08 Junho 2018437
Edgar Caetano
Talvez não saiba, mas a banca, quando dá crédito, cria dinheiro "a partir do nada". Referendo na Suíça, no domingo, quer romper com essa prática secular. Ex-banqueiro do BCE é defensor da revolução.
Os suíços vão ter neste domingo, na ponta de uma esferográfica, uma decisão sobre algo que pode ser verdadeiramente revolucionário para a forma como as economias modernas funcionam — começando pela Suíça, um país quase sinónimo de finanças. Os promotores do referendo do Vollgeld — o dinheiro inteiro — querem acabar com a capacidade que os bancos privados têm de “criar dinheiro a partir do nada“, uma prática que está na base de como, há vários séculos, o sistema está organizado mas de que a maioria dos cidadãos não tem consciência.
O governo e o banco central suíço avisam que acabar com o sistema da reserva fracionária seria “uma experiência desnecessária e perigosa, que iria infligir graves danos na economia”. Mas a inovação tecnológica está a inspirar o movimento internacional que não vê razões por que os cidadãos não possam depositar o dinheiro diretamente nos bancos centrais, prescindindo da intermediação dos bancos privados (e evitando as crises financeiras recorrentes que, defendem, o atual sistema proporciona). Até um ex-governador do Banco de Espanha considera estas ideias “interessantes”.
“O referendo não tem recebido muita atenção até ao momento, pelo menos fora da Suíça”, escrevem dois economistas do ING, Charlotte de Montpellier e Teunis Brosens, num relatório distribuído pelos investidores clientes do banco holandês e enviado ao Observador. E porque não? “Talvez porque se subestima o impacto que o Vollgeld teria, caso fosse aplicado. Ou, então, talvez porque se acredita que a probabilidade de uma vitória do sim não é muito elevada — mas acreditar nisso pode revelar-se um erro“, avisam.
Uma sondagem encomendada pela televisão pública SRF antecipou, há cerca de um mês, que 49% dos suíços vão votar contra o referendo, que 16% estão indecisos e que os restantes 35% admitem votar favoravelmente a proposta. Existem, porém, sondagens que apontam para um resultado bem mais renhido: 45% contra e 42% a favor,com 13% de indecisos, segundo chegou a calcular uma sondagem online da empresa Tamedia.
O movimento Vollgeld Initiative conseguiu levar o tema a referendo e tem feito campanha por todo o país.
“Uma rejeição da proposta continua a ser o cenário que vemos como mais provável, mas a possibilidade de um voto pelo sim não pode ser descartada“, dizem os economistas do ING. É o que se chama um “acontecimento de baixa probabilidade mas de elevado impacto“. E basta lembrar como foram subestimados os riscos de um voto pelo Leave nas sondagens que foram feitas nas semanas antes do voto britânico pelo Brexit — uma ocasião onde também não faltaram “especialistas” e “elites” a fazer tudo o que podiam para influenciar os eleitores e alertá-los sobre os riscos de uma decisão de saída da União Europeia.
Na Suíça, o Governo e o banco central defenderam que seria “perigoso” ir por este caminho. Mas houve declarações ainda mais duras: o presidente do gigante UBS chegou ao ponto de dizer que não acredita numa vitória do sim porque está convencido de que as pessoas não irão votar no seu próprio “suicídio”. O ING lembra que, hoje em dia, “quanto mais elevado é o tom de voz dos especialistas, a recomendar às pessoas que se afastem de alguma coisa, mais elas parecem gravitar em direção a essa mesma coisa”.
Mas, antes de mais, como é que os bancos “criam dinheiro a partir do nada”?
O referendo do Vollgeld quer acabar com o que se chama de “sistema de reserva fracionária”, algo de que boa parte dos cidadãos não tem consciência mas que é absolutamente basilar para a forma como os bancos e as economias funcionam. Diz-se que os bancos criam “dinheiro a partir do nada” porque, quando os bancos recebem depósitos, existe um mínimo regulamentar de reservas — o rácio de reservas, que varia conforme o país ou zona monetária — e podem emprestar o resto, aumentando dessa forma a massa monetária de forma espontânea.
De certa forma, o dinheiro que temos nas contas bancárias não é realmente dinheiro mas, sim, uma espécie de voucher atribuído pelo banco que garante que, se for necessário, podemos utilizá-lo. O problema, como apontam os defensores do Vollgeld (e do movimento Positive Money, que nasceu no Reino Unido) é que nenhum banco teria dinheiro suficiente para entregar a todos os seus depositantes, ao mesmo tempo. Porquê? Porque esse dinheiro comercial foi criado e multiplicado pelos bancos — e não pelos bancos centrais ou pelos Estados.
Eis um exemplo simplificado de como o sistema funciona:
O banco Amarelo e o banco Violeta operam, ambos, por hipótese, num sistema de rácio de reservas de 10% — esse é o nível exigido por lei. Imaginemos que cada um dos bancos tem 10.000 euros em depósitos de clientes e não tem quaisquer excessos de reservas — ou seja, cada um tem 9.000 euros em crédito concedido e 1.000 euros em reservas obrigatórias junto do banco central.
Certo dia, o João entra no banco Amarelo e deposita 1.000 euros. O banco Amarelo fica, portanto, com 11.000 euros em depósitos no seu balanço.
No dia seguinte, o Pedro entra no mesmo banco a pedir um empréstimo de 900 euros. Mesmo a calhar: com o depósito do João, o banco Amarelo ganhou margem para emprestar ao Pedro os 900 que ele quer, continuando a respeitar o rácio de reservas definido por lei. Resultado prático: o banco Amarelo aumentou o crédito total concedido para 9.900 euros e tem 11.000 euros em depósitos.
Passados alguns dias, o Pedro decide depositar os 900 euros no banco Violeta, que fica, assim, com 10.900 euros em depósitos totais — os 10.000 que já tinha e os 900 que o Pedro depositou.
Ora, neste exemplo simples, verificamos que o banco Amarelo conta, neste momento, com 11.000 euros em depósitos e o banco Violeta 10.900 euros. Um total de de 21.900 euros depositados quando, na realidade, só entraram no sistema 1.000 euros(o depósito do João) — os outros 900 euros são “dinheiro de crédito” que foi “criado” pelo banco Amarelo quando fez o empréstimo ao Pedro.
Gera-se um efeito multiplicador, à medida que esse “novo dinheiro” circula e é sucessivamente depositado por pessoas ou empresas. Uma vez reservando o que é obrigatório por lei, os bancos conseguem rentabilizar todo o restante. Esta é, também, a razão pela qual o pior pesadelo de qualquer banco é uma corrida aos depósitos — porque o banco simplesmente não tem dinheiro suficiente para que todos o possam levantar ao mesmo tempo.
É através da definição do rácio de reservas que os bancos centrais tentam influenciar a circulação de moeda — sim, influenciar, não controlar. Um rácio maior significa, em teoria, uma menor “multiplicação”, ao passo que um valor mais baixo tende a estimular a concessão de crédito. Na zona euro, até ao início de 2012, o rácio mínimo de reserva era de 2% dos depósitos (e outras responsabilidades do banco), mas nessa altura, o pico da crise europeia, foi reduzido para 1%.
"Proposta um pouco tonta"
Quando o referendo do Vollgeld foi lançado, no início de 2016, o Observador escreveu sobre esta proposta que queria “acabar com a banca como a conhecemos“. Na altura, um professor de Economia e Finanças da Nova SBE, Paulo Pinho, considerou a proposta “um pouco tonta, feita por economistas de gabinete”. “A moeda que existe é a moeda que é necessária para fazer face às transações da sociedade e fazer face às necessidades de poupança”, disse o professor da Nova SBE, defendendo que “se os bancos são esterilizados na sua capacidade de criar moeda, a moeda que a procura determina ser a necessária, isso iria criar problemas graves, sobrevalorização da moeda, deflação e acabaria por ter de se encontrar qualquer outra alternativa”.
O sistema de reserva fracionária é uma prática centenária, que remonta aos tempos venezianos e que existe em todas as economias desenvolvidas. Apesar disso, a julgar por inquéritos feitos um pouco por toda a Europa, boa parte dos cidadãos não compreende como o sistema funciona — até uma larga maioria dos deputados no Parlamento inglês acha que só o governo ou o banco central podem criar dinheiro.
É prevalente a ideia de que, por exemplo quando é concedido um crédito, o dinheiro que o banco faz aparecer na conta do cliente é capital do próprio banco ou corresponde — diretamente — aos depósitos que outros aforradores ali fizeram anteriormente. Ou, em alternativa, acredita-se que se trata de dinheiro que o banco foi buscar ao banco central – neste caso, o BCE – para emprestar ao cliente. Como o exemplo do João e do Pedro ilustram, está longe de ser assim que as coisas funcionam. E, mesmo que o referendo seja chumbado, os seus promotores acreditam que só o facto de este tema ser discutido já ajuda a que mais pessoas ganhem essa noção.
O Banco Central Europeu explica que este é um sistema que, além de potenciar a atividade económica, funciona como uma válvula de pressão, que ajuda a oferta de crédito a ajustar-se à procura e ajuda, também, os bancos a reagirem às mudanças rápidas no chamado mercado interbancário — onde os bancos emprestam liquidez uns aos outros (e é aí que se formam as taxas Euribor). Mas a vantagem principal — que esteve na origem do sistema — é a possibilidade de rentabilizar fundos, exponencialmente, que não estão a ser utilizados.
Tem (mesmo) de ser assim?
Os defensores da iniciativa Vollgeld na Suíça, que conseguiram as 110 mil assinaturas necessárias para levar algo a referendo, argumentam que tem de haver uma forma melhor de gerirmos as nossas economias. E a inovação tecnológica, como os sistemas blockchain (que está na base das criptomoedas), tem levado vários académicos a colocar em questão se ainda precisamos dos bancos para intermediar, com a importância que têm hoje, a relação entre os cidadãos e o dinheiro emitido pelos bancos centrais.
O movimento internacional pelo "dinheiro inteiro"
O referendo suíço e a Vollgeld Initiative enquadram-se num movimento internacional chamado International Movement for Monetary Reform, que tem como ponta de lança o britânico Positive Money. Estes são movimentos que querem “democratizar o dinheiro para que ele funcione para a sociedade e não contra ela”. Em Portugal, o movimento está representado pelo Boa Moeda.
O objetivo seria evitar os ciclos de boome bust, isto é, anos de expansão acelerada da economia e/ou da massa monetária seguidos por crises graves e, invariavelmente, resgates públicos a bancos (problema que, para os defensores do Vollgeld, deixaria de existir num sistema de dinheiro inteiro — é isso que quer dizer vollgeld em alemão — porque não haveria corridas aos bancos). Acabar com a reserva fracionária foi, aliás, o que propôs o economista Irving Fisher, entre outros, na sequência do crash bolsista de 1929 e da Grande Depressão norte-americana dos anos 30. 100% Money era a proposta de Fisher e dos autores do chamado “Plano de Chicago”, que, contudo, acabou por não ser acolhido.
Estas não são, portanto, teorias novas. Mas, depois da crise financeira de 2008, o tema tem entusiasmado cada vez mais académicos em todo o mundo. Quem o reconhece é um insuspeito ex-governador do Banco de Espanha e membro do Conselho do BCE: Miguel Ángel Fernández Ordóñez, que no ano passado foi ao parlamento espanhol falar sobre as “interessantes” propostas apresentadas pelos estudiosos que “estão a avaliar a possibilidade de mudar o atual sistema de criação de dinheiro por bancos privados e substituí-lo por outro [modelo] em que cada cidadão poderia depositar o seu dinheiro junto dos bancos centrais”.
As inovações tecnológicas “fazem com que agora seja tecnicamente possível que o dinheiro seja emitido pelo Estado, e não por bancos privados” — e isso poderia ter “consequências muito positivas não só para a estabilidade do sistema mas, também, para reduzir ou suprimir a enorme quantidade de regulação prudencial que está a penalizar a inovação financeira”, salientou Ordóñez, citando os estudos académicos que defendem que os bancos devem perder a capacidade de “misturar” depósitos e crédito.
“Basicamente seria transformar os bancos em cofres, ou caixas-fortes. Passariam a ser instituições estéreis”, afirma João Duque, professor de Economia e Finanças e presidente do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), em comentários partilhados com o Observador. Seria algo “revolucionário” porque levaria a uma separação da atividade de recolha de depósitos e a transformação em crédito.
O resultado provável é que os depósitos teriam sempre uma remuneração negativa (porque, em teoria, não haveria rendibilidade e teríamos de pagar ao banco para guardar o dinheiro) e o crédito, tendencialmente, seria mais escasso porque deixaria de haver o efeito multiplicador que existe atualmente. Continuaria a ser possível ter acesso a crédito mas ele teria de ser baseado em outros instrumentos, como títulos de dívida pública — nunca nos depósitos.
Dizer que os depósitos no banco central nunca pagariam rendibilidade pode, contudo, não ser correto, alerta João Moreira Rato, ex-presidente do IGCP (e geriu a dívida pública durante o processo de regresso aos mercados) e, hoje, consultor independente na área financeira. Têm surgido propostas mais audazes — que não têm uma relação direta com o Vollgeld –, como o criptoeuro. E poderia haver formas de ter os depósitos a pagar um rendimento. “Seria possível desintermediar os bancos privados, com uma moeda digital” como essa, nos moldes em que até já foi proposta para discussão no G-20, lembra João Moreira Rato.
Independentemente do que acontecer com o referendo na Suíça, os temas relacionados com o dinheiro soberano vão ser cada vez mais falados, um sinal de que 10 anos após a crise os meios académicos e políticos continuam a ter questões existenciais sobre o que é o dinheiro, como é que ele se cria e, também, como é que se registam movimentos financeiros. Para os promotores de iniciativas como o Vollgeld e o Positive Money, o sistema atual significa que “dinheiro é dívida” e, portanto, tirando partido da inovação tecnológica, defendem que não faz sentido continuar a dar aos bancos privados um papel tão importante como têm hoje — o banco central pode estabelecer uma relação direta com os cidadãos.
Mas isso seria desejável? Será que a melhor opção é ter um organismo centralizado, mais dependente do poder político, a gerir os processos de transformação de depósitos em crédito? Ou é mais aconselhável deixar que continuem a ser os bancos a fazer esse trabalho, num mercado aberto e supervisionado, definindo diferentes níveis de risco e encaminhando diferentes tipos de poupança para diferentes tipos de risco?
“Esta é, na sua génese, uma questão ideológica. A tentação de criar um criptoeuro seria criar um mundo do género do Admirável Mundo Novo, onde um banco central teria o registo de todas as transações e teria a missão de tomar todas as decisões sobre os fluxos de poupança e crédito”, explica João Moreira Rato. “Os bancos precisam é de saber tomar risco e saber avaliar — prefiro um sistema bem supervisionado onde exista um mercado competitivo de avaliação de risco”, nota o ex-presidente do IGCP.
João Duque vai ainda mais longe: “É certo que o sistema atual também sofre crises, de vez em quando, mas todos os sistemas provocam crises — e, na minha opinião, os piores sistemas são aqueles onde há uma economia planificada, porque esse tipo de modelos costuma levar à pior crise de todas: que é as pessoas deixarem de ser felizes”.