(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/11/2017)
Daniel Oliveira
Como ministro, Vieira da Silva recebeu uma queixa por uma irregularidade estatutária: a Raríssimas tinha ficado sem tesoureiro. A queixa não era o que ficámos a conhecer na reportagem da TVI. Com dez mil IPSS, não me choca que ela seguisse a tramitação normal que, no Estado, sabemos ser lenta. Também o foi em Belém, que só esta semana encontrou a correspondência enviada, sem que isso causasse grande choque. De resto, tudo o que aconteceu na Raríssimas vem desde 2013 e este governo tinha tanta informação como o anterior. O terceiro sector não está sob tutela do Estado. Como 75% dos recursos da Raríssimas não são públicos, não é o Estado que anda a ver se gastam o dinheiro em gambas e vestidos. Isso cabe aos órgãos da própria associação.
Passamos então para a responsabilidade do próprio Vieira da Silva como vice-presidente da Assembleia Geral. É, como sabe quem participou em associações, um cargo honorífico. É verdade que não devia ser, mas o mal é geral, não é dos políticos. Dirão que o convite a políticos revela a tentativa de proximidade destas associações em relação ao poder. É verdade e sobre a total dependência do terceiro sector em relação ao Estado já escrevi. Estes dois anos, em que a comunicação se tornou mais atenta, têm-nos feito subitamente descobrir o país em que vivemos.
Mas mesmo que não fosse um cargo honorífico, as irregularidades divulgadas dificilmente poderiam ser do conhecimento da Assembleia Geral.
Muito do que tenho lido por aí revela um total desconhecimento do funcionamento das associações. O que a Assembleia Geral aprova são as contas, conhecendo as grandes rubricas. Não estão lá as gambas e os vestidos. Desde que as IPSS foram dispensadas de ter revisores oficiais de contas, que teriam deveres diferentes, a Assembleia Geral só poderia conhecer esses abusos se o tesoureiro os reportasse.
Esperou seis anos, em que colaborou com a trafulhice, para o dizer. Não à Assembleia Geral, como era seu dever, mas à TVI. Atribuir a cargo de vice-presidente da Assembleia Geral um papel de cúmplice deste tipo de irregularidades só pode resultar de má-fé ou ignorância.
Muitas empresas foram doadoras da Raríssimas até este escândalo rebentar. Mais do que o Estado, aliás. Algumas, segundo sei, estão a retirar o seu apoio, o que compreendo mas deixa-me preocupado. A anterior primeira-dama, Maria Cavaco Silva, foi madrinha da instituição e até lá levou a Rainha de Espanha. Marcelo Rebelo de Sousa visitou a Casa dos Marcos. Vieira da Silva aceitou ser vice-presidente da Assembleia Geral. Ricardo Batista Leite, deputado do PSD, tinha aceite ser vice-presidente da próxima direção. E os serviços do Estado decidiram financiar a Raríssimas, no correspondente um quarto dos seus recursos, menos do que a média das IPSS, que andará por metade. Todos os fizeram porque todos os que conheciam a Raríssimas tinham a melhor opinião sobre o seu trabalho. A não ser que se prove má-fé na ajuda que deram, a caça a quem se ajudou uma IPSS que trabalha numa área tão difícil é absurda.
Até porque a boa opinião que todos tinham do trabalho junto dos utentes dos serviços da Raríssimas não era, segundo grande parte dos relatos que me chegam, injustificada. A instituição foi premiada em Portugal e no estrangeiro porque, ao que parece, faz mesmo um bom trabalho naquela área. Preocupa-me, aliás, a situação em que se encontra agora, pondo em risco as pessoas que dependem dela. Penso que uma das coisas a que estamos obrigados a fazer, como cidadãos, depois desta indignação, é a apelar para que haja uma direção que transmita credibilidade, para que os apoios regressem e para que os utentes continuem a ter o ajuda que precisam. O bom trabalho que a Raríssimas faz não é incompatível com uma presidente arrivista, abusadora e que maltrata o dinheiro que não é seu. As coisas na vida são mais contraditórias do que este tipo de polémicas fazem pensar.
O que revela muito sobre a fragilidade da nossa sociedade civil é sermos incapazes de fazer qualquer debate – incluindo o do funcionamento do terceiro sector – sem que ele se transforme, mesmo quando isso é manifestamente forçado, num mero confronto partidário. A tentativa de transformar este caso numa espécie BPN do PS, que alguns comentadores mais ativistas e imaginativos tentam ensaiar, diz tudo da má-fé com que algumas pessoas estão a lidar com este caso.
Mas é natural que o debate acabe sempre assim. A maioria dos portugueses sabe o que são os partidos mas nunca meteu os pés numa associação. E essa anemia da nossa sociedade civil ajuda a explicar muito do que deveríamos estar discutir com este caso: porque temos uma sociedade civil tão frágil, totalmente dependente do Estado e que todos esperam que seja tutelada por ele.