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domingo, 28 de abril de 2024

 

O 25 de Abril “divide”? Em 2024, divide…

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28 de Abril de

(Pacheco Pereira, in Público, 27/04/2024)

Cartazes artesanais usados na manifestação do 25 de Abril de 2024

O 25 de Abril “divide”? Em 2024, divide… e foi por isso que mobilizou muito mais gente do que o costume.


O domínio da direita nos órgãos de informação está a fazer mais uma mistificação, que depois circula com sucesso, não só porque não tem contraditório, mas também porque o espírito de rebanho é muito poderoso. Esta mistificação é despolitizar a parte das comemorações que é mais difícil de “engolir” à direita, que são as manifestações “populares”, com muitas centenas de milhares de pessoas que foram para a rua, muito mais do que é costume, não para comemorar os 50 anos, mas para contrariar aquilo que parece ser a tendência política-eleitoral dos nossos dias: a ascensão do Chega em primeiro lugar e, em segundo, o Governo da AD. Esse foi o grande motivador e, goste-se ou não, não é possível analisar o que se passou sem ter em conta que uma sensação de perda e risco está a mobilizar muita gente contra aquilo que parece ser o statu quo político.

Se este tipo de mobilização se reflecte eleitoralmente nas europeias, é prematuro prever, porque depende de muitos factores. Na verdade, por muito que o facto de centenas de milhares virem para a rua e não se limitarem a uma oposição cómoda seja relevante, este tipo de mobilização pode não ter projecção eleitoral significativa. Mas significa que, com excepção do populismo do Chega, não existe nenhum impulso mobilizador nos outros sectores de direita. Não há grande empatia pela governação da AD, nenhum entusiasmo pela mudança governativa em si, e quer o PSD quer muito menos a sua "versão actual dos Verdes do PCP", o CDS, estão longe de ter a dinâmica que o Chega revelou. Mesmo à direita, as pessoas interiorizaram o impasse político gerado pelo facto de o partido indesejável, o Chega, ser quem decide, e sem o Chega a AD parece ter tido uma vitória de Pirro.

É por isso que a esquerda teve a sua primeira manifestação de força e um grande dia, porque era evidente que na rua era a esquerda e as pessoas que não querem a direita no poder que fizeram a manifestação.

Sim, o “25 de Abril é de todos”, mas na realidade em 2024 não foi, porque a manifestação respondeu a um receio sobre a liberdade e a democracia que a actual situação política parece justificar.

Pensar que foi outra coisa, e que o que de mais significativo aconteceu na manifestação foi haver famílias com criancinhas, adolescentes, “jovens” na acepção actual – havia igualmente muitos velhos, –, esquece deliberadamente o que diziam os milhares de cartazes artesanais que representavam vozes individuais inorgânicas. Esses cartazes são já mais do que a presença na manifestação, são vontade de dizer coisas com voz própria, com a individualidade de quem os fez em casa num bocado de cartão e com um marcador e que depois se erguem na rua. E as mensagens eram inequívocas, e não se pode falar da manifestação sem as ter em conta.

A manifestação dita “popular” do 25 de Abril tem uma história à esquerda. Sempre foi tida como um contraponto às comemorações oficiais, e umas vezes contra o PS, noutras contra o PSD, conforme quem esteja no governo, sempre representou uma atitude crítica mais à esquerda. Veja-se quem tem sido a comissão organizadora das manifestações, o papel da Associação 25 de Abril, que a abre com as suas chaimites, e partidos como o PCP e o Bloco, a CGTP, e a miríade de pequenas organizações de extrema-esquerda que desfilam.

No PS, para além da ala esquerda do partido cujas personalidades figuram entre os organizadores, é a JS que tem tido o principal contingente. É verdade que quer a JSD quer a IL participaram no fim da marcha oficial, e fazem bem, porque não só têm pleno direito de se manifestar no 25 de Abril, como é correcto do ponto de vista da saudação à liberdade que lhes permitiu a organização e a acção. Mas as poucas centenas de pessoas que com eles desfilaram não alteram a composição global e o sentido político que em 2024 teve a manifestação.

É igualmente verdade que a manifestação tem um ambiente de festa e que já foi noutros anos, com menos gente, mais agressiva no plano político. Mas uma parte dessa festa tem um sentido comunitário, muitas pessoas só se encontram nesta altura e os encontros que se puderam testemunhar eram de pertença e de afirmação de que naquela luta estavam juntos. Como se fosse um exército e uns e outros mostravam que estavam no seu posto. Muitos se encontravam, família, grupos, amigos, saudando-se com palavras de ordem do género “25 de Abril sempre” e o outro lado dizia “fascismo nunca mais”. Não é mesmo a direita que lá está.

Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril na Avenida dos Aliados, no Porto

A mistificação parte do princípio de que em 2024 há unanimidade à volta do 25 de Abril, o que não é verdade. O modo como à direita, radical, se tem usado como contraponto ao 25 de Abril o 25 de Novembro é objectivamente contra o 25 de Abril, até porque o 25 de Novembro da direita é uma falsificação histórica. Não me parece que o objectivo de criar uma comissão oficial para celebrar o 25 de Novembro seja para homenagear o grande lutador pela democracia em 1975 no plano civil, Mário Soares, ou o partido mais relevante nessa luta, o PS, e os militares do Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro ou Ramalho Eanes e o Presidente Costa Gomes, tudo gente que a direita detesta. E limitar essas comemorações a Jaime Neves, que actuou sob ordens, é um reducionismo absurdo, assim como esquecer o papel decisivo de Melo Antunes, que somou à derrota da esquerda militar no dia 25 a vitória sobre a contra-revolução, recusando no dia 26 ilegalizar o PCP.

Aliás, seria interessante ver como seria a dimensão de uma manifestação “popular” comemorando o 25 de Novembro, e compará-la com a de há dias.

O autor é colunista do PÚBLICO

quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

Com Biden ou Trump, EUA estão condenados à violência e ao absurdo

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24 de Abril de

(David Brooks, in Diálogos do Sul, 23/04/2024)

A situação política nos EUA seria até engraçada se os personagens que mais falam impropérios não estivessem disputando o cargo mais poderoso do mundo.


Parte obrigatória da profissão de jornalista é ter que ver e escutar os políticos mais poderosos da história do país, uma tarefa que pode ser bastante tediosa em um cenário político onde quase nunca há surpresas, já que tudo está bem ensaiado e coreografado. Mas há dias em que há algo inédito, como quando, por exemplo, aparecem nos cenários uns canibais. Sim, canibais.

O presidente Biden, como costumam fazer os políticos para “se conectar” com as pessoas, estava falando de um conto de sua vida pessoal durante um evento de sua campanha eleitoral em sua cidade natal de Scranton, Pensilvânia, onde foi ao monumento comemorativo aos homens desse povo que lutaram na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a guerra “boa”.

Encontrou os nomes de seus tios, incluindo seu “tio Bosie”, cujo avião, contou, foi derrubado perto de Nova Guiné e “nunca encontraram o corpo” porque foi “derrubado em uma área onde havia muitos canibais”, dando a entender que o tio do presidente foi, como o disse diplomaticamente, um colega jornalista, “comida” de uns canibais.

Mas a história não acabou aí. Pouco depois foi revelada a informação de que a história fantástica era justamente isso, uma fantasia: arquivos do Pentágono informam que o avião teve problemas mecânicos, caiu no mar, e que o tio [de Biden] não era um piloto, mas um passageiro, em um voo que não era parte de nenhuma missão de combate. Mentia ou [Biden] acreditava nisso? Da mesma forma, ambas as possibilidades são preocupantes.

Nesses mesmos dias, o rei indisputável da fantasia política estadunidense, Trump, teve que aguentar uma semana no incômodo banco dos réus em um tribunal criminal em Manhattan, onde se viu como um menino mal-comportado, castigado por um professor e onde, pela primeira vez em sua vida adulta, teve que aceitar ordens de calar a boca e ficar quieto.

Mas ao sair a cada dia, como um “valentão”, se declara vítima e mártir, e acusa todos que se atrevem a criticá-lo e até julgá-lo, de fazerem parte de um complô da “esquerda radical” encabeçada por Biden, para descarrilar sua candidatura (surpreende cada vez que se é informado que se vive num país socialista com um governo “radical”. Mas pelo menos ele não mencionou os canibais como parte da trama).

Enquanto isso, outras figuras da cúpula política competem para ser as mais cômicas, mas dentro de um filme de terror, entre elas: o senador democrata e ex-juiz político do hemisfério, Robert Menendez. Este está contemplando culpar sua esposa para defender-se em seu julgamento em que é acusado de aceitar barras de ouro, uma Mercedes e um montão de dinheiro de estrangeiros em troca de favores políticos; e aí nesse Capitólio continua sentado um legislador acusado de pagar a menores de idade por sexo. Outros dizem que Deus selecionou Trump (o candidato continua vendendo Bíblias autografadas por ele) entre vários mais que defendem neonazistas, entre outros.

Tudo isto seria meio engraçado se não fosse o fato de que estes estão entre os encarregados de conduzir a política do país mais poderoso do mundo. Todos eles compartilham responsabilidade pela violência no exterior e no interior deste país.

Biden e a maioria dos democratas, junto com suas contrapartes republicanas, acabam de aprovar milhões a mais em assistência militar para enviar mais bombas e munições a Israel e para continuar a guerra entre Rússia e Ucrânia, e provocar um pouquinho mais a China.

Ao mesmo tempo, este 20 de abril marcou o 25º aniversário de Columbine, o tiroteio massivo em uma escola preparatória em Colorado, onde morreram 12 estudantes e um professor. Desde então, foram registrados mais de 400 tiroteios em escolas e hoje, as armas de fogo são a causa principal de morte de jovens estadunidenses.

Talvez se for verdade isso dos canibais, às vezes parece que este país está se comendo a si mesmo.

“Nunca foi mais imprevisível nosso futuro, nunca dependemos tanto das forças políticas que não podem ser confiadas a se apegar às regras do senso comum e interesse próprio – forças que são vistas como pura loucura” – Hannah Arendt, 1951.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados. Revisão: Carolina Ferreira.

terça-feira, 23 de abril de 2024

 

A síndroma Tolstoïevsky

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22 de Abril de

(Slobodan Despot, in Despotica, 8/8/2014, trad. José Catarino Soares)

2017. Slobodan Despot, durante a apresentação do seu romance, “Le Rayon Bleu

Nota Introdutória do tradutor

O autor deste texto, Slobodan Despot, é um escritor e editor sérvio por nascimento, suíço por adopção e francês pelo idioma que escolheu para se exprimir. O texto “A síndroma de Tolstoïevsky” foi escrito em 2014, mas parece ter sido escrito hoje, em 2024, tão grande continua a ser a sua actualidade. O seu alvo é a russofobia, da qual tivemos e continuamos a ter mil e uma manifestações em todo o “Ocidente alargado” (Portugal incluído). Despot desenterra e expõe as raízes dessa fobia: a ignorância crassa e a sobranceria ensimesmada relativamente a um país imenso, que é também uma civilização de primeira grandeza. “Tolstoïevsky” não é uma palavra inventada por Despot. É o resultado risível da confusão frequente entre Tolstoi e Dostoïevsky, verbalmente fundidos numa só pessoa — uma confusão sintomática da ignorância crassa e sobranceria ensimesmada com que o “Ocidente”, tanto o estreito como o alargado, olha para a Rússia.

O problema da abordagem ocidental da Rússia não é tanto a falta de vontade de compreender, mas sim uma vontade excessiva de não saber nada.


Esta é a nação que produziu Pushkin e Guerra e Paz, Nijinsky e O Lago dos Cisnes; que tem uma das mais ricas tradições pictóricas do mundo; que classificou os elementos da natureza; que foi a primeira a enviar um homem para o espaço (e a última a fazê-lo); que produziu pazadas de génios no cinema, na poesia, na arquitectura, na teologia, na ciência; que derrotou Napoleão e Hitler; que publica, de longe, os melhores manuais de física, matemática e química; que conseguiu encontrar um modus vivendi secular e pacífico, baseado no respeito e na compreensão mútuos, com os seus tártaros e os seus inúmeros muçulmanos, Casares, budistas, Chukchis, Buriates e Tungúsicos; que construiu o caminho-de-ferro mais longo do mundo e que ainda o utiliza (ao contrário dos EUA, onde os lendários carris acabam comidos pela ferrugem); que explorou e cartografou meticulosamente as terras, os costumes, as etnias e as línguas do espaço euro-asiático; que constrói temíveis aviões de combate e submarinos gigantescos; que reconstruiu uma classe média em menos de quinze anos após a terceira mundialização de Gorbachev e Ieltsin; esta imensa nação, que governa um sexto da superfície terrestre, é subitamente tratada, de um dia para o outro, como um bando de brutamontes que precisam de se livrar do seu caricato e sangrento ditador antes de serem educados para servir a “verdadeira” civilização!

O Ocidente recorre ao mesmo odioso teatro de fantoches em todas as crises, de Ivan, o Terrível, a Putin-“Putler”, passando pelo czar Paulo, pela Guerra da Crimeia, pelo pobre e trágico Nicolau II e até pela URSS, onde todos os êxitos eram ditos “soviéticos” e todos os malogros denegridos como “russos”.

As nações servis, que dão aos americanos um crédito ilimitado pela sua traição e banditismo “porque nos libertaram em 1945”, não têm uma palavra ou um pensamento de gratidão pela nação que mais contribuiu para derrotar a hidra nazi... e que pagou o preço mais alto por isso. Os seus representantes eleitos são tratados como intrusos, o seu presidente é caricaturado com um ódio obsessivo e a liberdade de circulação e de comércio dos seus cidadãos, cientistas, académicos e homens de negócios é suspensa por capricho de obscuras comissões europeias, de cujos membros os povos que eles dizem representar não conhecem sequer o nome, nem por que razão ele ou ela tem nelas assento, em vez de outro qualquer fantoche das multinacionais.

Mas tudo isto não é nada. Faz parte da ordem das coisas. O Ocidente e a Rússia estão simplesmente a prolongar ad infinitum o conflito Roma-Bizâncio, alargando-o aos continentes vizinhos e até ao espaço interplanetário. Esta é a verdadeira e única guerra de civilizações. Bárbara como o saque de Constantinopla, apocalíptica como a sua queda, antiga e insidiosa como os cismas teológicos que encobrem pérfidas tomadas de poder. Escondido nas dobras do tempo, mas pronto para atacar e morder como uma armadilha para lobos. É a única armadilha, aliás, que o império ocidental não montou sozinho e não consegue desarmar. (No pressuposto de que a ameaça islâmica é apenas o produto das manobras coloniais anglo-saxónicas, da ganância do petróleo e das acções de serviços estatais ocupados a cultivar espantalhos para assustar os seus próprios súbditos, abatendo-os depois para os convencer do seu próprio poder e necessidade).

A ameaça russa, por outro lado, é de natureza diferente. Trata-se de uma civilização praticamente gémea, enraizada nas suas terras, consciente de si própria e totalmente aberta aos três oceanos, ao Ártico e aos Himalaias, às florestas da Finlândia e às estepes da Mongólia. Aqui há soberanos que ‒ desde a batalha de Kazan, ganha pelo mesmo Ivan que nos serve de papão ‒ ostentam o título de Cãs tártaros, bem como imperadores cristãos sentados na derradeira Roma, a terceira, Moscovo, que floresceu numa época em que Bizâncio gemia sob os Otomanos e o Papa sob a verga dos seus favoritos. Eis uma terra de horizontes infinitos, mas cujos contornos estão gravados na história do mundo, invioláveis embora difusos. E, por último, mas não menos importante, aqui estão os povos mais diversos que se possa imaginar, misturando os cabelos louros dos vikings com os olhos oblíquos e as peles bronzeadas da Ásia. Os russos não esperaram que a miscigenação começasse, têm-na no sangue, tão bem assimilada que já nem sequer pensam nisso.

Os cabeças-rapadas obcecados pela raça que passam nos canais de televisão anglo-saxónicos têm a mesma função que os relógios de cuco suíços: artigos para turistas.

[A Rússia] É tão parecida com a Europa. E está tão longe dela! Tão longe que os infatigáveis navegadores dos mares ‒ genoveses, ingleses, holandeses, espanhóis ‒ que conhecem o cheiro da fava tonka e a variedade das madeiras de Sumatra, nada sabem sobre a composição de um borsch [sopa de beterraba de origem ucraniana, n.t.]. Nem sequer como se pronuncia o nome desta sopa. Não é que não o possam aprender. É só que não querem. Nem querem realmente conhecer o espírito, os costumes e a mentalidade dos imigrantes exóticos que agora acolhem aos milhões e que deixam amontoar-se em guetos, porque não sabem como falar com eles.

Como criança sérvia, tive de aprender duas línguas e dois alfabetos para começar a minha vida de imigrante. Aprendi outras para conhecer o mundo em que vivo. Surpreende-me sinceramente que a maioria dos meus compatriotas suíços não saiba os outros dois idiomas principais do seu país [o alemão e o italiano, n.t.]. Como é que se pode conhecer uma pessoa se não se sabe nada sobre a língua que ela fala? É o mínimo de cortesia. E essa cortesia está cada vez mais reduzida aos rudimentos do inglês de aeroporto.

O mesmo acontece com os russos, cuja educação incorpora a cultura da Europa Ocidental e a sua própria. Onde é que se vê o inverso a Oeste do Dniepre? Desde Pedro, o Grande, que os russos se consideram plenamente europeus. Os artistas da Renascença e os pensadores do Iluminismo eram deles. Leontiev, o padre Serge Bulgakov, Repin, Bunin, Prokofiev e Shestov ainda são nossos? Claro que não. Durante dois séculos, falar francês era a regra nas famílias cultas — e por vezes ainda é. Os russos acreditavam que eram intensamente europeus, mas a Europa fez tudo o que pôde para dissipar essa ilusão. Quando os jovens russos cantam Brassens de cor, responde-se evocando “Tolstoievski”. A Europa de Lisboa a Vladivostok só era real no Leste. No Ocidente, nunca foi mais do que a projeção livresca de alguns visionários.

A Europa de Lisboa a Vladivostok! Conseguem imaginar o poder, a continuidade, a influência e os recursos de uma tal entidade? Não. Preferimos, sem dúvida, ver-nos reflectidos no Atlântico. Um mundo envelhecido e os seus próprios bandidos, desesperadamente abraçados uns aos outros sobre o mar vazio, recusando-se a ver o mundo exterior como algo mais do que um espelho ou um saque. As suas últimas trocas calorosas com a Rússia datam de Gorbachev. Normal: o zeloso cornudo tinha começado a desmantelar o seu império sem nada em troca para além de um par de botas no rancho de Reagan. Vinte anos mais tarde, os soldados da OTAN [/NATO] ocupavam todo o território, de Viena a Levive, que tinham jurado nunca tocar! No auge da Gorbymania, Alexander Zinoviev lançou o seu axioma que todos os russos deveriam aprender desde o berço: “Eles só amarão o czar enquanto ele estiver a destruir a Rússia!”

“Ah, vocês, eslavos!”, já ouvi muitas vezes dizer: “Que dom para as línguas!” Durante muito tempo, regozijei-me, tomando o elogio pelo seu valor facial. Depois, tendo viajado, compreendi finalmente. Não somos “nós, eslavos” que temos um dom para as línguas: são vocês, “europeus”, que não o têm. Não precisam, porque durante séculos acreditaram que o vosso estojo linguístico (Inglês, Francês, Alemão, Espanhol) domina o mundo. Porquê esforçar-se por falar banto? A vossa língua, o estandarte da vossa civilização, é mais do que suficiente para vós, porque para lá da vossa civilização estão os limes (como no tempo de César), e para lá dos limes, meu Deus... estão as terras dos citas, dos sármatas, dos Caminhantes Brancos, em suma, da barbárie. Ou, para o dizer sem rodeios, o limite do mundo onde os navios mergulham no abismo infinito.

É por isso que, para vocês, o russo é chinês. E o chinês é árabe, e o árabe é o inimigo. No vosso olhar preso ao vosso umbigo, vocês já nem sequer têm os instrumentos cognitivos para compreender o que os outros ‒ que, de repente, começam a contar ‒ pensam e dizem realmente sobre vós. Teriam vergonha se conseguissem compreender o árabe dos pregadores dos subúrbios? Zombariam se conseguissem perceber algumas migalhas do que os empregados de mesa chineses do 13.º arrondissement [bairro em Paris, n.t.] dizem sobre vós? Rir-se-iam se conseguissem perceber a delicadeza do humor negro dos russos, em vez de se autoconvencerem, de cada vez que eles levantam uma sobrancelha, de que as lagartas dos carros de combate deles estão a milímetros do vosso relvado.

Mas vocês não se riem. Já não se riem. Até os vossos vaudevilles presidenciais são agora comentados com caras de pau. Vocês são tão sérios quanto os gatos que ronronam no silêncio do vosso recolher obrigatório, enquanto eles, os russos, ali, riem, choram e festejam nos seus apartamentos minúsculos, no seu metro sumptuoso, nos seus blocos de gelo, nas suas isbas e até sob uma chuva de granadas de obus.

“Tudo isto não é nada”, disse eu, referindo-me ao histórico mal-entendido entre nós. A parte séria está a chegar agora. Vocês não os culpam por três pedaços da Ucrânia que nem sequer sabiam que existiam. Culpam-nos por serem o que são, e por se manterem assim! Têm-lhes ressentimento por eles respeitarem a tradição, a família, os ícones, o heroísmo — em suma, todos os valores que vocês foram treinados para vomitar. Têm-lhes ressentimento por eles não organizarem o ódio a si próprios em nome do amor ao próximo. Invejam-nos por terem resolvido o dilema que vos enfraquece e vos transforma em hipócritas congénitos: até quando defenderemos cores que não são as nossas?

Culpam-nos por tudo o que vocês não conseguiram ser!

O que é mais impressionante é a quantidade de ignorância e estupidez que têm de demonstrar para manterem a vossa fantochada de um bando de brutamontes que precisam de se livrar do seu ditador caricatural e sangrento antes de serem educados para servir a “verdadeira” civilização. Porque tudo o desmente: as excelentes relações da Rússia com as nações que contam e se defendem (BRICs); o dinamismo real do seu povo; a competência dos seus estrategas; a cultura geral do primeiro russo que vos aparece à frente, por oposição à incultura especializada do “investigador” universitário parisiense que pretende explicar-nos o seu obscurantismo e o seu atraso. É porque esta miscelânea de brutamontes ainda acredita na educação e no conhecimento, quando a escola europeia produz a ignorância socializada; ainda acredita nas suas instituições, quando as da UE são risíveis; ainda acredita no seu destino, quando as velhas nações da Europa confiam o seu à bolsa e aos banqueiros de Wall Street.

A propaganda invadiu tudo, até o ar que respiramos. O governo de Obama impõe sanções ao regime de Putin: isto diz tudo! Por um lado, Guantánamo, assassinatos por drones nos quatro cantos do mundo, a suspensão dos direitos fundamentais e a licença para matar os próprios cidadãos sem julgamento — e, sobretudo, vinte e cinco anos de guerras coloniais calamitosas, sujas e falhadas que transformaram o Médio Oriente, da Bósnia a Candaar, num inferno na terra. Do outro, uma potência que está a tentar, passo a passo, limpar as suas próprias fronteiras, as mesmas fronteiras de que nos comprometemos a nunca nos aproximarmos. O vosso governo contra o regime deles...

Sabem do que se estão a privar ao separarem-se da Rússia duas vezes por século? O derradeiro refúgio para os vossos dissidentes, em primeiro lugar e acima de tudo a testemunha-chave, Edward Snowden. Das fontes de uma parte considerável da vossa ciência, da vossa arte, da vossa música, e até, actualmente, do último porta-aviões capaz de levar o vosso povo ao espaço. Mas isso não tem importância, porque submeteram a vossa ciência, a vossa arte, a vossa música e a vossa busca do espaço à lei suicida do rendimento e da especulação. E que serem seguidos e espiados a todo o momento, como vos mostrou Snowden, não vos incomoda por aí além.

Qual é o objectivo de implantar um microprocessador GPS em cães que já estão presos por uma trela? Quanto à dissidência... Só serve para minar a Rússia. Tudo é bom para minar a Rússia. Incluindo os nazis raivosos de Quieve, que vocês apoiam descaradamente e não hesitam em acicatar contra os seus próprios concidadãos. Seja qual for o resultado, haverá sempre alguns milhares de eslavos a menos...

O que é que a Rússia vos fez para estarem tão dispostos a desencadear contra ela as forças mais sanguinárias da maldade humana: os nazis e os jihadistas? Como é que podem pensar em eludir um povo espalhado por onze fusos horários? Exterminando-o ou escravizando-o?

(É verdade que “todas as opções estão em cima da mesa”, como se diz na OTAN[/NATO]). Depor do exterior um chefe de Estado que é mais popular do que todos vós juntos? Estão loucos? Ou o mundo é demasiado pequeno para que o “Ocidente” possa coexistir com um Estado russo?

Se calhar, afinal, é isso mesmo. Actualmente, a Rússia é a guarda avançada de um novo mundo, da primeira verdadeira descolonização. A descolonização das ideias, do comércio, das moedas e das mentalidades.

A menos que vocês, atlantistas e eurocratas, consigam arrastar convosco a toalha de mesa provocando uma guerra atómica, o banquete de amanhã será multipolar. Terão apenas o lugar que merecem. Será a primeira vez na vossa história, por isso é melhor estarem preparados.

 

Europa à deriva, França NATOnizada, militarização e corrida precipitada para a guerra…

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22 de Abril de

(Marti MICHEL, in Le Grand Soir, 20/04/2024)

(Este texto, não é só sobre a França. É sobre todos os países europeus, Portugal incluído. Talvez a França esteja mais avançada no processo de ver que a Europa se está a destruir, com os serviços públicos a desmoronar-se devido ao desvio, cada vez mais significativo, de recursos para a guerra, para a NATO, para a Ucrânia e outras paragens de conflito.

Até agora tem ido só dinheiro. Mas, em breve, vão pedir-nos a carne e o sangue dos nossos filhos e netos. A França está a acordar. Por cá, em Portugal, dormimos ainda o sono dos idiotas.

Estátua de Sal, 22/04/2024)


A Europa à deriva, a França NATOnizada, militarização e corrida precipitada para a guerra... O que fazer?... Talvez construir uma frente unida para a paz?...Foi isso que um pequeno grupo de coletes amarelos perdidos nos subúrbios de Paris se propôs a fazer. Contactaram uma UL CGT local e, com ela, começaram a elaborar um quadro em torno de 3 propostas simples, susceptíveis de ultrapassar as divisões partidárias e conseguir reunir o maior número possível de cidadãos. 3 propostas comuns a muitos partidos (mas sim, considere as declarações deles e lá encontrará, formuladas de forma diferente, esses 3 pontos) dizendo-se pacifistas e respondendo à urgência do dia:

- Nem um euro, nem um soldado, nem uma arma para guerras
- Saída da NATO
- Reorientação da diplomacia francesa em favor da negociação e do cessar-fogo.

Estas 3 propostas excluíram deliberadamente as questões incómodas: as da origem e das responsabilidades da guerra na Ucrânia, as relativas à União Europeia neste período eleitoral.

3 propostas susceptíveis de sentar à volta da mesma mesa as diferentes componentes do chamado campo da "paz" na esperança de lançar assim a primeira pedra de uma frente única que faz tanta falta neste país. Entenda-se que, dentro de tal movimento, cada organização poderia desenvolver livremente as suas próprias análises: o essencial era que a base unitária fosse mantida.

Note-se que os resultados até agora são escassos: das 6 organizações contactadas, sem contar várias personalidades e sites alternativos, 3 simplesmente reconheceram a receção, apenas uma respondeu. Lutte Ouvrière, a quem agradecemos apesar de sua relutância, em a nomear.

Os folhetos foram impressos. Quanto à petição nacional lançada em apoio à iniciativa, as 50 assinaturas não foram alcançadas!

Então vamos parar? Seríamos tentados...

Mas aqui é que está o problema: a máquina de guerra à nossa frente está entrando em overdrive dia após dia.

Esquizofrenia Ocidental: Afundando-se na Crise e Empurrando para a Guerra

Todos os nossos meios de comunicação estão agora em pânico com a dívida pública. Em 31 de março, a dívida pública da França era estimada em € 3.000 biliões, com um déficit de € 154 biliões em 2023. Uau! Mas isso é horrível! E voltando à dos EUA: 31.400 biliões de dólares de dívida! Somos anões ao lado deles! Fique tranquilo: há uma grande diferença em relação aos americanos: eles, graças ao dólar, têm a possibilidade de fazer outros países pagarem a dívida deles. Nós não!

Curiosamente, o pânico fiscal pára nas fronteiras da despesa pública. Em suma, sabem atingir os pequenos serviços públicos que restam, os desempregados, a segurança social, as ajudas à agricultura, as pequenas e médias empresas, enfim, sabem fazer tudo isto. Congelar salários e pensões aos reformados, arranhar a superfície do Livret A explicitamente orientado para a defesa nacional, tudo é bom. Os professores recém-recrutados (medidas Attal) serão pagos abaixo do salário mínimo: 800 ou 900 euros! E os impostos? É tentador, mas é perigoso eleitoralmente... Logo se verá...

Macron disse isso: são 10 biliões de euros que devem ser recuperados. A UE estabeleceu o intervalo para a França: estamos em 5,5% de déficit, Attal propõe passar para 4,4%... Não, no final, seria melhor 5,1% para o ano, antes de se nvoltar aos sacrossantos 3%... em data posterior.

Mas a mesma mídia acha natural que o orçamento militar que deve acelerar a modernização do exército francês (diante das "ameaças inimigas"?) tenha aumentado de 43,9 biliões em 2023 para 47,2 biliões este ano (aumento de 46% desde 2017). E, garante Macron, o esforço será mantido. Nós acreditamos!

O império americano exige-o, a NATO está a trabalhar, a UE está empenhada, o nosso governo está entusiasmado: estamos em guerra! Pergunta-se contra quem: as sanções afetaram mais a Europa do que a Rússia.

Os nossos deputados concordam, apesar de tudo: em 12 de março, a Assembleia Nacional por 372 a 99 (votos de LFI e PCF) votou o acordo bilateral de segurança França/Ucrânia. Pelo voto dos deputados, são mais 13 biliões pagos diretamente pela França por conta da guerra que foram oficialmente validados (parte dos 50 biliões votados para a UE, mais a extensão de 3 biliões decidida por Macron). Você ouviu bem: 13 biliões, para serem comparados com os 10 biliões confiscados por Macron levando à destruição dos nossos serviços públicos.

E eis Macron a revelar-se como um excelente estratega da NATO. Em 7 de março, concluiu um acordo de defesa Moldávia-França. Porquê a Moldávia? Até agora, era um país neutro. Só que faz fronteira com a Ucrânia e é vizinho de um país independente muito pequeno, a Transnístria. Como resultado, a Moldávia, trabalhada pela UE e pela NATO, está a aumentar as suas provocações contra o seu pequeno vizinho, um aliado tradicional dos russos. Daí o acordo de Macron, que poderia abrir uma segunda frente nas fronteiras da Federação Russa. Em que a França seria arrastada... Finamente jogado!

Mas também estamos armando as poucas ditaduras africanas ainda leais à França. No Senegal, a França acaba de sofrer um sério revés com a derrota eleitoral de Macky Sall, até então fiel ao Hexágono.

Acrescente-se a isso a óbvia cumplicidade com o atual genocídio no Congo (6 milhões de mortos até agora!) por ação interposta do Ruanda, permitindo que a UE saqueie os recursos minerais fronteiriços.

Sem falar no apoio financeiro e militar da França ao genocida Israel, que segue a mesma lógica belicista, apesar dos apelos hipócritas de Macron por um cessar-fogo, aos quais ele sabe que Netanyahu faz orelhas moucas.

Em suma, as engrenagens estão ajustadas. A França só tem que marchar em passo rápido, a sua juventude em primeiro lugar: restauração à honra do serviço militar (Serviço Nacional Universal), retorno do uso de uniforme na escola, propaganda de recrutamento no exército em todos os lugares. E repressão a todos os níveis: 600 processos policiais e criminais foram recentemente instaurados por "apologia terrorista e antissemita", incluindo vários sindicalistas e líderes políticos.

Palestina-Ucrânia: dois pesos e duas medidas?

É o que ouvimos com frequência nas marchas de solidariedade da Palestina. Com isso, os manifestantes querem dizer a diferença de tratamento entre a Rússia e Israel em nome do direito internacional.

No entanto, a questão também poderia ser colocada de forma diferente: como explicar tamanha disparidade? A isto, há que responder que em ambos os campos de batalha são as mesmas pessoas que estão a promover a escalada, os americanos e os seus aliados europeus, fornecendo ajuda militar e aplicando sanções aqui e ali como lhes apetece, tornando assim o direito internacional uma concha vazia, com o perigo iminente do que isso implica para a paz em todo o mundo.

Em primeiro lugar, o genocídio sionista, amplamente tolerado, se não apoiado, pelo Ocidente será lembrado como uma prova impressionante aos olhos dos povos de todo o mundo de até onde pode ir a barbárie belicista de nossos governos. Os nazis esconderam os seus campos de concentração, os israelitas estão a fazer tudo com a cara descoberta: os seus soldados filmam-se durante o massacre.

Israel comporta-se como um mero agente do império norte-americano: um meio de controlar a subjugação do mundo árabe, simbolizada pelo famoso processo de Abraão.

É também um aviso aos "nossos inimigos", russos ou em breve chineses, da determinação dos EUA em manter o seu domínio a todo o custo.

A segunda parte da tragédia palestina é o roubo de gás planeado pelo Ocidente (liderado por Israel) com a cumplicidade do Egito e da Autoridade Palestiniana ao largo de Gaza.

As sanções económicas contra a Rússia perturbaram a economia global, levando à inflação global. A aquisição de novos recursos energéticos tornou-se fundamental. No entanto, os campos de gás a 30 km da costa de Gaza são uma sorte inesperada para o Ocidente.
 
Os campos de gás marinhos 1 e 2 de Gaza, identificados desde 1999, têm reservas extraíveis estimadas em cerca de 35 biliões de m3 e uma capacidade de produção anual de 1,5 biliões de m3 durante um período de 12 anos.

Recorde-se que a UE proíbe, teoricamente, qualquer transacção de recursos palestinianos por parte da potência ocupante. No entanto, não há fim para as sórdidas e ilegais negociações entre Israel, a UE e até a Índia, supervisionadas pelos EUA, tendo como pano de fundo a fatia que iria para a Autoridade Palestiniana (e, por extensão, para o Hamas).

Para a UE, a exploração direta do depósito seria realizada pelo gigante italiano ENI (Ente Nazionale Idrocarburi) de alcance global, ao qual Israel estaria a preparar-se para entregar o contrato.

E tudo isso é negociado com bombas e mortes, para grande alegria da indústria armamentista, cujos lucros continuam a explodir. Mas tudo isso não é novidade. Novidade seria: e se todos nos envolvêssemos para parar a máquina?

Construir uma frente unida pela paz

Estamos de volta ao ponto de partida. Todos os partidos, à excepção do PRCF (Polo da Renascença Comunista), que também contactámos, estão ocupados com as eleições europeias. Não lhes pedimos que façam muito: apenas que se sentem à volta de uma mesa e concordem com uma base minima... que já consta dos seus próprios programas!

Quantos cidadãos viriam a juntar-se a um movimento tão unido para travar o massacre: todas as sondagens mostram-no. Os franceses, como outros povos, não querem a guerra. Por que aceitar fazê-la, noutras paragens e com o sangue dos outros?

Todos concordam: queremos viver em paz, num mundo melhor, para nós mesmos, para os nossos filhos. "Por um mundo melhor": essas letras são as de uma de nossas músicas, a canção dos Coletes Amarelos tocada e cantada internacionalmente.

Então, vamos ao que interessa. Que aqueles que se dizem pacifistas assumam as suas responsabilidades. Ao assinarmos o apelo lançado pelo nosso pequeno grupo dos Coletes Amarelos, talvez consigamos fazer-nos ouvir. Vamos pelo menos tentar!

domingo, 21 de abril de 2024

 

Passos Coelho e os que comem criancinhas

estatuadesal

21 de Abril de

(António Fernando Nabais, in Aventar, 21/04/2024)

Quadro de Goya - Saturno devorando um filho

No tempo do salazarismo, havia um faduncho anticomunista que servia para alimentar o medo do papão leninista-estalinista-siberiano. Incluía, o dito faduncho, versos como “Maldita seja a Rússia soviética!” e “Malditos os que comem criancinhas!”. Quando se pensava que já não seria possível reencontrar um discurso tão primário, eis que Passos Coelho reaparece para reavivar fantasmas em que ele próprio não acredita, mas que lhe dão jeito para a campanha em que se integra, juntamente com outros intelectuais do mesmo calibre, como Paulo Otero ou João César das Neves, alguns dos autores que integram a colectânea “Identidade e Família”.

Descaindo os cantos da boca, de modo a imitar uma gravitas de estadista, Passos Coelho disse que há uma «sovietização do ensino».

Um dos mitos alimentados pela direita tola (ou pela direita que fala para tolos) é o de que a Escola Pública é uma verdadeira madraça dominada por comunistas e outros parentes desgraçadamente próximos que andam a catequizar as pobres criancinhas, que, a não serem comidas ao pequeno-almoço, hão-de transformar-se, por força da doutrinação, em futuros comedores de criancinhas, em consumidores de drogas pesadas, médias, leves e pesos-pluma e em heterossexuais convertidos em quaisquer outros sexuais que tentarão obrigar toda a população a mudar a orientação sexual.

A acreditar em Passos Coelho (a propósito de acreditar em Passos Coelho, convém relembrar), os professores portugueses andaram a receber instruções para encher a cabeça dos alunos de ideias satanicamente esquerdistas. Temos, então, de imaginar que, de acordo com a cabecinha de Passos, os professores constituem um conjunto homogéneo de pessoas

  1. acéfalas: que obedeceriam a qualquer instrução ministerial;
  2. de esquerda: haveria um ou outro professor de direita, mas viveriam, na melhor das hipóteses, aterrorizados com as brigadas vermelhas de docentes que vigiam as escolas, de kalashnikov em punho, a fim de manter o comunismo em boa ordem;
  3. sem ética: porque se achariam no direito de usar as aulas para deixar de ensinar as matérias, com comícios em cada sala de aula e com as turmas transformadas em células de pequenos soviéticos, com o caderno diário a ser substituído pelo kit pedagógico da foice e do martelo.

No mundo fantástico da cabeça de Passos Coelho, os alunos serão, ainda, seres amorfos que se limitam a obedecer cegamente às ordens dos professores. Os alunos seriam gente, toda ela, sem cabeça e sem espírito crítico, incapazes de não cumprir uma única tarefa que lhes seja imposta pelos canibais infanticidas que se disfarçam de professores.

As próprias famílias, acuadas nas suas casas, viveriam petrificadas, impossibilitadas de criticar os professores, porque, vivendo em residências sovietizadas, estão a ser permanentemente escutadas, enquanto, lá fora, as tropas rubras dos professores batem as ruas, de noite e de dia, enquanto sovietizam os passeios, as ruas, as janelas e os postes de iluminação pública.

Como explica, ainda, o Rui Correia, até a tia – talvez de Passos Coelho – é soviética, o que, a ser verdade, deve ser um desgosto enorme para a família.