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sexta-feira, 19 de abril de 2024

 

  A ruína moral do Ocidente

estatuadesal

19 de Abril de

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/04/2024)

Certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de “legítima defesa”, Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram “o povo eleito”?


A

1 de Abril — parece mentira mas não é —, Israel consumou um feito jamais visto, que me recorde, na história diplomático-militar dos tempos modernos: atacou uma instalação diplomática de um outro país na capital de um país terceiro, matando oito funcionários dessa instalação através de um míssil disparado de um avião da sua Força Aérea. Morreram nesse ataque ao Consulado-Geral do Irão em Damasco, na Síria, um comandante do Quds, a guarda revolucionária iraniana, e sete outros agentes da organização, e o edifício ficou destruído. Normalmente ou quase sempre, tais acções de execução de agentes inimigos no estrangeiro são levadas a cabo pelo Kídon, uma secção da Mossad, que as executa após receber luz verde do próprio primeiro-ministro israelita. Mas são feitas de forma tão discreta quanto possível, através de execuções a tiro, por meio de carros armadilhados ou por envenenamento, com cuidado para evitar vítimas civis — a maior parte das vezes com sucesso, mas outras vezes fracassando e até tomando inocentes por alvo. Mas agora tudo foi feito de forma espectacular e ostensiva e nem sequer visando um alvo particularmente importante. Tratou-se, para lá de qualquer dúvida legítima, de um acto de guerra e de um acto de pirataria internacional sem precedentes. Todavia, chamado a condenar o ataque de Israel no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o bloco ocidental opôs-se a qualquer condenação. Imaginem o que aconteceria se Putin tivesse disparado um míssil contra o Consulado da Ucrânia em Varsóvia...

A 14 de Abril, o Irão ripostou, que era aquilo que Israel obviamente esperava e desejava da sua acção em Damasco — e daí tê-la feito de forma tão ostensiva. Nada fazendo, o regime iraniano via ameaçada a sua fraca popularidade interna e desautorizada externamente a sua aura de único país islâmico que mantém um conflito insolúvel com Israel. Mas também não podia arriscar nada que desenca­deasse uma resposta em grande escala de Telavive e que trouxesse os americanos de volta, sem rodeios, para o apoio total a Israel. Sabendo que Washington já tinha enviado um porta-aviões para a zona, diversos caças e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o Irão fez uma coisa insólita: avisou previamente os Estados Unidos do ataque, mas garantindo que ele apenas visaria instalações militares e seria mais simbólico e para salvar a face do que verdadeiramente ameaçador. Fez o mesmo aviso aos países árabes sunitas vizinhos de Israel e, depois, com as televisões do mundo inteiro a seguirem em directo, despachou uns 400 drones que demoraram seis horas a tentar chegar ao destino, umas dezenas de mísseis de cruzeiro e alguns mísseis balísticos. Como resultado, escavou um buraco numa base área do Neguev e feriu uma jovem beduína numa zona sem sirenes nem protecção antiaérea, cuja casa as autoridades israelitas aproveitaram para mandar destruir. Após o que Teerão declarou a operação terminada, com êxito.

Foi um festim para Israel e os seus “aliados”. Imediatamente, Damasco ficou esquecido, e o que passou a vigorar em todos os noticiários e declarações, como acto primeiro do casus belli, foi o “ataque em grande escala do Irão a Israel”. Há dezenas de anos que Israel usa esta estratégia política em relação aos palestinianos: promove uma nova ocupação de terras, destruição de casas ou repressão sangrenta num posto de controlo e depois, perante uma tímida resposta, invoca um direito de legítima defesa perante um ataque de que terá sido alvo. Fez agora o mesmo com o Irão, que, não sabendo como reagir, optou perla opção mais estúpida. Depois, o Iron Dome proporcionou um show televisivo em directo, um ensaio práctico muito mais útil do que os realizados frente aos pobres rockets do Hamas e um pretexto para Biden pedir ao Congresso mais dinheiro para Israel, visto que o dinheiro dos contribuintes (e eleitores) americanos estava a ser bem empregue. Em terceiro lugar, permitiu a Israel experimentar a doce sensação de gozar da solidariedade amedrontada de países como a Jordânia, a Arábia Saudita ou os Emiratos, num regresso ao espírito dos Acordos de Abraão, estilhaçados pelo sanguinário ataque do Hamas em 7 de Outubro de 2023 e o subsequente genocídio palestiniano em Gaza. E, finalmente, se dúvidas porventura ainda houvesse em alguns ingénuos espíritos, permitiu a Israel convocar, além do esperado e indefectível apoio militar e político dos Estados Unidos, o apoio igualmente empenhado dos outros suspeitos do costume: França, Inglaterra, Alemanha, eternos campeões dos direitos humanos, grandes vendedores de armas a Israel, inescapáveis cúmplices morais do genocídio de Gaza.

No momento em que as opiniões públicas nestes países começavam a mobilizar-se para exigir dos seus Governos o fim da venda de armas a Israel, o ataque do Irão veio mesmo a calhar para abafar o assunto, fazer esquecer o massacre em Gaza ou outros temas inconvenientes, como o assassínio de sete civis estrangeiros da carrinha da organização humanitária World Kitchen. Como que por magia, Israel passou de agressor a agredido, de carrasco a vítima. E aqueles, os grandes defensores dos direitos humanos, que em seis meses não conseguiram encontrar razões suficientes para forçar Israel a parar com o morticínio de palestinianos, nem sequer para a sua condenação, agora, sim, estão revoltados com o ataque dos inofensivos drones dos aiatolas e a ofensa aos israelitas. Eles que, em seis meses, não conseguiram encontrar quaisquer razões para castigar Israel ou os seus governantes com sanções que prejudicariam os seus comuns negócios, agora, sim, vão estudar sanções ao Irão. (Mas não se admirem se, por debaixo da mesa, os mesmos, os mesmíssimos que vão aprovar as sanções, venham a montar um sistema para as contornar e até para poderem vender armas aos aiatolas, porque tudo isto é demasiado complicado para a nossa vã inteligência). E, juram eles, tentam segurar a mão de Israel, na sua justa e terrível represália (perdão, legítima defesa) sobre o Irão. Mas, no limite e além do palavreado hipócrita, deixarão que Israel faça o que quiser, como sempre. Porque confiam que a Rússia não intervirá, e assim o “louco bom”, Netanyahu, pode ser deixado à solta, porque o “louco mau”, Putin, tem a Ucrânia com que se ocupar: mesmo a calhar. E se, mesmo assim, aquilo explodir numa guerra regional e a Europa ficar sem petróleo, como em 73, paciência, dos fracos não reza a história. E teremos sempre o amigo americano para nos ajudar, como fez com o gás, substituindo-se aos russos, depois de fazer explodir os Nordstream e duplicar o preço que os europeus pagam pelo gás.

A 14 de Abril, Israel e os seus aliados não apenas detectaram no ar e destruíram 99% dos engenhos de morte enviados do Irão — também detectaram previamente e destruíram 99% das opiniões ou notícias capazes de contrariarem a versão única de mais uma vitória dos bons sobre os maus, da derrota de um ataque não provocado à “única democracia do Médio Oriente”. Uma democracia que, em seis meses, liquidou, nas suas casas, nas ruas, nas escolas, nas mesquitas e nos hospitais, 35 mil civis, dos quais 16 mil crianças, e em cujo governo há um ministro que propôs resolver o problema dos 2,3 milhões de palestinianos encerrados em Gaza com uma bomba termonuclear e outro que, mais simplesmente, jurou que “os palestinianos não existem”. Se não tivéssemos visto as imagens de quarteirões inteiros em Gaza destruídos com bombas de uma tonelada fornecidas a Israel pelos defensores dos direitos humanos, dos hospitais transformados em campos de batalha, das crianças com olhares esgazeados de fome, ainda poderíamos acreditar, talvez, que isto seria uma guerra da liberdade contra o terrorismo. Se não conhecêssemos a história, poderíamos acreditar que eram os justos a triunfar sobre os usurpadores da “Terra Santa”. E certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de “legítima defesa”, Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram “o povo eleito”? Qual é, afinal, o critério moral que nos distingue dos outros? Perguntem às crianças de Gaza, perguntem à rosa de Hiroxima.

Eu fiz jornalismo durante mais de 40 anos. E em todas essas décadas, seguindo a política nacional e internacional, tive muitas vezes de me conter para não confundir a hipocrisia com a própria natureza da política. Mas sempre acreditei que, no fim, seria a independência e a liberdade do jornalismo a prevenir e a evitar que isso acontecesse.

Porém, e como já o escrevi a propósito da guerra na Ucrânia, e agora o volto a escrever a propósito da guerra de Israel em Gaza, nunca tinha visto o jornalismo tão submisso à narrativa oficial, tão disposto a abdicar do contraditório e tão avesso a fazer as perguntas ocultas, as perguntas essenciais.

Isso, mais ainda do que esta miserável geração de líderes políticos, é o que mais me faz descrer no triunfo das democracias, enquanto resultado de regimes escolhidos por povos informados e livres. Oxalá eu possa estar enganado!

"Você obteve uma vitória. Aproveite a vitória”

estatuadesal

18 de Abril de

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 17/04/2024)

Israel terá de incorporar no seu cálculo estratégico o facto do Irão de hoje não ser o mesmo Irão de há duas décadas. Fica a esperança de o conselho de Biden a Netanyahu prevalecer.


Disse o presidente Joe Biden ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu no rescaldo da operação militar iraniana em território israelita, em 13-14 de abril, procurando dissuadir Israel de retaliar. Afinal Israel intercetou 99% dos drones e mísseis lançados pelo Irão. Simultaneamente, Biden foi dizendo a Netanyahu que os EUA não apoiarão uma resposta israelita a Teerão.

Telavive tem procurado insistentemente envolver os EUA numa derradeira campanha militar contra o Irão. O ataque à soberania iraniana através da ação militar contra as instalações diplomáticas de Teerão em Damasco tinha esse objetivo. Telavive sabia que estava a pisar uma linha vermelha intolerável à luz do direito internacional para qualquer Estado; sabia o que estava a fazer. Foi uma ação deliberada, esperando que uma resposta iraniana demolidora viesse colocar os EUA a seu lado num ataque massivo ao Irão. Parece que os planos de Telavive não se irão concretizar.

A resposta militar iraniana foi calibrada tendo o Irão informado previamente os EUA e os Estados vizinhos da região da realização da operação, com cerca de 72 horas de antecedência, procurando assim obviar baixas civis. O Irão pretendia atacar os alvos militares que considerava terem estado envolvidos no ataque israelita de 1 de abril, em Damasco: as bases aéreas de Nevatim e de Ramon, ambas no sul do país, e os radares e meios de defesa aérea israelita nos montes Golã, o que conseguiu com sucesso.

Os danos provocados a Israel foram considerados pelo New York Times “relativamente limitados”. A comunicação social israelita manifestou-se no mesmo sentido, pairando no ar o desincentivo a uma retaliação. Baixas civis volumosas dariam a Israel um excelente pretexto para retaliar. Não foi o caso. Telavive não foi encostada à parede como foi Teerão com o ataque do dia 1 de abril. A resposta iraniana não pisou linhas vermelhas. Washington ajudou Telavive a deter o ataque iraniano, mas parece que não a ajudará a atacar o Irão. A concretizar-se, essa falta de apoio representará uma derrota para Netanyahu.

Houve quem pensasse, entre eles eu, que com o ataque a Israel, o Irão tinha caído na armadilha montada por Telavive. Sabe-se hoje, que Teerão geriu com destreza a escalada da violência, mostrando a sua força sem ir demasiado longe na resposta, não dando pretexto para a uma reação militar israelita ou mesmo americana. Embora os EUA neguem, sabemos que foram informados da operação pelo Irão, assim como Israel através da Arábia Saudita e dos Emiratos Árabes Unidos, que lhes transmitiram os planos de ataque para que pudessem proteger o seu espaço aéreo.

Não interessa a Washington nem a Teerão uma guerra generalizada e sem controlo no Médio Oriente. Farão o que está ao seu alcance para a evitarem. Os EUA receiam que Israel possa não estar a ter em conta as potenciais consequências negativas de uma resposta. Afinal, os EUA têm cerca de 30 mil soldados relativamente vulneráveis na região, em particular na Síria e no Iraque, que não ficarão incólumes no caso de uma ação militar norte-americana contra Teerão. Se tiver de escolher entre os seus interesses e os de Telavive, Washington não terá dúvidas na preferência.

As chancelarias europeias tão silenciosas quando as instalações iranianas em Damasco foram atacadas saíram da hibernação para condenarem o Irão que, em última análise, atuava em legítima defesa ao abrigo do Art.º 51, da Carta das Nações Unidas, algo que não fizeram quando as instalações consulares em Damasco foram destruídas.

Em matéria de cinismo, Telavive não ficou atrás das chancelarias europeias. Depois dos discursos inflamados sobre a inutilidade das Nações Unidas e dos ataques às suas agências em Gaza, Israel veio pedir uma reunião do Conselho de Segurança para considerar a Guarda Revolucionária Islâmica uma organização terrorista. De notar que o Conselho de Segurança se recusou a reunir depois do ataque israelita de 1 de abril.

A narrativa das 99% interceções é útil para convencer a opinião pública da não necessidade de retaliar, sobretudo a israelita. Os danos foram limitados e as baixas em vidas humanas quase nulas, como tal não se justifica uma resposta. Tanto a imprensa israelita como a norte-americana afinaram diapasões e coordenaram o alinhamento das mensagens. Não obstante essa narrativa ganhadora, os altos-comandos israelitas deverão estar tremendamente preocupados.

Sabem que a operação iraniana não foi “fogo de artifício”. A bem escalonada defesa aérea israelita não foi capaz de deter os misseis hipersónicos lançados por Teerão. Não terá sido muito confortável ver mísseis iranianos sobrevoar o Knesset tornando evidentes as vulnerabilidades da melhor defesa aérea do mundo. Perante as imagens em circulação na internet, Telavive não teve outro remédio se não reconhecer os danos procurando, no entanto, minimizá-los. Só uma das bases aéreas foi atingida por sete mísseis hipersónicos.

Independentemente do que se disser, o Irão demonstrou capacidade para contornar o poderoso e avançado sistema antimíssil israelita. Os mísseis hipersónicos iranianos foram capazes de nulificar o avançado radar AN/TPY-2 de banda X norte-americano estacionado em Har Qeren, no deserto do Negev, com a missão de detetar os lançamentos de mísseis iranianos e transmitir os dados às baterias israelitas Arrow e David’s Sling, e às americanas THAAD que tinham por missão proteger locais sensíveis, incluindo a cidade de Dimona onde se encontram as instalações nucleares israelitas e as bases aéreas de Nevatim e Ramon, de onde terão partido as aeronaves que atacaram o consulado iraniano. Há evidência de que os mísseis balísticos hipersónicos iranianos não tiveram praticamente oposição. Não há provas de que um único tivesse sido abatido.

Parece incontornável ter de reconhecer que um sistema de radares de vigilância funcionando em proveito de defesas antimísseis extremamente sofisticadas, reforçadas pela ação do Reino Unido, França e Jordânia foram impotentes face ao ataque iraniano, não conseguindo proteger os locais acima mencionados. A isto acresce o facto de, segundo várias fontes, o ataque iraniano ter custado cerca de 30 milhões de dólares, enquanto o conjunto das interceções teria, segundo algumas estimativas, rondado os 1,3 mil milhões de dólares.

Israel estará a planear um ataque “doloroso” ao Irão, mas sem provocar vítimas evitando que se desencadeie uma guerra regional. Benjamin Netanyahu terá pedido às Forças de Defesa de Israel a elaboração de uma lista de alvos aos quais os EUA não levantariam objeções. O gabinete de guerra pretende encontrar uma forma de retaliação que não seja bloqueada pelos Estados Unidos.

Apesar das pressões de muitos líderes ocidentais, a resposta israelita parece inevitável, não se sabendo quando, como e onde irá ocorrer. O formato dessa resposta não é claro. Numa conversa telefónica com o secretário norte-americano da defesa, o ministro da defesa israelita Yoav Gallant disse: “não há outra alternativa senão ripostar contra o Irão… Israel não pode permitir que sejam disparados mísseis balísticos contra o seu território sem uma resposta”.

Por sua vez, o Irão declarou que responderá “dentro de segundos” a uma retaliação de Israel. O presidente da comissão parlamentar de segurança do parlamento iraniano Abolfazl Amouei, declarou que o Irão está preparado para usar “uma arma que nunca usou antes” se Israel prosseguir com o seu planeado ataque retaliatório.

Independentemente do que possa vir a acontecer, a ação militar iraniana em território israelita não tem precedentes e já fez história. Pela primeira vez, o Irão levou a cabo um ataque em solo israelita a partir do seu território, em vez de recorrer apenas aos seus proxies para atacar Israel.

A resposta de Telavive tem mais a ver com o precedente criado pela ação iraniana, pela afirmação de Teerão como potência regional, inspiradora dos seus seguidores, algo que Telavive não quer aceitar, do que propriamente com os danos causados. Israel terá de incorporar no seu cálculo estratégico o facto do Irão de hoje não ser o mesmo Irão de há duas décadas.

Esperemos que o conselho de Biden a Netanyahu prevaleça em detrimento da opinião daqueles que no gabinete de guerra em Telavive defendem um ataque demolidor e que se recusam a aceitar as novas realidades estratégicas. Fiquemos com a esperança uma vez que não temos certezas.