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sábado, 17 de março de 2018

Marielle: mulher, preta, lésbica, humanista, popular. Inconveniente.

por estatuadesal

(Paula Cosme Pinto, in Expresso Diário, 16/03/2018)

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O Brasil volta a mostrar-nos da pior maneira que aqueles que arriscam desafiar privilégios e poderes instituídos ainda podem pagar caro pela ousadia. Marielle Franco era uma dessa pessoas e a sua vida, vivida em prol da luta pela igualdade e dignidade de todos, por todos, foi o preço a pagar.

Tenho a certeza que a história de Marielle Franco acabará por ser transformada num filme, porque numa sociedade tão discriminatória e desigual como é a brasileira, tudo no seu percurso é digno de aplauso e surpresa. Marielle nasceu menina, preta e pobre, no meio de uma favela do Rio de Janeiro. Tudo isto poderia ter ditado desde logo o rumo da sua vida, como acontece com tantas outras meninas nascidas neste contexto. Sim, Marielle foi pobre durante boa parte da sua vida, sim Marielle foi mãe adolescente, sim Marielle conheceu de perto o que era a vida marginal fomentada pela pobreza e pela falta de oportunidades. Contudo, a vida de Marielle não foi só isso. E quando alguém consegue fugir à norma, isso pode ser perigoso para quem dela se alimenta.

Marielle, que foi ontem assassinada com quatro tiros na cabeça, era uma socióloga formada pela PUC-Rio e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense. Para tema de dissertação de mestrado apostou num trabalho sobre "UPP: A redução da favela a três letras", universo que ao longo da sua carreira fez sempre parte de uma luta pessoal. Ativista ferrenha pelos direitos humanos, trabalhou em organizações da sociedade civil e entrou na política para coordenar a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Em 2016, a sua fama de justiceira já a precedia, e embora se tenha candidatado com poucas expectativas, acabou ser a quinta vereadora mais votada do Rio nas eleições, com 46.502 votos. O povo queria Marielle, e confiava nela, porque ela era uma das suas.

MARIELLE ERA A PERSONIFICAÇÃO DA RESISTÊNCIA CONTRA O PODER DOS PRIVILÉGIOS INSTITUÍDOS

Sim, ela era mulher, jovem (38 anos), vivia numa favela até aos dias de hoje por opção, era lésbica, feminista, voz crítica contra a violência policial, bem-sucedida contra todas as expectativas, admirada e respeitada pelo povo, aquele que representa boa percentagem da população real do Rio. Os mesmos que votaram nela e que cada vez mais lhe davam poder e ouviam as suas angústias ganhar palco através da sua voz. Escusado será dizer que isto era demasiado inconveniente. Mais inconveniente ainda era o trabalho que ela estava a fazer enquanto parte integrante de uma comissão de investigação aos abusos da intervenção militar no Rio de Janeiro. Fiel à sua conduta, Marielle pedia o dedo na ferida e tonava-se cada vez mais incómoda. Pagou com a sua própria vida.

A vereadora do PSOL era a personificação da resistência contra os esquemas, o poder dos privilégios instituídos e a discriminação, alimentada por tanta gente, em prol da ganância e do bem-estar de tão poucos. "Quantos mais têm de morrer para que essa guerra acabe?", perguntou Marielle Franco um dia antes de ser morta. A violência da sua execução – sim, é disto que se trata – é uma mensagem clara, vinda de várias esferas dos todos poderosos que se alimentam precisamente desta guerra. A ideia foi certamente deixar um aviso no ar, principalmente aos mais de 46 mil cidadãos que votaram nela: isto pode correr muito mal para quem ousar desafiar a norma da corrupção, da violência, da xenofobia, do medo, da misoginia, da discriminação, dos ricos que serão sempre ricos e dos pobres que se quer que sejam sempre pobres, dos pequenos e dos grandes poderes, dos que mandam e dos que devem acatar ordens e destinos com temor. Marielle estava do lado certo da história, e demasiada gente tinha noção do impacto que isto poderia ter a curto prazo.

Contudo, a motivação destes quatro tiros que tiraram a vida a Marielle Franco podem sair pela culatra. E digo isto porque não sei até que ponto será o medo o grande vencedor neste momento trágico. A indignação, daquelas que têm o condão de cegar o temor e motivar a fome de justiça, podem falar mais alto no meio disto tudo num Brasil que atualmente parece uma panela de pressão. Esperemos que assim seja, e que a revolta não se fique pelas redes sociais.

Uma brava história de um homem

por estatuadesal

(João Quadros, in Jornal de Negócios, 16/03/2018)

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João Quadros

Stephen Hawking, o físico e pesquisador britânico, morreu aos 76 anos na passada quarta-feira, em sua casa na Inglaterra. Uma enorme perda para o mundo mas penso que nada seria mais ofensivo que desejar: "paz à sua alma", ou dizer - "que Deus o guarde" ou "foi para um lugar melhor".

Ao contrário do que alguns afirmam, Hawking não dizia que não acreditava em Deus, o que o físico afirmava é que Deus não existe. Hoje é sexta-feira, Hawking já morreu há dois dias e , até agora, não se manifestou, o que me leva a pensar (eu já pensava) que ele tinha razão. Se Hawking fez o que fez, preso a uma cadeira com uma terrível doença degenerativa, não havia de ser por estar morto, e a viver no além, que não arranjava maneira de contactar connosco.

Muitos jornais salientaram a "transcendental" coincidência de o Hawking ter nascido no mesmo dia do aniversário de 300 anos da morte de Galileu Galilei (1564-1642) e ter morrido no dia em que nasceu outro brilhante físico, Albert Einstein, a 14 de Março de 1879. Como se Deus tivesse um Dia Universal do Cientista e resolvesse festejá-lo de várias e duvidosas formas.

Ao contrário das piadas que foram feitas sobre a sua morte (algumas o seu enorme sentido de humor apreciaria) acho que este tipo de notícias com coincidências, a fazer crer em algo de divino, é que iriam irritar o Stephen Hawking (caso houvesse aquilo que ele garantiu que não havia). Isso é tudo muito relativo. Fui investigar e Hawking morreu no mesmo dia que Karl Marx (à atenção do Rui Ramos do jornal o Observador) e também nasceu no mesmo dia em que veio ao mundo Kim Jong-un, esse génio dos foguetes.

Há muita gente que precisa de acreditar que "há mais para além disto", estamos todos presos numa espécie de divina superstição, somos humanos e não é fácil. Quando entrou em funcionamento o maior acelerador de partículas do mundo, especialmente concebido para explorar os grandes enigmas do Universo e desfrisar o cabelo do comentarista Rui Santos, houve quem pusesse a hipótese dessa experiência poder criar um Buraco Negro, capaz de engolir toda a Terra e até talvez o nosso Sistema Solar e acabar com o Universo. Um disparate, mas consta que os cientistas, pelo sim pelo não, bateram três vezes na madeira antes de ligar a máquina.

Sou um admirador de Stephen Hawking. não só pela forma como resistiu aos limites da sua terrível doença, como pelas suas ideias em relação ao Universo, e a não existência de Deus. Foi a nossa sorte uma mente brilhante como aquela ter resolvido optar pelo lado do bem. Segundo o que estamos habituados a ver nos filmes do 007, Hawking tinha tudo para ser o arquétipo do génio do mal. Podia ter dedicado a sua vida a produzir uma arma que aniquilasse a raça humana, ou pior, podia ter ido para o Goldman Sachs.


TOP-5

Teoria de nada

1. Portugal consegue vender dívida à taxa mais baixa de sempre - malditos mercados que se revêm nas esquerdas encostadas.

2. Elon Musk, o empresário do espaço e dos carros eléctricos, quer agora fazer humor - está tramado, é mais fácil chegar a Marte que ser politicamente correcto na Terra.

3. Nos EUA, um professor disparou acidentalmente uma arma durante uma aula sobre segurança com armas de fogo - foi a primeira vez que uma arma de fogo foi disparada numa escola nos EUA... acidentalmente.

4. Fernando Negrão considera que Feliciano Barreiras Duarte não está fragilizado- fragilizado era se, apenas, tivesse o apoio de 39% da bancada do PSD.

5. Assunção Cristas já se vê como PM de Portugal - Com 6% nas sondagens, cheira-me que há aqui mãozinha da mental coach do éderzito.

UM LÍDER MAL PREPARADO?

por estatuadesal

(In Blog O Jumento, 17/03/2018)

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Rui Rio é o líder partidário que esteve mais tempo a preparar a sua candidatura à liderança do PSD, durante anos dedicou-se a “fazer a cama” a Passos Coelho. Era suposto que ao fim de anos de preparação soubesse o que queria, fosse claro nas matérias e opções em que se demarca do seu antecessor, tivesse constituído uma equipa experiente e que conhecesse bem. Mas nada disto parece suceder até parece que Rui Rio chegou à liderança do PSD só porque se lembrou de vir a Lisboa dar quilómetros de estrada ao seu velho Simca.

O caso do “scholar visitor” revela muita incoerência e alguma falta de inteligência. O secretário-geral do PSD não deve ter a coerência de Rui Rio em grande conta, se assim não fosse ter-se-ia lembrado que não sabe onde fica a Califórnia e quando foi convidado para secretário-geral do PSD teria dito que não ou informado Rui Rio que tinha telhas muitas frágeis no seu telhado. Preferiu achar que o discurso da ética era para inglês ver e quando foi denunciado disse umas baboseiras.

Rio deveria ter percebido, desde a primeira hora, que estava perante uma falha ética demasiado grave para sugerir que se enquadrava nos golpes de que estava à espera.Na posse de todos os dados Rui Rio mandou os seus valores da ética às urtigas e preferiu fazer os portugueses de parvos. Acabou por se dar muito mal e ao fim de mais de uma semana acabou por entender aquilo que alguém com uma inteligência mediana percebeu na primeira hora.

Como se tudo isto não bastasse, Rio em vez de dar a cara e ao lado do seu secretário-geral informar que aceitou o seu pedido de resignação, optou por uma jogada digna de um pequeno Estaline com sotaque da Foz. Desapareceu, mandou um vice empurrar pela borda fora e fez constar nos jornais que esperava que o pobre diabo se cremasse em público. Enfim, uma forma muito ética de resolver os problemas que ele próprio ajudou a criar.

É cada vez mais óbvio que Rui Rio pode ser um grave problema de casting, um mês depois do congresso só cometeu erros; desde a sua chegada à liderança do PSD que só se aproveitam os momentos prolongados de silêncio. Não admira que suba ligeiramente nas sondagens, todos os políticos que não se deixam ver têm uma boa imagem. O problema é que ninguém ganha eleições estando em parte incerta, com um secretário-geral criativo, e vice-presidentes que parece terem sido escolhidos por estarem disponíveis para jogadas sujas.

Pensar fora da caixa ou seja fora do “economês” da troika

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 17/03/2018)

JPP

Pacheco Pereira

Aquilo que talvez mais distinga a possibilidade de se poder andar para a frente num país como Portugal é a capacidade de sair do pensamento, do vocabulário, do argumentário, da política e mesmo da filosofia dos anos da troika e da herança ainda demasiado viva e poderosa do “economês” da troika. Os anos de lixo que vivemos são-nos apresentados como tendo sido um período de resistência “reformista”, quase heróico, após a bancarrota, atravessando todas as dificuldades e conseguindo no fim “sair” sem consequências de maior e ainda por cima “mais bem preparados” para o futuro imediato, “permitindo” a “coragem” “passista” a recuperação “costista”. Teria sido um período de “verdade” da nossa economia e sociedade, uma espécie de limpeza lustral de tudo aquilo que nos tinha “afundado” na bancarrota, o Estado, o despesismo, o “viver acima das suas posses”, os excessos sindicais, o crescimento da função pública, o “socialismo”, a “social-democracia”, e a corrupção BES-Sócrates, e uma sociedade de “direitos adquiridos”, ou em que os mais velhos exploravam “injustamente” os mais novos, porque tinham reformas e pensões.

Eu quase que tenho que pôr todas as palavras entre aspas para indicar que o seu uso é ideológico, e sem qualquer correspondência com a realidade, e que remetem para um universo orwelliano de manipulação das palavras e das ideias. Nem houve reformas, o que houve foi um “brutal aumento de impostos” de que ainda não saímos, nem podemos sair, visto que ele é a coluna vertebral do cumprimento das chamadas “regras europeias”. Nem houve qualquer “recuperação” estrutural da nossa economia, muito menos resultante das “reformas” laborais que tornaram ainda mais desigual a relação entre patrões e trabalhadores, nem houve qualquer diminuição do peso do Estado na economia, bem pelo contrário. E pagou-se um preço caro na institucionalização à margem da vontade popular e da Constituição, de uma servidão a uma certa política europeia, com perda de poderes dos parlamentos e de soberania.

Há três pressupostos que não vou desenvolver aqui, mas sem os quais não se pode pensar fora da caixa da troika: a democracia é um regime frágil face à barbárie; o objectivo da “boa” política é garantir que as pessoas melhorem a sua vida enquanto a vivem; e um desses aspectos básicos da “melhoria” é dar-lhes mais poder, permitir o “empowerment” individual, social e colectivo, assente na procura da igualdade social, cultural e política.

É tão simples como isto: ou se luta por estas coisas, ou perde-se democracia, riqueza e igualdade. Tudo o que se perdeu nos anos de lixo da troika. Ah!, e não era inevitável que fosse assim, podia ser de outra maneira, mas não foi, e esta é a mais importante mentira que deve ser combatida.

Nenhum destes pressupostos é adquirido, e uma das coisas que o “economês” da troika fez foi atacá-los. Atacou a democracia, subordinando-a um determinado tipo de política económica e social apresentado como sendo a “realidade” que não se podia mudar. É difícil imaginar melhor forma de autoritarismo do que chamar para o seu lado a “realidade”. É como dizer que Deus estava ao lado da economia neoliberal. Atacou a democracia pondo em causa a soberania nacional — sim, é um valor da democracia face ao não democrático processo da União Europeia e do Eurogrupo —, diminuindo o poder do Parlamento e desse modo desvalorizando a liberdade do voto popular, que passa a ser de primeira, nos partidos europeístas, e de segunda nos que criticam o caminho seguido pela Europa. Atacou a democracia propondo sistematicamente legislação inconstitucional e criticando o Tribunal Constitucional pelo seu papel na defesa da legalidade.

Atacou o “melhorismo”, disfarçando transferências de bens e recursos entre grupos sociais no presente, empobrecendo uns e enriquecendo outros, com argumentos neomalthusianos sobre o “futuro”. Atacou e desprezou a mobilização dos cidadãos, remetendo-a para um limbo de ineficácia, tentando destruir todos os instrumentos de mediação, enfraquecendo o seu papel na defesa de direitos conquistados.

Estamos tão viciados na maneira de pensar ao modo da troika que não somos capazes de colocar as prioridades no sítio certo. No debate sobre a Segurança Social, por exemplo, uma das áreas mais devastadas por várias crendices neomalthusianas, a questão da “sustentabilidade da Segurança Social” aparece sempre em primeiro lugar, com o pressuposto a reboque de que dar-lhe “sustentação”  é “poupar”, a expressão orwelliana dos anos da troika para “cortar”. E se experimentássemos pensar de outro modo, o modo como um democrata-cristão, um social-democrata e um socialista podem pensar, se forem fiéis às suas fontes? Sim, é preciso reformar a Segurança Social e para isso primeiro que tudo é preciso que ela “segure” quem mais precisa, é preciso maximizar essa “segurança” para os mais pobres, os mais velhos, os mais desprotegidos. Experimentem começar por aí e verão que mesmo com os actuais recursos é possível fazer muito melhor e “dar”, outra palavra maldita, mais às pessoas que precisam. E, depois, e só depois, pensar como isto  se pode fazer de forma sustentável, vendo que recursos se podem trazer para a Segurança Social e como é que se pode racionalizá-los e poupar sem aspas. É que não se chega aos mesmos resultados, se se começar por um lado ou por outro, porque a Segurança Social não é uma coisa neutra em cima de uma mesa sujeita apenas a leis da economia, se é que existem, e da “realidade”, mais uma construção social, atrás da qual estão muitos anos de luta e sacrifício, sem aos quais não existia. E não existia, porque tem adversários e inimigos, e tem políticas e políticos que, em nome da sua visão da sociedade e da economia e do modo com gerem ou são “capturados” por diferentes interesses, não consideram prioritário que haja uma rede universal que proteja as pessoas e proclamam que isso é “socialismo”. O debate à volta do Obamacare nos EUA pode ensinar-nos a perceber com clareza como é que se movem interesses e políticas na questão da Segurança Social ou da Educação ou da Saúde.

Para o PS, que é hoje no plano prático um muito capaz defensor do “economês” da troika, mas em particular para o PSD, ainda subordinado aos mitos do papel do “passismo” e preso na sua herança, é vital que se passe e pense à frente para fora da caixa da troika. Sejam mais radicais a pensar e depois moderados na acção, como é apanágio da democracia. Pensem sem a “realidade” com que vos querem manietar e que não é realidade nenhuma, mas um quadro político e ideológico que devastou a alternativa política na Europa, reforçou o populismo, abriu uma crise em todos os sistemas políticos e, acima de tudo, tirou o poder às pessoas e empobreceu-as. Pensem com seriedade e profundidade o caminho desastroso da Europa, e o modo como evitá-lo, sem tabus. Não vão conseguir fazer tudo e muito menos ao mesmo tempo, mas experimentem e vejam os resultados.

Não é assim muito difícil. Basta começar por outro lado, por um lado diferente, onde há muito mais pessoas e menos abstracções, menos dinheiro mas mais trabalho, mais vontade de igualdade do que de poder. Talvez um dia de manhã, naquela hora de pensamento mais livre, aquela a que os anarquistas chamavam a “bela aurora”, percebam como é o mundo se pensado fora desse terrível molde.

Singularidades da política portuguesa

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/03/2018)

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Miguel Sousa Tavares

1 Se Feliciano Barreiras Duarte deve ou não permanecer no lugar de secretário-geral do PSD é uma questão que só interessa ao partido e a Rui Rio. A nós, o que nos interessa é constatar que nem após o triste caso de Relvas e outros semelhantes passou de moda esta tentação de confundir méritos individuais com qualificações académicas, nem que arrancadas a ferros: chama-se a isso saloiice e é uma verdadeira doença portuguesa. Hoje, qualquer Zé Careca se intitula doutor por extenso e, depois de Bolonha, são todos mestres de qualquer coisa. E tudo isso para quê, ó mestre e futuro doutor Feliciano?


2 Na sua célebre entrevista à SIC, o juiz Carlos Alexandre, que tinha, e tem, a instrução do processo contra José Sócrates, numa indirecta ao arguido, disse que não tinha amigos ricos que lhe emprestassem dinheiro. Mas, afinal tinha, como mais tarde reconheceu: o seu amigo Orlando Figueira, o procurador do Ministério Público agora sob julgamento, acusado de ter sido subornado para arquivar o processo por branqueamento de capitais contra o ex-vice-presidente de Angola, Manuel Vicente.

Esta semana, depondo em tribunal a favor do amigo, o juiz — que a tal ponto nunca teve uma dúvida sob a culpabilidade de Sócrates que o manteve em prisão preventiva nove meses — também não teve uma dúvida em declarar a sua convicção na plena inocência do amigo. Porquê? Porque é seu amigo e essas coisas, declarou, “não estão na matriz dele”. E ele, Carlos Alexandre, que também aceitou a tese do MP de que os 25 mil euros mensais que Sócrates ganhava na Octapharma eram um salário fictício que, de facto, abatia a dinheiro de corrupção, não estranhava os 760 mil de adiantamento por um ano de salários (60 mil por mês) que o amigo Orlando Figueira tinha recebido por ter ido subitamente trabalhar para um banco angolano. A única coisa que o juiz não sabia e que o deixou “estupefacto” foi saber que o amigo fazia frequentes viagens a Andorra para ir buscar os ordenados aos poucos, por forma a que o fisco não desse por nada. Estamos sempre a aprender, afinal.


3 Para o debate quinzenal, António Costa escolheu o tema da limpeza das florestas. Fez bem pois a confusão reinante é geral. O que se limpa e o que se corta? A palavra de ordem inicial foi “tudo!” e seguiu-se uma selvajaria em muitos locais nunca vista: dizimaram-se os matos maus e os bons, os que guardam o húmus que fertiliza e retém a humidade das chuvas; arrasaram-se jardins e pomares; cortaram-se ciprestes e árvores de sombra; parreiras e latadas, tudo o que estivesse a menos de cinco metros de uma construção. Mas onde as autoridades, os ministros e as televisões não chegaram, a gente sábia deixou-se estar quieta a gozar o espectáculo na televisão. Quem limpa o mato que precisa mesmo de ser limpo, quem faz os desbastes, as queimadas, os aceiros? Resposta oficial: todos. Na práctica, faz quem pode, proprietários, autarquias, empresas contratadas, Governo. Com que prazo? Ah, prazo “à portuguesa”, esclareceu Marcelo. “Flexível”, acrescentou o ministro da Agricultura. “A GNR será sensata” a aplicar multas, concluiu o da Administração Interna. Conclusão: não há prazo. Quem paga? Para já, o Governo; depois, o Governo.

Hoje, qualquer Zé Careca se intitula doutor por extenso e, depois de Bolonha, são todos mestres de qualquer coisa.

Pior é a história dos meios aéreos. Vamos no terceiro ministro consecutivo que, com um ano para planear, consegue transformar tudo numa trapalhada. Miguel Macedo transformou mesmo tudo numa tamanha trapalhada, que está a ser julgado sob suspeita de crime; Constança Urbano de Sousa decretou o fim da época e o fim dos contratos antes do fim do calor, com consequências trágicas; e Eduardo Cabrita, com a casa mais do que arrombada e tempo mais do que suficiente, ainda não conseguiu pôr os helicópteros do Estado a voar nem pôr de pé um concurso a tempo e horas, lançando e anulando concursos, emendando cadernos de encargos, e, já em fase de pré-pânico, reduzindo as obrigações aos concorrentes para ver se eles não tiram demasiado partido da situação. Se tudo isto não acabar mal é por pura sorte.


4 Somos avessos a pensar para a frente e, menos ainda, a planear. E estas semanas de chuva intensa já nos fizeram esquecer que ainda há um mês o país suplicava por umas gotas de chuva e antecipava mais um trágico ano de seca. Falou-se intensamente das alterações climáticas, do que deveríamos fazer para estar preparados e... depois o silêncio. Tudo a chuva apagou. Na altura, ouvi Capoulas Santos falar sobre as medidas a curto e médio prazo para fazer frente à seca: estas compreendiam mais médias barragens e ligação de Alqueva a outras barragens do Vale do Sado e do Sul, de modo a continuar a permitir no futuro as culturas de regadio. Como é evidente, Capoulas Santos sabe infinitamente mais de agricultura do que eu, que tudo o que sei é por ouvir dizer. Mas ouvi sempre dizer ao meu guru na matéria, o Gonçalo Ribeiro Telles, uma série de coisas que o tempo só vem confirmando na razão que tinha. Uma delas era sobre Alqueva (de facto, com um lago lindíssimo), mas que ele nunca aprovou, defendendo antes uma quantidade de pequeníssimas barragens apenas destinadas a reter a água das chuvas ou das nascentes de superfície. De facto, não é por acaso que todos os anos se repete a falta de areia nas praias do Algarve e não só: uma barragem feita num rio não é inócua, retém as areias que esse rio levaria para o mar e depositaria nas praias. A natureza é assim: mexe-se a montante, paga-se a jusante. A profusão de barragens construídas, nomeadamente a favor da EDP e dos regadios, pagam-se depois nas praias.

Outra coisa que Ribeiro Telles sempre disse é que qualquer monocultura intensiva rebentava com o solo em pouco tempo. Por isso ele recomendava para o Alentejo as culturas tradicionais de sequeiro, intervaladas por pastagem e agricultura onde houvesse água, mas jamais regadio. O que se está a passar no amplo perímetro de rega de Alqueva é precisamente o contrário: uma monocultura intensiva de regadio, primeiro de olival, e agora também de amendoal, com um gasto de água exorbitante, levado a cabo sobretudo por espanhóis, deliciados com o eldorado de água a rodos e barata que ali encontraram. Esta quarta-feira, li no “Público” um desses raros textos em que, acerca deste tema, alguém se dedica a pensar para a frente e a propor-nos planear uma nova paisagem a nível nacional, em função da qualidade dos solos que temos e da perspectiva futura da água que não iremos ter. Chama-se “Primavera Silenciosa” e é da autoria da bióloga e professora Maria Amélia Martins-Loução. De leitura obrigatória para quem quiser perceber alguma coisa do assunto.


5 Assunção Cristas teve coisas boas e más no seu discurso de encerramento do Congresso. Boas, os temas que disse irem ser os seus principais. Más, a total falta de concretização em cada um deles. Sobre a Europa, por exemplo, limitou-se a dizer “vamos voltar a ter o nosso Nuno Melo!” — e foi quanto bastou à sala para aplaudir de pé. Esta semana, António Costa foi a Estrasburgo, falar sobre a Europa, num momento crucial para a Europa, e dizer qual a posição portuguesa em relação a temas fundamentais, como, por exemplo, a taxação, das multinacionais digitais, pelos lucros gerados nos países onde operam, de que a França já falara na véspera. No final, o “nosso Nuno Melo”, confundindo o Parlamento Europeu com o português, desatou a atacar António Costa pela situação portuguesa. Na sequência, gerou-se um debate entre os eurodeputados portugueses, ao ponto de o presidente do Parlamento Europeu interromper para dizer que a situação política portuguesa não era o tema do dia. De facto, se isto são as ideias para a Europa do CDS e o mandato de eurodeputado do “nosso Nuno Melo”, porque não regressa ele à AR, onde, aliás, foi um bom deputado? É claro que não teria o mesmo salário nem as mesmas mordomias, mas seria o local adequado para fazer oposição ao Governo...


(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)