Colorado, onde morreram 12 estudantes e um professor. Desde então, foram registrados mais de 400 tiroteios em escolas e hoje, as armas de fogo são a causa principal de morte de jovens estadunidenses.

Talvez se for verdade isso dos canibais, às vezes parece que este país está se comendo a si mesmo.

“Nunca foi mais imprevisível nosso futuro, nunca dependemos tanto das forças políticas que não podem ser confiadas a se apegar às regras do senso comum e interesse próprio – forças que são vistas como pura loucura” – Hannah Arendt, 1951.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados. Revisão: Carolina Ferreira.