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sábado, 23 de dezembro de 2017

A família de Cristas

por estatuadesal

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 23/12/2017)

Retrovisor Cristas

Cartoon In Blog 77 Colinas

Fiquei contente quando Assunção Cristas assumiu a presidência do CDS. A alegria foi passageira. Apesar das responsabilidades de Cristas no Governo mais moralista que nos governou, tenho presente o que lembro da vida académica da líder do CDS e a diferença que fez aquele Partido ser liderado por uma mulher, nomeadamente no que toca ao apoio a opções como a lei da paridade.

Por isso mesmo estava convencida de que Cristas iria fazer diferente (por oposição) de Portas, tentando inverter os laivos de populismo que conhecemos de PP desde os tempos em que inventou Manuel Monteiro.

Infelizmente para a limpeza da Política, Cristas deu-se conta do sucesso que o populismo faz por esta Europa fora e nos EUA e, em vez de o rejeitar (afinal há uma fotografia de Adelino Amaro da Costa no Caldas), apanhou-lhe o estilo. Fê-lo com intensidade menor, claro, ninguém de bom-senso comparará Cristas a Trump, mas a verdade é que a líder foi beber ao que de pior a Política enfrenta pelo mundo fora.

Foi o caminho fácil, o caminho de gente fraca, porque a pessoa que há dois anos apresentava previsões no Parlamento com cartazes coloridos e dava prendas infantis a António Costa (óculos, retrovisores, penso que sobretudo as crianças estarão recordadas) deu com o fracasso da estratégia.

As suas previsões acerca de uma evolução catastrófica da economia, do emprego, da dívida e da estabilidade política falharam todas e a prendinha do retrovisor saiu-lhe cara: afinal pegamos nele e todos os indicadores referidos são hoje muito mais positivos do que no tempo em que a líder era governante, o que transforma o retrovisor de Cristas num espelho do seu falhanço como governante e como presidente do CDS.

É por isso que lhe deu a fraqueza dolosa. Entrou numa viagem de difícil retorno, essa que escolhe a exploração da dor de gente de carne e osso para erguer o dedo em modo acusatório ao PM ou que desvaloriza o institucionalismo democrático em nome do “contacto direto com o povo”. É com o povo no peito que a populista de serviço insulta em vez de apresentar alternativas e é com a ilusão de domínio do povo (que tem por seu) que tenta assustar o mesmo com as palavras da insinuação.

Que palavras são essas? Berrar “esquerdas radicais” ou “esquerdas unidas” não lhe tem dado frutos e eis que perante o caso da Raríssimas – que em sede de comissão entregou ao seu Deputado luta-na-lama António Carlos Monteiro - descobriu a nova expressão que insinua: “a grande família socialista”.

Cristas não se atreve a concretizar uma única acusação de ilegalidade praticada por algum ministro ou ministra, mas deixa no ar o fantasma de um polvo usurpador da vida do (seu) povo: “a grande família socialista”. Repete muitas vezes a expressão, diz mesmo que tem medo da dita família, e assim se “redime” perante o espelho do seu fracasso. A sua “redenção” é a cedência ao insulto e à insinuação. A sua “redenção” é destruir o legado da democracia-cristã e criar uma – aqui sim – verdadeira nova família política em Portugal: o partidinho popular.

A família socialista é de facto grande, o PS é um grande Partido. Entendo que Cristas se aleije com o facto de o destruído CDS ter menos de 3% nas votações autárquicas.

Gosto da minha família.

Cristas escolheu a dela e ilustra-a bem no Correio da Manhã. Está em casa.

As virtudes da irritação

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 22/12/2017)

Guerreiro

António Guerreiro

Nas ocasiões em que nos media rebentam ondas de irritação e indignação e a opinião pública parece submetida a um fenómeno de hipnotismo (e esses momentos, como temos presenciado, sucedem-se a um ritmo cada vez maior e têm aumentado de grandeza), é bem visível a massa que os mass mediafazem. Para percebermos o que significa fazer massa talvez seja útil recorrer a um distinção, elaborada pelo sociólogo Gabriel Tarde já no final do século XIX, entre público e multidão. A multidão é um tipo de colectivo em que os seus membros estão presentes uns para os outros, num mesmo momento e num mesmo espaço, de tal modo que os processos de condicionamento e afectação se propagam de modo horizontal e bidireccional. O público, esse, só pôde nascer depois da invenção da imprensa, quando se tornou possível transportar o pensamento à distância. A característica principal dos media – aquela que está no princípio – é a constituição de públicos, o poder de os gerar. Os membros do público estão separados uns dos outros e reagem isoladamente. O que os media de massa fazem é sincronizá-los, reunindo-os em torno de certos debates, acontecimentos e questões momentâneas, operando fenómenos de imitação e de sugestão (uma forma de hipnotismo), em que cada um é convidado a exprimir a sua posição, isto é, a situar-se em relação a esses problemas.

Com a Internet e as redes sociais, o público passou a poder partilhar as suas reacções em tempo real, a manifestar as suas afectações e a entrar numa cadeia de condicionamentos emotivos porque se suprimiu a distância entre eu e o mundo, entre eu e os outros. A essa distância pode-se chamar espaço de pensamento. Daí que estejamos hoje confrontados com novas modalidades de propagação horizontal própria das multidões.

Na verdade, a interacção cada vez mais estreita entre os media de massa e as redes virtuais fez com que os fenómenos de público se pareçam cada vez mais com fenómenos de multidão. E é hoje evidente que o público e a opinião devem ser tratados como conceitos psico-sociológicos, como fez Gabriel Tarde, de modo pioneiro. O trabalho de sincronização que os media de massa efectuam assenta em grande parte nas potencialidades da irritação. Foi Niklas Luhmann, um dos mais importantes sociólogos do século XX, conhecido sobretudo pela sua teoria dos sistemas, quem descreveu os media como sistemas de circulação que produzem figuras de irritação que estão sempre a ser renovadas. Colocando a ideia da auto-referencialidade dos media no centro da sua análise, enquanto “sistemas auto-poiéticos” (isto é, voltados para o seu próprio fazer), Luhmann mostrou que eles, mais do que informar, sensibilizam-nos de maneira selectiva, chamam-nos a participar em certas irritações e a tomarmos uma posição relativamente a elas. E isso numa escala muito maior do que aquela que resulta da proximidade física dos corpos da multidão. A sociedade conformada pelos media de massa é uma sociedade irritada pelas mesmas coisas ao mesmo tempo, trabalhada pela simplificação e pelo esquematismo. Cada vez mais permeável à lógica das irritabilidades, sem instrumentos para dela se defender, a política tornou-se um espectáculo estéril e histérico de irritações que se sucedem ininterruptamente, voltada muito mais para a reacção do que para a acção. O jornalista diz, irritado, e achando que a sua irritação é a mais poderosa do mercado, “demita-se o ministro”, a oposição faz eco e repete “demita-se o ministro”, e o ministro responde: “Não me demito”. Esta é a cena-modelo da política do nosso tempo e o seu movimento é o do eterno retorno.

Em tempo de guerra, não se limpam as armas?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Público, 22/12/2017)

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Os factos são muito teimosos. As eleições na Catalunha deram uma maioria confortável aos partidos cujos dirigentes estão presos ou fora do país, mesmo depois de uma vaga repressiva com a convocação de milhares de guardas civis para impedirem um referendo, a dissolução das autoridades eleitas, a prisão de responsáveis de associações e de governantes e a proibição de, sendo candidatos, participarem na campanha eleitoral. Esse resultado é impressionante e demonstra que o desafio catalão beneficiou de Rajoy.

Esperava Rajoy, que passou a campanha na Catalunha, que o medo destroçasse os independentistas e que o aumento de votação, para uns espantosos 82%, levantasse as cores espanholistas. O resultado não é só um desastre para o seu PP (de 19 deputados em 2012 para 3), mas para os partidos unionistas, que ficam só com 57 deputados contra os 70 independentistas. Arrimadas, coqueluche da nova direita, clama que os seus 25% demonstram que tem a maioria, mas o entusiasmo não substitui a realidade. O facto teimoso é que, mesmo que os deputados presos e exilados não sejam autorizados a vir votar ao parlamento, e mesmo que a CUP não chegue a acordo com os partidos independentistas de centro e de direita, Puidgemont pode ainda assim ser eleito presidente do governo.

O efeito Rajoy foi este: para ocultar a crise judicial do seu partido, acusado de corrupção, desencadeou uma tempestade cujo resultado foi reafirmar o independentismo catalão, que estava mal preparado, sem estratégia e sem plano, mas que passou a mobilizar o sentimento da revolta democrática. Além disso, conseguiu fazer crescer a solução republicana contra os partidos monárquicos.

Não é esse imbróglio, no entanto, o tema desta crónica. O que venho discutir é o princípio de que, em guerra, não se limpam as armas e, em particular, qual foi o papel da imprensa nesta guerriúncula. Veja o seguinte exemplo: o editorial do El Pais, um dos mais importantes jornais de Espanha, perante os resultados de ontem, afirma que “O PS, estável, e os Comunes (Podemos) muito em baixa, pagam o preço dos seus moderantismos e ambiguidades. E o PP de Rajoy recolhe o pior resultado: algo que sem dúvida terá consequências na política nacional”. Os leitores notarão a contradição: esta análise afirma que dois partidos caem porque eram ambíguos e o outro cai ainda mais, mas não era ambíguo. Vale tudo e o seu contrário.

Mas o mais importante é o que foi dizendo o próprio El Pais ao longo desta crise, porque nunca foi ambíguo. O jornal decidiu tomar a mesma atitude que a imprensa tomou em cada país durante a segunda guerra mundial: só interestitulossa a propaganda militar. Ou, já agora, durante a guerra civil espanhola: estar num campo é fazer a apologia dos seus chefes. O El Pais, como outra imprensa espanhola, tornou-se uma arma de guerra, com editoriais inflamados, apoio aos juízes que determinavam a prisão e suspeitas sobre os que hesitavam, pressão sobre o PSOE, cronistas desexpressoembestados como Vargas Llosa, defesa do discurso do rei, promoção das campanhas de Rajoy e de Arrimadas. Correu mal.

Mas o problema de fundo é a própria concepção da função da imprensa. E a questão é também portuguesa, na escala da escaramuçazinha. Lembre-se de que, quando o parlamento terminou os duodécimos que substituíam o subsídio de Natal, os títulos foram “Salário desce em janeiro” e “fim dos duodécimos encolhe salários até 90 euros”, quando o salário total pago é exactamente o mesmo. Imprensa de guerrilha. Ou a capa do Expresso na semana em que a Fitch retirou Portugal do “lixo”: “Metade das casas (em Pedrógão) está por construir” (a boa notícia é que metade já está pronta?). Imprensa de guerrilha. Só pode correr mal.

DETOX DIGITAL

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 23/12/2017)

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Clara Ferreira Alves

(Nota: Quando a Dona Clara não escreve sobre política nacional costuma acertar. É o caso. Estátua de Sal, 23/12/2017)


Quando nos asseguram que a tecnologia é amiga da humanidade não sabem o que dizem. Nem toda a tecnologia é “amiga da humanidade”. A tecnologia é neutra. E gananciosa e monopolista

O barco aproximava-se de Delos, uma das ilhas Cíclades no Mar Egeu. O sol prateava o mar azul da Grécia e o barco tinha poucos passageiros. O país estava no apogeu da tragédia humanitária durante a austeridade, composta pela instabilidade política. Delos, o lugar do santuário de Apolo, cerca de 3,5 quilómetros quadrados de esplendor da Antiguidade, estava entregue à secura das silvas e aos lagartos, víboras e insetos que planavam sobre o rosto das estátuas desfiguradas pelo tempo. E às aves marinhas que cirandavam livres de humanos. O museu estava meio fechado, não havia guias nem turistas. Era o tempo perfeito para apreciar Delos. Para admirar a harmonia clássica do berço de Apolo e Artemis, da sede da Liga de Delos. É um lugar mitológico e arqueológico sem paralelo. Uma pequena ilha que pela sua importância comercial e política se tornou um depósito de tesouros e edifícios. O barco atracou. Além de mim, um grupo de jovens chineses, mais raparigas do que rapazes. Bem vestidos. Durante a viagem entre Mykonos e a ilha nunca olharam o céu ou o mar. Estavam afocinhados nos telemóveis trocando mensagens com o polegar oponível. Desembarcámos. Olharam em volta com enorme indiferença, maçados por não haver guias, e continuaram afocinhados nos telemóveis. Por curiosidade, andei com eles durante uns minutos, até perceber que não tencionavam conhecer Delos. Foram até ao majestoso Terraço dos Leões, tiraram umas fotografias deles com os telemóveis. Não foram à casa do Tridente, ou à de Dionysos, à dos Golfinhos ou à das Máscaras, à de Cleópatra ou à do Lago. Não viram o Teatro, a Ágora dos Italianos, a Via Sagrada ou o Templo de Ísis. Não contemplaram os mosaicos. Ficaram no embarcadouro, à espera do barco da volta, ensimesmados. Desistiram de saber fosse o que fosse sobre Delos. Consegui a abertura do museu, por um encarregado que não recebia salário do Ministério da Cultura há meses. No embarcadouro, os chineses pastavam à minha espera, irritados. Afocinhados nos telemóveis. Na viagem de volta, repetiram as mensagens com polegares oponíveis e tiraram selfies e mais fotografias uns aos outros.

Sabe-se que existem na China centros de desintoxicação digital. Os jovens viciados em ecrãs de computador e videojogos, sobrecarregados por horas e horas de saturação digital com prejuízo da vida e saúde, são coagidos a frequentar campos de concentração onde são sujeitos a privação. O sofrimento da privação é, consta, pior do que o da toxicodependência e as tentativas de suicídio são normais. Na prática, esta gente desistiu de viver fora do mundo real e apenas se relaciona de modo virtual. O modelo chinês de desintoxicação não se caracteriza pela subtileza ou a compaixão e os internados comportam-se, ou são obrigados a comportarem-se, como prisioneiros de um gulag. O problema consiste em retirá-los para sempre do vício porque, uma vez libertados, a solicitação digital é omnipresente e não proibida e regressam à dependência. Esta gente desistiu de viver, simplesmente. Limitam-se às relações desumanizadas pela tecnologia.

Se pensam que estamos a salvo disto no nosso belo mundo europeu, esqueçam. Basta olhar em volta e ver como as pessoas estão umas com as outras nos cafés e restaurantes. Cada um olha para o seu telemóvel e só interage com o outro para mostrar algo no ecrã. O meio é a mensagem e a perversão que isto introduz nas relações humanas é absoluta. Não se trata apenas da selfie e do post, é um mundo mediatizado através da informação que escorre da maquineta. Quando nos asseguram que a tecnologia é amiga da humanidade não sabem o que dizem. Nem toda a tecnologia é “amiga da humanidade”. A tecnologia é neutra. E gananciosa e monopolista. Do mesmo modo que os cigarros, nos anos 50, eram considerados símbolos de promoção social e excelentes tónicos físicos e psicológicos, um dia ficaremos a conhecer os danos da luz azul e da tecnologia digital para os nossos cérebros. Que o algoritmo da Google está a destruir a memória humana e a tornar-nos mais estúpidos não tenho dúvidas. Stupid people com smartphones. Há dados científicos que o provam. E que os telemóveis estão concebidos para provocar a dependência extrema nos súbditos, também não tenho dúvidas. Tal como a nicotina e as drogas foram dissimuladas nos cigarros para promoveram o vício secretamente, um truque das tabaqueiras que só veio a ser descoberto dezenas de anos mais tarde através de um denunciante, um dia viremos a concluir que a intoxicação tecnológica está a dar cabo da nossa fisiologia e da nossa humanidade. E da filosofia a que chamamos, bem ou mal, humanista, e que é antropocêntrica. E teremos centros de rehab tecnológica.

Aquele grupinho de jovens chineses, herdeiros de uma elite endinheirada que lhes paga viagens à Europa e que lhes compra malinhas Chanel e Gucci, conseguiu olhar para o esplendor de Delos sem nada ver. Ou compreender.

Se é este o admirável mundo do futuro, dirigido por quem não sabe distinguir Apolo da Apple, prefiro ficar no passado. Nos livros de papel, nas estátuas de pedra, nas telas a óleo, nas partituras clássicas.

Os novos bárbaros estão no meio de Roma.

A insuportável evidência das coisas

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/12/2017)

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Miguel Sousa Tavares

1 Assim que foram privatizados, os CTT encerraram o posto de correio que ficava a cem metros de minha casa, em Lisboa — um entre dezenas ou centenas que vêm encerrando pelo país todo, e em especial no interior, que todos os políticos juram não querer ver desertificado. Agora o mais próximo da minha área de residência fica a dois quilómetros. É preciso ir de carro e só por milagre se arranja lugar para estacionar nas proximidades. Seria de crer que o encerramento de balcões tivesse conduzido a uma concentração de pessoal em menos, mas maiores e melhores balcões, mas, no caso concreto, foi pura ilusão: aparentemente, nenhum dos funcionários do posto extinto se transferiu para este. Mas os utentes, esses sim, dobraram em número e nem sequer têm cadeiras suficientes para se sentarem enquanto esperam: da última vez esperei 25 minutos para levantar uma carta registada — a pior coisa que alguém me pode mandar hoje em dia. Do fundo do coração, só posso agradecer a Passos Coelho, Paulo Portas, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque o notável benefício que trouxeram ao concreto da minha vida. Eu e milhões de outros portugueses.

Os CTT públicos eram  uma empresa eficiente e rentável: dava, em média, €60 milhões de lucros por ano ao Estado e cumpria, sobretudo na província, uma função social preponderante. Isso, mais o facto de ser um serviço público funcionando em regime de monopólio, deveria aconselhar qualquer pessoa minimamente dotada de sensatez (já não falo de ideologias) a pensar dez vezes antes de se decidir pela sua privatização. Mas nada deteve a teimosia de Passos, feita de um liberalismo enxertado à pressa, talvez pelo mestre António Borges, o je-m’en-fichisme de Portas e, desculpem a ousadia, a impensável incompetência económica de que a dupla Gaspar/Maria Luís deram provas.

Mas podiam ao menos ter revelado algum sentido de história, lembrando-se do que foi a privatização dos correios ingleses, levada a cabo por Margaret Thatcher, e que conseguiu transformar um serviço, que já no reinado da Rainha Vitória era conhecido por ter duas distribuições diárias de correio, numa atividade quase terceiro-mundista. Porém, preferiram privatizar os CTT, dando ainda como benesse uma licença bancária, cuja finalidade era transformar os postos de correio em agências bancárias e as pensões dos reformados em depósitos à ordem ou em investimentos a cargo do banco. Hoje, três anos decorridos, constatamos várias coisas: que o serviço postal é uma droga, sem apelo; que fecharam balcões e despediram trabalhadores; que os accionistas retiraram uma média de €80 milhões por ano, onde o Estado só retirava €60 milhões; e que estão semifalidos. Por conseguinte, acabam de anunciar mais 800 despedimentos, e mais uns quantos encerramentos de balcões. E sabem o que aconteceu no dia a seguir a este anúncio? As acções dos CTT chegaram a subir 10% na bolsa. Ou seja: aquilo que é mau para o país e para os trabalhadores da empresa, é bom para os accionistas. Alguém quererá pedir desculpa pela privatização dos CTT?

2 E, todavia, já sabíamos de cor a lição: sempre que algum serviço público essencial, funcionando em monopólio, é privatizado, o resultado é invariavelmente um serviço pior e mais caro, com lucros garantidos por uma subterrânea teia de cumplicidades e promiscuidades entre políticos e empresários e à custa dos utentes. Foi assim com a PT, com a Galp, com os CTT, com a EDP. A EDP é mesmo o case study absoluto.

Por mais que me tenham tentado explicar ou eu tentado perceber, até hoje ainda não consegui entender de onde vem e quando termina o célebre “défice tarifário” que constantemente nos atiram à cara. Pois se eu pago a electricidade doméstica mais cara da Europa a 28, como é que ainda estou em défice? Se 75% dos portugueses disseram esta semana numa sondagem que passam frio em casa para pouparem electricidade, como é que ainda estamos em défice? E se, como não se cansam de repetir, somos o país mais avançado em matéria de fontes alternativas (e grátis) de energia, como é que pagamos a electricidade mais cara da Europa? Cada vez que falo ou escrevo sobre isto, há um diligente funcionário da EDP que se dá ao trabalho louvável de me enviar um longo e-mail cheio de números e explicações e cuja conclusão é a de que a electricidade não é cara, os impostos é que são. Mas, continuo na mesma: os impostos incidem sobre o montante da conta, logo, se esta fosse baixa ou normal, também eles o seriam. O que sei é que nós pagamos nas contas de electricidade €2,5 mil milhões anualmente para uma coisa chamada CIEG (Custos de Interesse Económico Geral — seja lá isso o que for). E parece que os ditos CIEG não têm nada que ver nem com os custos de produção nem com os de distribuição de energia — de tal forma que, enquanto o consumo global de electricidade dos portugueses em 2013 era igual ao de 2006, já o que pagámos pelo CIEG nesse período multiplicou por cinco, de €500 milhões anuais para €2,5 mil milhões (informação que agradeço ao Rui Rodrigues, que creio ser o inimigo nº 1 da EDP). E também sei que o governo, que orgulhosamente foi “ainda além da troika”, só ficou aquém na recomendação para que cortasse nas “rendas excessivas” da EDP e até correu com um secretário de Estado que se atreveu a querer fazê-lo.

Esta semana, o “Público” trazia um excelente trabalho de investigação da jornalista Cristina Ferreira, sobre esse fenómeno de sobrevivência que é António Mexia, o CEO da EDP, distinto e incontornável membro daquilo a que em tempos chamei o Clube da República — uma centena de personalidades da política, da banca e do mundo empresarial que, de facto, eram os ‘donos disto tudo’. Hoje, o clube foi devastado, essencialmente pela sua ambição sem limites e o seu sentimento de impunidade. Mexia é, practicamente, o único membro do clube que sobreviveu no activo. Sobrevivência tanto mais notável, pois ele, tendo servido (e, segundo consta ou faz constar, brilhantemente) todos os senhores que havia para servir em cada momento — Cavaco, Salgado, Santana, Passos, Sócrates e o Partido Comunista Chinês —, manteve-se sempre no topo e sem nunca arriscar um euro seu. A biografia de António Mexia é, de facto, o retrato do regime nestes últimos 30 anos, entre crises e euforias, surdas conspirações, densas manobras de bastidores, movimentos ocultos, cumplicidades e traições, e milhões, sempre milhões, no princípio e no fim de tudo. Dava uma peça de teatro ou um thriller sem tempos mortos. Que relação é que isso possa ter com o custo da electricidade que pagamos é o que fico à espera de ver esclarecido pelo meu prestável correspondente da EDP.

3 A activação do artigo 7º do Tratado de Lisboa por parte da UE contra a Polónia é apenas um pequeno passo, que poderá ser inconsequente, se não for seguido por outros, como as represálias orçamentais. Mas é um passo simbólico importantíssimo: a União Europeia, cujo fundamento primeiro é a união entre Estados democráticos e cuja função primeira é a protecção dos cidadãos contra os abusos dos Estados, não pode continuar sem reagir à progressiva deriva totalitária de países como a Polónia, a Hungria, a Roménia, a Eslováquia e a República Checa — com a Áustria e a Finlândia sob observação. Ainda por cima, quando essa deriva antidemocrática acompanha um nacionalismo populista e desemboca num racismo sem pudor em relação aos refugiados, que recusam receber em absoluto. A Europa é baseada na democracia e na solidariedade e se estes antigos satélites da URSS no leste, a quem a UE abriu demasiado apressada e levianamente a porta, o não querem entender, então não há lugar para eles na Europa. Na nossa Europa. O que está em jogo é muito mais importante do que a questão das dívidas ou dos défices, da união bancária, da uniformização dos regimes fiscais ou até do que o ‘Brexit’. É a própria ideia da Europa como baluarte principal da democracia e das liberdades individuais. Sobre isto, não pode haver qualquer margem de compromisso ou de negociação.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia.