29 Maio 2018186
Rita Tavares
Miguel Santos Carrapatoso
Rita Dinis
Pedro Benevides
Telefonemas de última hora, votos surpreendentes e uma boa dose de estratégia em algumas bancadas ditaram o chumbo da legalização da eutanásia. PS e PSD trocam acusações sobre calculismo político.
Partilhe
O debate já leva quase três horas quando começa a tocar o telefone da deputada Isabel Moreira, sentada na primeira fila da bancada do PS. Do outro lado alguém lhe comunica que, ao contrário daquilo que se pensava apenas algumas horas antes, a legalização da eutanásia ia mesmo cair às mãos do PSD. Foi um volte-face de última hora — mas não foi propriamente um choque porque se sabia desde há vários dias que qualquer que fosse o resultado seria sempre por uma margem muito curta. A divisão foi grande e para o resultado final muito contribuiu, de facto, a dispersão de votos de alguns deputados sociais-democratas. Mas também houve algumas votações surpreendentes entre os socialistas. A eutanásia acabaria por ser chumbada por uma curta margem: apenas cinco votos.
À partida para esta votação, as contas estavam assim: a esquerda tinha 107 votos garantidos, contando com André Silva do PAN e excluindo o PCP e o socialista Ascenso Simões. Ou seja, precisava de mais nove votos de deputados do PSD para garantir a maioria parlamentar.
O dia até começou com boas notícias para os defensores da eutanásia: Rui Silva, um dos deputados laranja que votava contra as propostas que estavam em jogo, não ia estar presente no hemiciclo por se encontrar fora do país. Foi o único deputado a faltar à votação, por estar na China em trabalho político — e, para quem tinha passado os últimos dias a contar cabeças, sempre era menos um. Não valeu de muito.
Na bancada do PSD, que se sabia que ia funcionar nesta votação como o fiel da balança desde que o PCP anunciou o voto contra, havia a forte convicção de que pelo menos sete deputados sociais-democratas iam votar a favor da despenalização da eutanásia: Paula Teixeira da Cruz, Teresa Leal Coelho, Margarida Balseiro Lopes, Adão Silva, Pedro Pinto, Duarte Marques e Cristóvão Norte. Era com base nesta certeza que se faziam as últimas contas e se arriscava a previsão de uma aprovação à tangente.
Mas os deputados tinham um último twist na manga só revelado durante a votação, que acabou a condicionar o resultado final.
Pedro Pinto, tido como um defensor da legalização da eutanásia e um dos que entrava como certo nestas contas, tinha deixado um aviso momentos antes de começar a sessão: “Não dêem o meu voto como garantido”. Estava dado o sinal de que o guião não ia ser seguido à risca e o deputado absteve-se em todas as votações. Pedro Pinto era um dos deputados que não queriam ser responsáveis pela aprovação de uma matéria que dividia o parlamento em dois.
Tal como previsto, Duarte Marques votou a favor. Mas fê-lo apenas nos projetos de lei do Bloco e do PEV e absteve-se em relação aos restantes. Ao Observador, explicou porquê: “Sempre entendi que o do Bloco era o mais credível no processo; votei o dos Verdes porque é o mais equilibrado. Optei pela abstenção nos restantes porque estou de acordo com o princípio”. Já Cristóvão Norte votou a favor do projeto de lei do PAN, mas absteve-se nos restantes porque “é a favor do princípio da eutanásia, mas o PAN foi o único que admitiu esse cenário no programa eleitoral”, diz ao Observador, admitindo que os últimos dias foram de “reflexão intensa”.
À medida que os votos favoráveis dos sociais-democratas iam sendo anunciados, deputados e jornalistas faziam contas e reagiam com surpresa. Começava a perceber-se que o que era difícil à partida se estava a tornar quase impossível. Com uma votação tão renhida, todos os votos a favor tinham de estar alinhados em torno de pelo menos um dos projetos, e foi precisamente isso que não aconteceu. No final da votação, existia a firme convicção entre deputados socialistas de que estas diferentes votações foram concertadas entre alguns deputados do PSD que anunciaram o voto a favor para garantir que os diplomas, na verdade, não passariam.
Ao Observador, Isabel Moreira diz que esta “dispersão de votos” por parte de alguns deputados do PSD teve como objetivo “não fazer aprovar nenhum dos quatro projetos”. “Obviamente, foi estratégico”, acusa a deputada socialista, que tem dado a cara por alguns dos temas de consciência que têm sido debatidos no Parlamento, incluindo este. Isabel Moreira era, aliás, uma das deputadas que estava em constante contacto com alguns elementos da bancada do PSD, nas últimas horas, para tentar antecipar a votação desta tarde.
O mesmo sugeriu José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda: “Perante projetos tão idênticos, perante projetos tão próximos uns dos outros, é difícil de entender o que é que faz haver votos de um mesmo deputado de forma diferenciada. Mas isso são juízos pessoais, que cada um faz com toda a liberdade. A mim causa-me estranheza.”
O líder parlamentar do PSD, contudo, nega qualquer “estratégia” concertada no sentido de dispersar votos a favor para o projeto do PS não ser aprovado. “Não houve nenhuma estratégia nem pressão, houve vontade, consciência e liberdade”, disse, acrescentando que não falou individualmente com nenhum deputado. “Não houve pedagogia nenhuma”, sublinhou ainda em declarações aos jornalistas no Parlamento, no final da votação.
A questão, contudo, é mais política do que parece. O líder do PSD, Rui Rio, é um convicto defensor da eutanásia, tendo inclusive dado um contributo no livro de João Semedo Morrer com Dignidade – a decisão de cada um, onde defendia o “direito à dignidade na vida e na morte”. Ao que o Observador apurou junto de fonte social-democrata, a ideia de a legalização da eutanásia ser aprovada não era vista como boa notícia para o PSD de Rui Rio. “Já viu o que era se fosse aprovado e passássemos meses a discutir na especialidade com o PSD completamente partido ao meio?”, atira um deputado social-democrata, concluindo que, mesmo sendo Rio a favor, “isto foi o melhor que lhe aconteceu”.
Oficialmente, no PSD, as divergências entre o líder do partido e o líder parlamentar são sinal de “lição democrática”. “Rui Rio deu uma lição de democracia no sentido de dar liberdade de voto a todos os deputados, mesmo sabendo que maioritariamente os votos seriam diferentes da opinião dele. Foi uma lição de tolerância, importante para a democracia em Portugal”, disse Fernando Negrão aos jornalistas.
Uma surpresa chamada Miranda Calha
Mas a questão também não estava serena no PS, ainda que as indicações que a direção parlamentar tinha até perto da hora da votação fossem no sentido de apenas haver um voto contra, o de Ascenso Simões, e da eventualidade de uma abstenção. Afinal, foram dois os deputados socialistas que votaram contra todos os projetos que pediam a legalização da eutanásia. Além de Ascenso, também Miranda Calha se levantou para votar contra todos os projetos. Ouviu-se outra vez um ligeiro burburinho na sala neste momento da votação. Era a viragem, estava consumada a derrota.
Além destes dois socialistas, outros seis também desalinharam do guião da maioria da sua bancada. Fernando Jesus votou a favor dos projetos do PS, Bloco e Verdes e absteve-se na iniciativa legislativa do PAN. Joaquim Barreto também votou a favor do PS, e absteve-se nos restantes, tal como Lara Martinho e Pedro do Carmo. João Paulo Correia, vice da bancada socialista, aprovou os projetos do PS e do Bloco, e absteve-se no dos Verdes e do PAN. Por fim, Renato Sampaio, já quase no fim da votação, acrescentou mais uma barreira aos outros projetos da esquerda, ao votar a favor apenas dos projetos do PS e dos Verdes, abstendo-se nos restantes. Também esta dispersão acabou por baixar o número de votos favoráveis aos projetos de PAN, Verdes e Bloco e acabou por impedir que estas iniciativas ombreassem com o projeto do PS.
No final, Maria Antónia Almeida Santos, a socialista que deu a cara ao lado de Isabel Moreira pela iniciativa legislativa do PS, assumiu “alguma mágoa” perante o resultado da votação. O que faltou, disse aos jornalistas à saída do debate, “foram votos mesmo”.
CDS e PCP: as confirmações
Como esperado, as posições de princípio de democratas-cristãos e comunistas confirmaram-se esta quarta-feira: CDS e PCP votaram em bloco contra a despenalização da eutanásia.
Durante o debate, coube a Isabel Galriça Neto explicar que o CDS era contra a eutanásia por considerar que não há vidas que “vale a penas serem vividas e outras não”. Além disso, os democratas-cristãos consideravam que este era um primeiro passo num caminho que levaria, necessariamente, à “banalização da morte” e a uma “cultura de morte assistida”.
Já António Filipe, deputado do PCP, subiu ao palanque para explicar que os comunistas não acreditam que o Estado deva oferecer como solução a morte. “O dever indeclinável do Estado é mobilizar os avanços técnicos e científicos para assegurar o aumento da esperança de vida e não para a encurtar”, afirmou o deputado, antes de insistir num argumento já antes utilizado por Galriça Neto: “A rampa deslizante é um facto indesmentível”.
Em resposta, o Bloco de Esquerda atacou de forma violenta nas duas frentes, o CDS (Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do partido, chegou a dizer que “o CDS achincalhou o debate”) e o PCP. Numa provocação aos comunistas, Mariana Mortágua chegou a dizer respeitar as posições de Cavaco Silva, Assunção Cristas, Isilda Pegado e… António Filipe, colando os comunistas ao espetro político diametralmente oposto ao do PCP. Com o tempo regimental esgotado, António Filipe ainda pediu ao Bloco que cedesse 30 segundos para responder à bancada do Bloco. “Nós pensamos pela nossa cabeça e não tomamos as nossas posições por oposição seja a quem for”, devolveu o comunista. Um duelo singular que não passou despercebido a ninguém.
No final da votação, com o chumbo da eutanásia, a bancada do CDS levantou-se imediatamente para aplaudir. Mas nem todos seguiram o gesto dos democratas-cristãos, mesmo os que votaram contra os quatros diplomas. A hesitação era evidente. À saída, e apesar da satisfação dos que sempre se opuseram à despenalização da eutanásia, os partidários do “sim” iam garantido que este foi apenas o primeiro teste. O assunto voltará, no futuro, ao Parlamento.