(Daniel Oliveira, in Expresso, 01/12/2017)
Daniel Oliveira
Veja-se o absurdo disto: no melhor momento económico e social do país dos últimos nove anos respira-se ambiente político de fim de festa. E foi neste ambiente que o mais redistributivo Orçamento do Estado de que me lembro, que maior impacto terá nas classes baixas e médias, só foi notícia porque houve um confronto entre o BE e o PS.
A imprensa vive concentrada em polémicas que duram uma semana e não deixam mais do que um rasto de desconforto difuso e inconsequente. Como o de Tancos, que foi abandonado depois de um relatório de origem desconhecida. Ou os jantares do Panteão, que existiam há anos e só agora foram notícia. Ou o escândalo com a não publicação do 6º capítulo do relatório sobre Pedrógão, que o parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados veio afinal justificar. Só reparou que havia um Orçamento do Estado quase no dia da votação. Mais uma vez, porque havia um caso.
Mas a comunicação social não é a única a distrair-se. Em vez de se concentrarem no essencial, que é o que estão a fazer ao país, o primeiro-ministro entretém-se com fogachos mal amanhados como a ida do Infarmed para o Porto e os partidos da maioria dedicam-se a uma coreografia trapalhona das suas próprias divergências. A exceção foi a excelente intervenção de Pedro Nuno Santos, no Parlamento. Talvez porque represente o que não é mero cálculo nesta solução política, concentrou-se no essencial. Para o país, a tentativa de romper com as ideias de que só é reformista e corajoso o que piora a vida das pessoas, de que distribuir melhor o que se tem é desperdício e de que pode haver crescimento económico sustentado sem mercado interno. Para o PS, a tentativa é apanhar o comboio onde vão os poucos partidos socialistas que se estão a salvar da crise identitária e eleitoral do centro-esquerda, constituindo-se como alternativa à privatização do Estado e desregulação da economia.
O incidente entre PS e BE revela um Governo mais frágil para enfrentar lóbis e uma ‘geringonça’ mais descoordenada, sem um guião depois de cumpridos os acordos iniciais, que apenas tratavam da reposição de rendimentos. Apesar de ser fundamental, a política não se esgota numa folha de pagamentos. Estes quatro anos deveriam servir para implementar algumas das reformas que a esquerda defende para o país e para o Estado: a modernização da Escola Pública, o reforço dos cuidados de saúde primários, o regresso à contratação coletiva, a regionalização, o investimento para requalificar serviços públicos. Mesmo dentro dos limites europeus há coisas que podem ser feitas. Concentrarem-se nelas, nesta e na próxima legislatura, seria a forma desta experiência ser mais do que um plano de emergência antes de voltarmos a mais uma década de perdas para os trabalhadores, privatizações e aumento da desigualdade social. Mais do que um intervalo na rotina de um PS que desiste, um BE que denuncia e um PCP que protesta. A esquerda portuguesa conseguiu vencer um tabu, devolveu alguma normalidade ao país e fez de Portugal uma ilha de sanidade na Europa. Não tem estado, nos últimos meses, à altura do seu feito histórico.