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terça-feira, 15 de maio de 2018

Israel morreu

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/05/2017)

Daniel

Daniel Oliveira

É fim de semana e a praia está à pinha. Ouço, além do hebraico e do russo, todas as línguas do mundo. Aquela confusão poliglota é o melhor retrato da mistura israelita que a beleza das suas mulheres tão exuberantemente exibe. O contraste com Jerusalém é absoluto. Em vez do domínio asfixiante dos judeus ortodoxos, cujos bairros são, muito mais do que os dos árabes, bastiões de intolerância e conservadorismo, é ali que ainda se adivinha o que Israel já foi. Em vez do peso insuportável da história, onde as três religiões do livro se cruzam para mostrarem que são praticamente iguais e por isso não se entendem, é possível encontrar em Telavive os restos da esperança no futuro que o nascimento de Israel trouxe ao mundo.

Longe das fronteiras do conflito (na medida em que alguma coisa é longe de outra naquele pequeno pedaço de terra), podíamos dizer: Israel é uma sociedade tolerante, democrática e cosmopolita. Para quem, como eu, tinha acabado de chegar do Líbano (passando pela Jordânia para contornar a fronteira eternamente encerrada), até se podia dizer mais: que, ao contrário da selvajaria privada libanesa, ainda sobram em Israel alguns traços socializantes que o sionismo original transportava. Um sonho comunitarista que, no imaginário israelita, foi substituído pela violência conquistadora dos colonatos. Imagino que é por esta fachada agradável que se ficam os que, contra todos os factos, ainda defendem o indefensável.

Só que nunca fui a Israel sem ir à Cisjordânia. Sem passar horas em autocarros ou táxis e assistir à praxe quotidiana de velhos a serem humilhados por soldados imberbes. Só que visitei as pequenas cidades cercadas, falei com os professores que nunca sabem se os seus alunos conseguem passar os checkpoints em cada manhã. Com os médicos que falam dos que morrem dentro de ambulâncias, parados durante horas pela arbitrariedade das autoridades israelitas. Só que falei com os agricultores que veem as suas colheitas serem assaltadas por colonos com a proteção ativa dos militares. E falei com uns corajosos jovens israelitas que servem de escudos humanos para que este roubo não aconteça. Sabem que, ao contrário dos palestinianos, os militares ainda os consideram humanos. Só que vi o resultado do roubo de água, das demolições e da ocupações de casas, como se uma qualquer autoridade divina desse a um povo o direito de roubar ao outro o que lhe pertence. Vi a sabotagem organizada de forma metódica e paciente para tornar um Estado palestiniano inviável. Mais do que isso: para transformar a existência quotidiana dos palestinianos sadicamente insuportável, numa estratégia planeada e prolongada de expulsão de todo um povo da sua própria terra. Só que falei com mães palestinianas num país onde uma quantidade absurda de jovens rapazes passaram por prisões israelitas. Só que falei com os próprios jovens, que crescem na impossibilidade de não odiarem aqueles que os humilham desde o primeiro dia da sua existência. E concluí que o milagre é não haver em cada jovem palestiniano um candidato a terrorista.

Só que falei com árabes com cidadania israelita, os que tiveram “direito” a continuar na terra onde sempre viveram e que na prática são tratados como cidadãos de segunda. “Os árabes israelitas são um problema ainda maior do que os palestinianos e a separação entre os dois povos deverá incluir também os árabes de Israel... por mim eles podem pegar no seu baklawa (doce árabe típico) e ir para o inferno.” O homem que disse isto em 2008 era ministro dos Assuntos Estratégicos. Chama-se Avigdor Liberman, é hoje ministro da Defesa e assinalou os 70 anos de Israel com o encerramento do corredor humanitário para Gaza. Compreende-se esta desconfiança. Foi Ze’ev Boim, político proeminente do Likud (partido maioritário que governa) entretanto falecido nos EUA, ministro da Agricultura, da Habitação e da Imigração de sucessivos governos, que disse que o terrorismo dos palestinianos tinha razões “genéticas”. Um nacional-socialista não diria melhor. Assim sendo, já se sabe que não se pode confiar num árabe, tenha ele a cidadania que tiver. Como não se podia confiar num judeu.

E tudo isto me leva a dizer que Israel seria uma democracia se não fosse quase tudo. Assim como a África do Sul era uma democracia para os brancos que se estivessem nas tintas para os negros.

Também estive duas vezes em Gaza, acompanhando delegações heterogéneas de responsáveis políticos europeus. E depois de estar em Gaza passa a ser insuportável estar deitado numa praia de Telavive. Porque só é possível amar Israel se nos dotarmos de uma extraordinária insensibilidade humana perante tudo o que está à sua volta. Quem entra em Gaza nunca mais olha para aquele país da mesma forma. A claustrofobia de um território com tamanho do concelho de Tomar onde se amontoam quase dois milhões de pessoas miseráveis é insuportável. Cercada por um muro, os medicamentos e alimentos só entram quando os israelitas querem. O que se produz também só sai quando e se eles quiserem, num território hermeticamente fechado onde o desemprego se aproxima dos 70%. Os bombardeamentos ou as expedições militares punitivas são frequentes, destruindo infraestruturas fundamentais para a sobrevivência das populações e matando quem esteja no caminho.

Tudo nos transporta para Varsóvia, no início dos anos 40, onde os melhores líderes do sionismo socialista perderam a vida. Depois de ter combatido a polícia judaica, a ZOB (organização onde se juntavam sionistas de esquerda) foi a principal força no levantamento do gueto. Os seus líderes morreram do mesmo gesto derradeiro que leva muitos palestinianos a caminharem até à fronteira de Gaza esperando o tiro fatal que será celebrado por um militar israelita a quem explicaram, desde que nasceu, que do outro lado não está um humano. “A grande marcha do regresso”, que já custou a vida a dezenas de palestinianos da Faixa de Gaza, é um grito pelo direito a uma vida com dignidade. Ou, pelo menos, pelo direito a não ser recordado apenas como vítima.

Penso que foi depois de visitar Gaza que Mario Vargas Llosa, escritor e ex-candidato presidencial da direita peruana, reviu drasticamente a sua posição sobre Israel: “É extraordinário como integraram pessoas com diversas línguas e culturas. O trágico é que se transformaram num país colonial”. Conheci, numa outra viagem que fiz a Israel, um pouco desse país que Vargas Llosa elogia. Foi pouco depois de mais uma guerra com o Líbano e na cidade que mais a sentiu: Haifa. Haifa é no extremo norte do país. Sendo uma das cidades onde vivem mais árabes com cidadania israelita, é conhecida pela paz relativa entre judeus (desde os anos 90 muitos são de origem russa), árabes muçulmanos e árabes cristãos. Na sede de um movimento pacifista de mulheres judias e árabes que se batiam pela igualdade de tratamento dos respetivos grupos no processo de reconstrução ouvi de uma ativista judia mais velha um resumo simples do processo de ocupação: “Isto é como um queijo suíço, Israel fica com o queijo, a Palestina fica com os buracos”. E explicou porque não havia grandes razões para otimismo. A única vez que ela tinha visto muçulmanos, cristãos e judeus juntos foi quando os seus respetivos líderes religiosos se manifestaram contra uma marcha LGBT em Jerusalém. Só o ódio a terceiros os parece conseguir unir, resumiu.

Foi entre estes militantes do quase nada que sobra da esquerda Israelita, cada vez mais cercada por uma unidade nacional baseada no intolerância xenófoba, que mantém no poder a aliança sinistra entre um crápula como Benjamin Netanyahu e um neofascista como Avigdor Liberman, que encontrei os mais corajosos resistentes. E entre eles os mais ousados eram, sem qualquer dúvida, os refuseniks, jovens conscritos que enfrentaram a prisão e a rejeição social generalizada por não aceitarem a prestar serviço militar nos territórios ocupados. Cada vez mais insignificante, ainda havia, da última vez que lá estive, um Israel que resistia. Mas já nem os intelectuais que dantes se manifestavam em nome do respeito pelos direitos dos palestinianos abrem a boca. Pedem timidamente a paz, em declarações ocas de sentido e intenção. Israel é uma sociedade cada vez menos crítica, pluralista e aberta ao diálogo e à diferença. O cerco que fez aos palestinianos acabou por cercar os israelitas.

Sim, em Israel ainda há liberdade de expressão e de imprensa. O que torna tudo isto mais assustador. Foi possível instalar a desumanização do outro com uma repressão mínima dos israelitas. A responsabilidade é, neste caso, mesmo coletiva. O mal banalizou-se com pouquíssima resistência. Instalou-se até fora de Israel, perante a imposição da ideia absurda de que um povo que foi vítima do maior crime da história não pode, ele próprio, participar num outro crime. Esta ideia de que qualquer povo é portador de uma qualquer excecionalidade ética foi a base para os piores crimes cometidos contra os judeus. Foi até a ideia de que os judeus seriam feitos de uma massa diferente de todos os humanos, com as suas maravilhas e misérias, que serviu de argumento para os tentar extinguir. A condescendência com as políticas criminosas do Estado de Israel é filha do antissemitismo. Vive dos mesmos enganos.

Israel morreu. Foram os seus muros, os seus guetos e as suas purgas que o mataram. Era a esperança da humanidade. É a tragédia que nos lembra que a impunidade cria o monstro. É uma das maiores deceções da humanidade.

Israel fez um longo percurso numa tensão permanente entre diversas correntes do sionismo. A vitória definitiva e inelutável da sua versão revisionista só poderia terminar aqui.

Quando Menachem Begin, antigo líder do grupo radical Irgun, responsável pelo atentado ao Hotel King David (o terrorismo é sempre uma questão de perspetiva) e que viria a ser o líder histórico da direita israelita, visitou Nova Iorque em 1948 não foi recebido apenas com aplausos. Uma carta assinada por Hannah Arendt, Albert Einstein, Sidney Hook e mais 24 judeus era clara na sua avaliação do Herut, partido que daria origem ao Likud, chamando à atenção para o comportamento desta ala radical para com os árabes, que o massacre de Deir Yassin tão bem ilustrara: “Entre os fenómenos políticos mais perturbadores de nossos tempos está o surgimento no recém-criado Estado de Israel do Partido da Liberdade (Tnuat Haherut), um partido político próximo na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social dos partidos nazis e fascistas”. (ver AQUI). E foi o Likud e forças ainda mais extremistas que acabaram por determinar o que Israel é hoje.

O Estado de Israel nasceu de um sonho de liberdade e de segurança. O sonho era legítimo e o nascimento do Estado não o discuto. Nenhum Estado teve o direito natural a nascer e todos eles se afirmaram com guerras, crimes e ocupações. O problema é aquilo em que Israel irremediavelmente se transformou. O objetivo de expulsar os palestinianos da sua terra passou a ser constitutivo da identidade do país. O sonho de liberdade acabou num estado xenófobo, militarista e profundamente corrupto. Israel perdeu a alma. “Os nossos corações endureceram e os nossos olhos enublaram-se”, escreveu, em 2009, o jornalista israelita Gideon Levy nas páginas do Haaretz.

Perderam-se também os palestinianos. Outrora a elite dos árabes, tolerante e laico por força de viver num lugar de passagem e de encontro, o povo palestiniano foi deformado por 70 anos de opressão. Entalado entre o ódio e o colaboracionismo (diz-se que o cimento para a construção dos muros que os cercam foi vendido por empresas palestinianas), já nada de bom ali pode nascer. A última tentativa foram umas eleições livres boicotadas por uma “comunidade internacional” que não gostou dos resultados. Não perceberam que a vitória do Hamas contra a Fatah não correspondia a uma adesão ao radicalismo religioso, a que a maioria dos palestinianos sempre foi insensível, mas sim à punição de uma liderança corrupta. Foi a mais básica exigência cidadã que aplaudimos em qualquer democracia ocidental. E com este boicote, imposto pelo mesmo Israel que financiara o nascimento do Hamas para fragilizar Arafat, os palestinianos perceberam que também a democracia lhes estava interdita.

Israel nasceu com o apoio das forças mais progressistas no mundo, dirigido por homens e mulheres que sonharam viver numa pátria de liberdade. É hoje governada por um corrupto que depende de forças de extrema-direita e tem como maior amigo Donald Trump. Israel morreu. Foram os seus muros, os seus guetos e as suas purgas que o mataram. É uma tenebrosa prisão em que a vítima envelhecida repete muito do que aprendeu com o carrasco na sua juventude. Israel era a esperança da humanidade. Hoje é a tragédia que nos lembra que qualquer pessoa, povo ou Estado cometerá os piores crimes se nada fizermos para o impedir. Que a impunidade cria o monstro. Israel é uma das maiores deceções da humanidade.

A banca portuguesa é o cancro da nação

Novo artigo em Aventar


por João Mendes

Até os terroristas da Moody's concordam que o maior risco para Portugal continua a ser a banca. Esqueçam o que dizem os pulhinhas jornaleiros, que servem os pulhas que mandam nisto tudo: não trabalhamos pouco, não vivemos acima das nossas possibilidades nem somos despesistas, excepto nos casos em que o caro leitor acumula funções com a de pulha autárquico que usa dinheiro dos contribuintes para propaganda pré-eleitoral e derivados corruptos. Ler mais deste artigo

RUI RIO ENGANOU-SE NO NÚMERO DA PORTA

por estatuadesal

(In Blog O Jumento, 15/05/2018)

rio_sócayes

Parece que se esqueceram de informar Rui Rio de que Sócrates já não é primeiro-ministro desde julho de 2011 e que, entretanto, o PSD já governou uma legislatura. Depois de algumas pantominices, como o retiro espiritual no Porto a seguir a ganhar a liderança do PSD, o tratamento ridículo dado a Hugo Soares até lá meter o Negrão ou os consensos com o PS, Rui Rio decidiu ser um líder da oposição a sério, mas enganou-se no número da porta e actua como se o primeiro-ministro fosse o José Sócrates.

Digamos que Rui Rio não acerta como líder da oposição. Começa por centrar a oposição no ministro que ninguém quer que caia e que tem mais prestígio internacional e junto dos eleitores. Quando percebeu que não tinha sorte andando nas pediatrias dos hospitais para atacar Mário Centeno, o líder do PSD decidiu centrar a sua oposição num primeiro-ministro, mas como Costa está forte optou por um que ele julga que está na mó de baixo, José Sócrates.

Parece ser ridículo mas é verdade, desde que Rui Rio mandou Negrão ao debate com o governo atacar José Sócrates, questionando António Costa na qualidade de secretário-geral do PS, que todas as atenções se centram agora na ação dos ministros de … José Sócrates. Nas pastas das Finanças ataca-se Teixeira dos Santos, nas Obras Públicas o Mário Lino e por aí adiante, os únicos ministros de António Costa que merecem ser alvo de oposição são aqueles que também estiveram com Sócrates. O próprio Costa deixou de ser criticado pelo que faz como primeiro-ministro, mas sim como ex-ministro de Sócrates.

A ideia parece ser boa, mas revela incompetência. Se o PSD vai ao arquivo e ressuscita ministros para fazer oposição é porque não tem argumentos para criticar o governo que está em funções. Mas, não passa apenas uma imagem de incapacidade, dá de si uma imagem de cobardia, adoptou esta estratégia porque julgam que o PS deixou cair José Sócrates e este está definitivamente condenado. Aliás, um dos momentos mais miseráveis a que se assistiu no parlamento foi quando Fernando Negrão se referiu à acusação a Sócrates quase como uma condenação transitada em julgado.

Desde a posse deste governo que o PSD ainda não conseguiu fazer oposição; com Passos Coelho optou-se por aguardar pela vinda do diabo, Rui Rio opta por uma oposição quixotesca e vai à luta contra moinhos de vento.

Rui Rio revela-se um líder da oposição sem competência para esse papel, é incapaz de formular uma crítica; até ao momento ou fala de banalidades ou aproveita-se de incidentes para sugerir que a culpa é do Centeno. É incapaz de fazer uma crítica ao governo nos muitos dossiers geridos pelos seus governos. Agora desistiu mesmo de fazer oposição a este governo, optando por ser líder da oposição ao governo de … José Sócrates. Esperemos que quando quiser reunir com o Presidente da República não se engane, se o que o preocupa é Sócrates o lógico é que solicite a audiência a Cavaco Silva.

Que bela oposição, passa a imagem de quem não tem, argumentos, que não apresenta qualquer política alternativa, que espera desgraças para ter argumentos e que em vez de enfrentar Costa prefere fazer oposição a quem já não está no governo mas parece estar na mó de baixo. Enfim, estas são as qualidades  de um primeiro-ministro que espera que elas venham a ser premiadas pelo voto dos eleitores.

Uma visão Euro-Atlântica dos Açores

No amável convite que me dirigiu para participar nas celebrações do dia da Europa 2018, o Núcleo de Estudantes de Estudos Euro-Atlânticos sugeriu como tema central «Açores – 3 décadas de Integração Europeia: que conclusões e desafios?»

  1. Celebrar o 9 de Maio

A celebração do 9 de Maio como dia da Europa foi aprovada no Conselho Europeu de Milão de Junho de 1985, na sequência do relatório de “Pietro Adonnino”– representante de Bettino Craxi – e começou a ser celebrada no ano seguinte, já portanto com Portugal como membro de pleno direito da União Europeia.

Foi com efeito a 9 de Maio de 1950 que Robert Schuman, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, leu num salão do Quay d’Orsay o convite formal à Alemanha para a constituição da primeira comunidade europeia, a comunidade do carvão e do aço, que haveria de ser consagrada menos de um ano depois no Tratado de Paris a 18 de Abril.

Cinco anos antes, a rendição da Alemanha tinha sido assinada a 7 de Maio em Reims, e no dia seguinte, na presença e em território controlado pelas forças soviéticas, em Berlim; de acordo com o fuso de Moscovo a 9 e não a 8 de Maio. Essa rendição significou o fim do teatro europeu da segunda guerra mundial.

Nesses cinco anos muitos foram os acontecimentos marcantes para a construção europeia, nomeadamente o nascimento da Organização para a Cooperação Económica Europeia a 16 de Abril de 1948, que vai administrar o Plano Marshall norte-americano, organização de que Portugal é membro fundador; o Tratado de Bruxelas de 17 de Março de 1948, precursor da OTAN; ou ainda o Conselho da Europa estabelecido pelo Tratado de Londres de 5 de Maio de 1949.

Toda essa construção não seria compreensível sem a influência decisiva norte-americana e uma nova concepção do sistema de relações internacionais. O plano Marshall é uma revolução no conceito até aí vigente da construção da paz, é a aplicação à Europa da visão federal americana.

Jean Monnet e Robert Schuman, considerados a justo título como pais fundadores da Europa, são profundamente atlantistas – Jean Monnet até pela sua vida profissional – e esse atlantismo é indissociável da construção europeia.

Embora com características específicas, a construção comunitária europeia integra-se na ordem internacional do pós-guerra, tanto na dimensão de defesa e segurança, como na dimensão comercial ou ainda na dimensão monetária e financeira decorrente dos acordos de Bretton Woods.

A primeira comunidade europeia assume a forma de um cartel em dois domínios vistos ainda como vitais, o carvão e o aço, e é dificilmente compaginável com a lógica da nova ordem internacional. A criação de uma união aduaneira em 1957, se bem que prevista no artigo 24 do GATT, levanta também reticências, nomeadamente no que respeita ao tratamento de territórios ultramarinos e à organização da política agrícola.

A primeira peça da nova ordem mundial a cair irá ser a do sistema de câmbios fixos baseada na conversão do dólar em ouro, que irá ser substituído, a partir de 1973, por um sistema de câmbios flutuantes baseado no dólar mas sem conversão em ouro. É a partir dessa época que começa a ser equacionada uma moeda única europeia e se inaugura uma política cambial europeia.

É também a partir dessa época que se começa a desenvolver a ideia da “Europa popular” ou da “Europa dos cidadãos” de que o relatório Adonnino supracitado é parte integrante. Projectos chave que continuam a ser essenciais na sustentação popular da construção europeia – como é o da abolição das fronteiras, a construção da cidadania europeia, simbologia europeia ou os programas de intercâmbio – nascem nesta altura.

O sistema de câmbios flexíveis de 1973 vai atravessar um período relativamente longo de crise – coincidente com a chamada crise do petróleo – e vai desembocar em meados da década de oitenta no ‘consenso de Washington’ que é mais conhecido nos meios que lhe são críticos como de período “neoliberal”.

No consenso de Washington, o equilíbrio das contas públicas substitui a preocupação com o equilíbrio das contas externas, e o controlo da inflação através da política monetária substitui a preocupação com as taxas de câmbio.

Na mesma altura, a construção europeia conhece um período especialmente auspicioso, com a ascensão de Jacques Delors à presidência da Comissão Europeia, com a aprovação do Acto Único Europeu, que lança simultaneamente uma reforma institucional, o mercado único europeu, a política de coesão europeia – de que a política para as regiões ultraperiféricas vai ser uma componente – e a política ambiental europeia.

No plano internacional vai-se assistir à transformação do GATT em Organização Mundial de Comércio e, com a queda das cortinas de ferro e de bambu, um formidável crescimento da integração económica mundial, que se faz sentir tanto dentro das fronteiras europeias – com os novos países membros da EU vindos da Europa central – como fora delas, com a presença do colosso chinês e de outros países asiáticos.

A União Económica e Monetária (UEM) aprovada pelo Tratado de Maastricht vai marcar profundamente a evolução europeia. A UEM reflecte a doutrina económica alemã pós-guerra conhecida por ‘ordoliberalism’ que se assemelha ao consenso de Washington excepto no ponto capital das taxas de câmbio que, como sabemos, são fixas na UEM.

Os vinte e dois anos que medeiam entre a integração de Portugal nas Comunidades Europeias e 2008 são marcados pelo crescimento económico e mais ainda pela significativa melhoria das condições de vida nos Açores.

Foram anos que corresponderam ao pleno de uma política europeia de coesão económica, social e territorial de que os Açores são um dos principais beneficiários.

O cenário internacional caracteriza-se igualmente por ser um dos períodos de maior crescimento e de melhoria de condições de vida – fundamentalmente na Ásia e em particular na China – aqui por efeito do sucesso do consenso de Washington e da integração no mercado mundial de uma vasta parte do mundo que se encontrava dele separado.

  1. A Europa e o Mundo perante a crise de 2008

Penso que há três observações fundamentais a fazer perante a crise. A primeira, é a de que se tratou de uma crise focada no mundo ocidental. Na República Popular da China, por exemplo, a ‘crise’ traduziu-se na passagem de uma taxa de crescimento de 14,4% em 2008 para 9.7% em 2009. No sentido preciso do termo, não existiu qualquer crise.

A segunda é a da deflação, fenómeno que tinha caracterizado a crise dos anos 30. Aqui, há que assinalar que a economia japonesa foi a precursora deste fenómeno, já desde os finais do século XX, e que ele se estendeu a todo o mundo ocidental e a algumas economias que, embora menos desenvolvidas, se encontram há mais tempo plenamente inseridas na ordem económica internacional, como a tailandesa.

A solução – quiçá provisória – para o problema foi encontrada na expansão monetária feita pelas autoridades monetárias por meio do que ficou designado como “quantitative easing”, que consiste na compra por estes de títulos de longa maturidade, públicos e privados. A eclosão de novas formas de moeda virtual baseadas na tecnologia ‘block chain’ a partir de 2008 vai ser também importante.

A terceira é a de que a crise foi particularmente violenta e prolongada na zona Euro, e que só terminou aqui com a adopção pelo Banco Central Europeu de uma agressiva política de “quantitative easing” desenvolvida por Mario Draghi, em clara oposição à ortodoxia doutrinária alemã e à letra do Tratado de Maastricht.

Do ponto de vista da China – e até certo ponto, da Índia e de outros importantes países no Sul e Sudeste Asiático, como o Vietname ou o Bangladesh – 2008 não foi um ponto de inflexão mas antes de continuação de um desenvolvimento económico e social (mas não necessariamente político) a um ritmo alucinante.

O Sul, sudeste e leste asiático, (que poderemos abreviar como o “Asian Indo-Pacific Rim” (AIPR) onde se concentrava já mais de metade da população mundial, adquire cada vez mais a posição de centro económico mundial, com a China a emergir como o mais poderoso país na maior parte dos domínios estratégicos e a aproximar-se a passos largos dos EUA nos domínios onde isso ainda não acontece.

Do ponto de vista desta área geográfica, o sucesso da ordem internacional consignada pelo “Consenso de Washington” foi impressionante. O mesmo não se pode dizer das outras regiões do mundo em desenvolvimento, a Ásia Ocidental e Central, a África e a América Latina onde, a par de alguns casos de sucesso, a nota dominante não é positiva.

Curiosamente, o país onde mais claramente a insatisfação com os resultados da ordem internacional vigente se vai manifestar é os EUA, ou seja, exactamente o país que se encontra no centro dessa mesma ordem.

O populismo – que tomamos aqui como um movimento plurifacetado que exprime uma revolta popular com a forma como as elites gerem os assuntos públicos – vai afirmar-se de formas muito diversas e não necessariamente em consequência de crises económicas, mas ele tem uma importância determinante nos EUA.

A insatisfação norte-americana radica na percepção de que o livre-câmbio levou a uma desindustrialização que afectou particularmente a classe trabalhadora e pôs em causa os interesses estratégicos do país.

O facto de o fim da convertibilidade do dólar em ouro em nada ter afectado o seu estatuto de principal moeda padrão do comércio e da finança, e este manter ou mesmo aumentar o seu valor, apesar dos continuados e enormes défices externos do país, não é visto pela nova administração americana como um trunfo, mas antes como uma fragilidade.

Era suposto que o ‘consenso de Washington’ promovesse o liberalismo político através da liberalização económica, mas o sucesso da liberalização económica da China vai ser antes a base fundamental para este país não só esconjurar o liberalismo político dentro de portas mas lançar-lhe um poderoso desafio global.

A nova administração americana vai pôr em causa, mais do que esse consenso, toda a arquitectura da liberalização económica global, julgando-a como uma troca de sólidos interesses económicos por ilusórios interesses políticos. Essa rejeição vai abarcar a União Europeia, julgada também, a par da China, como uma construção política que abusa dos interesses norte-americanos.

O apoio de Donald Trump ao Brexit – embora ainda na qualidade de candidato – manifesta assim a oposição norte-americana a uma construção para a qual os EUA deram uma contribuição importantíssima.

O sucesso económico dos países que justamente menos tinham usufruído de qualquer apoio ao desenvolvimento sob a forma de subvenções ou de condições de comércio preferenciais poderá ser lida de diversas formas, a mais óbvia das quais corroborando inteiramente as teses ‘neoliberais’ e a inutilidade – ou mesmo os malefícios – de qualquer intervenção que queira corrigir os ‘efeitos do mercado’.

Indubitavelmente, os factos mostraram que o apoio económico não é nem condição necessária nem condição suficiente para o desenvolvimento. Pode mesmo tornar-se em fonte de subsidiodependência, ou seja, o apoio económico pode ser visto como alternativa ao desenvolvimento como instrumento económico.

Posto isto, penso que nem todas as realidades estão preparadas da mesma forma para o desenvolvimento, e o apoio económico pode ser importante.

Para já, aquilo que se afigura como resultado desta crise é o desmantelamento, mesmo que parcial, da ordem internacional sem que haja uma noção do que vamos ter em sua substituição, que não uma disputa por mercados, territórios e esferas de influência feita à margem do direito e de regras consensualmente assumidas.

No domínio monetário e financeiro, a crise repetiu muito do que tinha sido o rebentar da bolha especulativa dos anos 1930, e por razões semelhantes, não faltando quem visse na re-instauração de regras semelhantes às que foram adoptadas então a solução duradoura para os nossos problemas.

Embora de forma bastante mais complexa a burocrática, e de eficácia duvidosa, a regulação financeira internacional tem procurado reintroduzir um sistema de regulação que limite o potencial destrutivo para toda a economia da especulação do sistema financeiro, inspirando-se na regulamentação bancária dos anos trinta.

O “quantitative easing” teve resultados positivos, embora a sua eficácia como instrumento monetário seja questionável. Com efeito ela traduziu-se numa grande subida no preço dos activos (ou seja, o que normalmente se designa como inflação, embora seja visto positivamente, contrariamente ao que se passa com o preço dos bens e serviços) e numa moderada recuperação económica.

O facto de os bancos centrais dos países mais desenvolvidos terem podido aumentar de forma tão pronunciada e tão prolongada a massa monetária sem que daí resultassem quaisquer problemas na credibilidade do sistema monetário é algo de extremamente significativo, comparável à total ausência de consequências negativas pelo desligamento desse sistema do ouro (ou qualquer outra matéria equivalente).

A eclosão de sistemas monetários privados com base na tecnologia de block chain a partir de 2008 é outra inovação que poderá vir a revolucionar completamente as economias mundiais, com consequências ainda dificilmente antecipáveis.

Toda a ortodoxia do “consenso de Washington” em matéria monetária ruiu com a crise de 2008, mas estamos longe de saber o que vamos ter em sua substituição.

Em último lugar, temos a acuidade da crise na Europa. A principal razão é a de a União Europeia ter sido a última a utilizar o quantitative easing. Para além disso, as instituições europeias consideram que as suas políticas de coesão e agroambiental se revelaram ineficazes, e vêm aí a razão de ser da acuidade da crise ter sido particularmente grande nos países e regiões que mais dela dependiam. Para além da diminuição das somas envolvidas, há que esperar que seja ainda mais desvirtuado na regulamentação a apresentar o sentido de coesão que esteve na sua origem.

Em último lugar, temos a questão especificamente europeia, que é a da manutenção de um sistema de câmbios fixos numa zona económica com comportamentos divergentes da qual resulta a acumulação de desequilíbrios externos não corrigidos. É o tema essencial a que dediquei o livro de que sou coautor “a reforma do Euro 2014”.

Embora o seu impacto tenha sido muito amenizado pela política monetária expansionista, esses desequilíbrios permanecem inteiramente e poderão vir a qualquer momento relançar a crise europeia.

  1. Uma reflexão euro-atlântica sobre uma nova ordem internacional

No plano político internacional, a actual administração norte-americana teve o enorme mérito de quebrar com a política de apaziguamento dos programas nucleares norte-coreano e iraniano, confrontar o apoio do Paquistão ao jihadismo, mas tem-se mostrado incapaz de dar ao mundo uma perspectiva de ordem internacional, apostando antes num conjunto de valores conservadores, como o nacionalismo ou as energias e as actividades do passado.

A União Europeia está perante o seu primeiro grande rombo que é o BREXIT, enquanto por todo o lado estão em clara ascensão ou assumem o poder forças políticas que questionam os valores ou o interesse da construção comunitária, sendo a França de Emmanuel Macron a única excepção significativa neste panorama.

O Tratado de Lisboa agravou substancialmente os problemas institucionais europeus e a eurocracia europeia fecha-se cada vez mais num casulo alheando-se da realidade e mostrando-se incapaz de agir sobre ela.

Assistimos a um desmoronar de toda a arquitectura internacional montada no pós-guerra. Sendo certo que o centro de gravidade geopolítica mundial se afastou de forma que julgo ser inexorável para o Asian Indo-Pacific Rim, não existe por ora nessa zona nenhuma concertação internacional capaz de ultrapassar os seus grandes problemas internos e menos ainda de produzir uma ordem internacional à escala planetária.

A ordem internacional do pós-guerra foi necessariamente resultado dessa guerra, mas acima de tudo de duas décadas de posicionamentos e reflexões tais como a do Presidente Woodrow Wilson ou de John Maynard Keynes.

Precisamos de repensar profundamente as relações económicas internacionais, a moeda e a coesão, no quadro europeu, atlântico e internacional tendo em conta os desafios com que se confronta a humanidade; a eliminação da pobreza, a preservação do planeta, a construção da paz e do desenvolvimento.

E como lembrei vezes sem conta, se a morte prematura do Presidente Franklin Delano Roosevelt impediu que as Nações Unidas viessem a mudar-se de Genebra para a Horta, como era a sua intenção, só a falta de ambição, de persistência e de visão poderão impedir que nos Açores – aqui em Ponta Delgada, na Universidade dos Açores, ou noutro enquadramento geográfico e institucional – se venha a centrar um polo fundamental da necessária reflexão sobre a ordem internacional que sabemos ser necessária.

Uma “irritante” falta de espinha direita

Uma “irritante” falta de espinha direita

  • Luís Rosa

14/5/2018, 7:16

Para um país em que a corrupção é combatida sem tréguas, deixar que lhe dobrem a espinha não é uma hipótese em cima da mesa. Foi isso que Angola tentou fazer a Portugal no caso Manuel Vicente.

1. Estava escrito nas estrelas que o caso Manuel Vicente tinha de acabar como acabou: a transferência para Angola das suspeitas de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais imputadas pelo Ministério Público ao ex-presidente da Sonangol.

Era inevitável pela pressão diplomática absurda que o novo presidente angolano João Lourenço exerceu sobre Portugal por causa de um aliado político chamado Manuel Vicente. Era inevitável pela forma como o Presidente da República (PR) Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro (PM) António Costa não recusaram desde logo tais jogos de pressão — pelo contrário, aceitaram entrar no jogo de Lourenço. E era inevitável porque a nossa classe política é incapaz de ter uma relação com Angola que não tenha como ponto de partida a subordinação total e absoluta dos valores do Estado de Direito Democrático aos interesses económicos conjunturais de uma relação com um regime que já foi uma Ditadura e que hoje é uma espécie de semi-democracia.

Mas não tinha de ser assim.

Começando pelo fim. É lamentável a forma subserviente como Marcelo e Costa felicitaram a decisão judicial poucos minutos depois de a mesma ser conhecida.

Pior: Marcelo, sempre mais exuberante (para o bem e para o mal), não só correu para o telefone para agendar uma conversa com João Lourençopara o dia seguinte, como aderiu mesmo à classificação de “irritante” (da autoria do ministro dos Negócios Estrangeiros Santos Silva) para classificar de forma indireta as suspeitas de que Manuel Vicente, enquanto presidente da Sonangol, terá pago 760 mil euros a um procurador da República para arquivar dois inquéritos abertos contra si por suspeitas de branqueamento de capitais na compra de diversos imóveis.

Em suma, o PR e o PM não conseguiram esconder o seu alívio por uma decisão judicial que vai de encontro ao objetivo inicial do poder político: evitar que a Justiça portuguesa prosseguisse o seu trabalho, com o Ministério Público a exercer a ação penal que lhe compete e os tribunais a julgarem as suspeitas que estavam em causa contra Manuel Vicente.

E é lamentável por três razões simples:

  • Em Portugal, e ao contrário de Angola, vigora o princípio da separação de poderes. Princípio esse que foi sempre invocado por Marcelo e por Costa para não se pronunciarem sobre o caso Manuel Vicente. É pena que não tenham mantido a sua coerência até ao final — nem que fosse apenas por uma questão formal e de imagem do Estado e até que a Procuradoria-Geral da República confirmasse que não havia possibilidade de recurso;
  • Ao comentarem, como comentaram, o tal “irritante”, o Presidente da República e o primeiro-ministro estão a desvalorizar as graves suspeitas de que um cidadão estrangeiro (Manuel Vicente) terá alegadamente corrompido um magistrado português. Na prática, o Chefe de Estado e o líder do poder executivo estão a dizer aos seus concidadãos (e à Justiça) que as suspeitas de corrupção não podem ser encaradas da mesma forma quando estão em causa figuras poderosas estrangeiras.
  • Em suma, Marcelo e Costa estão a dizer: a Justiça não é igual para todos.

2. Este posicionamento do poder político ao mais alto nível só pode agravar o pessimismo com que muitos cidadãos encaram a atitude do regime português perante a gravidade das imputações da Operação Marquês e as consequências do caso Manuel Pinho revelado pelo Observador.

É totalmente contraditório o PS declarar o estado geral de vergonha perante o caso José Sócrates, a classe política em peso arrasar com o independente Manuel Pinho por ter recebido cerca de 15 mil euros mensais de um dos principais grupos empresariais portugueses enquanto foi ministro da Economia e muitos desses novos indignados ficarem aliviados por o desembargador Cláudio Ximenes ter entendido que a transferência do caso Manuel Vicente para Luanda é a melhor solução para o arguido.

Estes dois pesos e duas medidas não fazem sentido — e demonstram igualmente o nível de oportunismo das elites portuguesas, nomeadamente daqueles que têm muitos interesses nos negócios com Angola.

Não está em causa as boas relações (que devem sempre existir) entre Portugal e Angola ou a proximidade entre os povos e as economias. Está em causa, sim, um conjunto de valores que Portugal, enquanto Estado-membro da União Europeia, não pode abandonar. E entre eles está um combate sem tréguas à corrupção, à fraude fiscal e ao branqueamento de capitais — particularmente, se estiverem em causa representantes do poder político como alegados autores de tais ilícitos.

Infelizmente, não foi este o sinal dado pelo Presidente Marcelo, pelo primeiro-ministro António Costa e até pelo líder da oposição Rui Rio. Para manter boas relações com Estados amigos como Angola, não é preciso uma tremenda e “irritante” falta de espinha política por parte dos mais altos dignatários do Estado português. Ou melhor: deixarem que nos dobrem a espinha não pode ser uma hipótese em cima da mesa.

3. Mas João Lourenço, o homem que prometeu uma “cruzada contra a corrupção”, também não sai nada bem deste filme.

O novo presidente angolano resolveu dar a mão a um gestor que tinha caído em desgraça junto de José Eduardo dos Santos. Presidente da Sonangol entre 1999 e 2012, Vicente modernizou a empresa pública que gere os recursos petrolíferos do país, foi indigitado sucessor de Eduardo dos Santos como vice-presidente de Angola em 2012 mas acabou por perder influência junto do clã Dos Santos. Detentor de muitos segredossobre a indústria petrolífera angolana, foi com surpresa que se soube em Portugal que Manuel Vicente terá feito parte da comitiva que João Lourenço levou em janeiro para Davos para o Fórum Económico Mundial — e onde António Costa promoveu um encontro com Lourenço.

Tudo seria normal se João Lourenço tivesse seguido o rumo de José Eduardo dos Santos — o que não aconteceu. Em nome da tal “cruzada contra a corrupção”, demitiu os filhos do seu antecessor das posições-chave que ocupavam na economia angolana, afastou do seu inner circlegenerais como Kopelipa e Dino que representam a promiscuidade entre o Estado e o setor privado e passou a defender mais transparência para a vida pública angolana.

Este homem, contudo, é o mesmo que utilizou todos os instrumentos diplomáticos ao seu dispôr para promover o arquivamento de suspeitas graves de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais imputadas a Manuel Vicente. É que, não tenhamos dúvidas, as suspeitas contra Vicente vão ser arquivadas em Angola pouco tempo depois de ‘aterrarem’ em Luanda.

Porquê? Porque a existência de uma aministia de todos os crimes económicos que são imputados a Vicente impede que a ação penal seja prosseguida contra o ex-presidente da Sonangol. E sim, caro leitor, leu bem: o ex-presidente José Eduardo dos Santos aprovou uma amnistia geral dos crimes de corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais e de outro tipos de crimes com a exceção dos crimes de sangue.

Que credibilidade terá, a partir do mais do que provável arquivamento do caso Manuel Vicente em Angola, a “cruzada contra a corrupção” de João Lourenço? Não será esse um indício forte de que em Angola apenas está em causa a substituição de uma clique por outra? O futuro dirá.