por estatuadesal
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 08/12/2017)
1 Há dois anos, Mário Centeno estava emprateleirado num qualquer discreto departamento do Banco de Portugal: Carlos Costa, o governador que o Governo Passos/Portas reconduziu sem querer esperar pelo resultado das eleições, não tinha especial ternura por ele. De um só salto, passou a ministro das Finanças, em cujas funções obrigou Carlos Costa a abrir mão dos lucros do BP muito para lá do que o governador queria. Agora que Centeno vai presidir e representar a política financeira da zona euro, Carlos Costa é o primeiro derrotado com a sua eleição.
Durante meses, antes das eleições de 2015, António Costa não abriu a boca, não soltou uma palavra que fosse sobre que ideias tinha para sustentar uma política económica diferente da do Governo que se propunha substituir. Estava à espera que Mário Centeno concluísse a sua preparação e estudo e lhe servisse um guião de bandeja. E o guião foi simples: era possível fazer diferente, aliviando a austeridade e apostando no consumo interno, conseguindo ainda melhorar as contas do défice. Os resultados, até ver, foram muito além do que devem ter sido as expectativas do próprio Mário Centeno. Mas manda a verdade que se diga que grande parte disso não foi mérito deste Governo ou do anterior, mas de uma conjugação de factores externos (o prosseguimento da política de compra de dívidas soberanas pelo BCE, que fez baixar os encargos com a dívida, e a retoma económica na UE) e internos, que se ficaram a dever apenas à resiliência da iniciativa privada: o aumento das exportações e o disparo do turismo. Apesar da crise, apesar da infernal burocracia, apesar da perseguição fiscal do Estado. Mas o que fica para a história — e o que tornou Centeno um candidato vencedor para o Eurogrupo — foi a assumida inversão de estratégia perante o dogma do TINA (“There is no alternative”), imposto por Schäuble, policiado pelo “social-democrata” Dijsselbloem e adoptado como mantra pelo Governo anterior.
Por isso, os segundos grandes derrotados desta eleição são Vítor Gaspar, Maria Luís Albuquerque, Pedro Passos Coelho e, por pacífica conivência, Paulo Portas. Há muito tempo que não me ria tanto como me ri ao ouvir alguns robustos espíritos do PSD, tais como o doutor Catroga, da EDP e da troika, atribuírem a eleição de Centeno... ao desempenho do Governo Passos/Portas!
Podiam ao menos dar-se ao trabalho de passar os olhos pelos títulos da imprensa estrangeira de referência para perceberem que o que sucedeu foi exactamente o oposto: assinalou-se o fim de um ciclo e o começo de qualquer coisa de diferente — que pode não ser um ciclo novo, mas será sempre uma abordagem diferente e mais abrangente. Com a retirada de cena de Schäuble e a eleição de Centeno, o Sul deixou de ser visto apenas como a terra “dos copos e das mulheres”, de que falava o arrogante Dijsselbloem, e passou a ser considerado como o outro lado da equação, com outra abordagem e outras soluções possíveis para os mesmos problemas. Em parte, por via da capacidade de resistência mostrada pela Grécia, mas sobretudo pelo exemplo do “caso português”, cuja alternativa, aqui e lá fora, nos tinham jurado ser impossível. Eu sei que em política jamais se reconhece uma derrota ou o mérito de uma vitória alheia. Mas, apesar de tudo, há uma diferença entre perder mal ou perder transformando derrotas em vitórias de anedota.
Os terceiros derrotados com a eleição de Centeno são o PCP e o BE, os parceiros estratégicos do Governo. E, se dúvidas houvesse, honra lhes seja feita, eles não esconderam, mais do que o desconforto, a oposição frontal à ideia de terem um português a presidir ao Eurogrupo. Na sua visão maniqueísta das coisas, aquilo que é bom para a Europa é mau para Portugal e vice-versa. O seu ideal de situação é ter uma Europa que nos manda dinheiro e um ministro das Finanças que é um guerrilheiro anti-europeu no Eurogrupo; é aumentar livremente os défices e queixar-se do “espartilho financeiro” de Bruxelas; é assim ir aumentando a dívida pública para a geração actual e as futuras e simultaneamente reclamar contra a “exploração dos mercados” e exigir a reestruturação da dívida... para depois poder voltar a aumentá-la livremente. Nesta idílica concepção de vida que é da extrema-esquerda portuguesa, ter um ministro das Finanças que vai também ser presidente do Eurogrupo — que vai ter de ser capaz de simultaneamente defender a contenção orçamental cá dentro e uma mudança de políticas lá fora — representa tudo o que eles mais abominam: o triunfo dos moderados, dos reformistas, contra os vários extremismos. Está escrito nos livros de História: para os marxistas-leninistas, se o “Estado burguês” não pode ser imediatamente derrubado pela força das “massas”, ao menos que seja de tal forma injusto que a revolução acabe por se impor como única alternativa. O que, não resolvendo jamais o problema da miséria dos povos, resolve o problema dos autores da História.
E, para fechar a lista dos derrotados com a eleição de Mário Centeno, há um autoderrotado absolutamente incompreensível: Marcelo Rebelo de Sousa. De facto, desde a primeira hora em que a possibilidade se tornou real (ao contrário do que alguns, soberbamente, ridicularizaram), o Presidente não escondeu toda a sua animosidade à ideia. E, mesmo sabendo nós que o seu espírito analítico viaja várias galáxias à frente do nosso, não ignorando que o homem nunca dorme em serviço nem fora dele, é difícil, para não dizer impossível, entender tanto mal-estar. Terá Marcelo medo ou ciúmes do prestígio internacional do Governo? Terá achado que era altura de dar uma mão aos derrotados da direita, mesmo que para isso se tenha encostado à posição da extrema-esquerda? Francamente, não sei e não entendo.
2 No meio de tudo isto, por entre a espuma dos dias e a substância das coisas — das quais nenhuma é mais importante e urgente do que as terríveis consequências, a todos os níveis, da assustadora seca que vai destruindo o país e que é invisível a partir de Lisboa — anda para aí o PSD em campanha para escolher um futuro líder, entre o nada que é Rio Rio e o já visto demais que é Santana Lopes. A querela, se assim lhe podemos chamar, tem merecido dos portugueses zero de interesse, zero de atenção. Conta-se que ambos percorrem o que chamam “país” — isto é, as concelhias do partido — em interessantíssimas conversas com os militantes. Mas parece que estamos a falar de um país oculto, que o resto dos portugueses ignora por completo. Ora isto é mais grave do que o nosso desinteresse imagina. O PSD é um partido do regime, um tradicional partido de poder. Um presidente seu é, por inerência, candidato a governar Portugal. E, a esta luz, o que vemos é assustador. Rio tem com ele o baronato quase completo: gente que já conhecemos de ginjeira e de que ninguém deve ter saudades; Santana tem as bases nostálgicas do tempo dos discursos empolgantes em congressos de província e um mandatário nacional que não é outro que o brilhante Rui Machete — sim, esse mesmo, cujos dotes de “estadista” se revelaram em todo o seu esplendor quando Passos e Portas fizeram dele o mais patético ministro dos Estrangeiros que já tivemos. De resto, além de coleccionaram “apoios” para que o país se está nas tintas e de caciquarem as bases, confundindo-as com o país, nenhum deles avançou até agora com a mais pequena, insignificante, modesta ideia de como servirem Portugal. Caramba, será isto o melhor que o PSD tem para propor aos portugueses?
(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)